domingo, 21 de dezembro de 2008

Um conto de Natal

Chovia forte do lado de fora do bar, que naquela noite fora completamente decorado para as comemorações natalinas. Dois homens entraram se estranhando no recinto, vociferando alto um para o outro em tom de insulto. Madame Maria Ortiz, a dona do bar Mulsos para Moços, brandiu sua varinha de detrás do balcão em gesto repreendedor.
Com os nervos acalmados, os dois homens sentaram-se distantes e fizeram seus pedidos.
- Sempre a mesma estupidez. – disse um jovem, muito desgostoso com a situação que incomodara sua janta.
- Um dia eles conhecerão seu lugar. – disse em resposta um homem encapuzado ao lado do jovem.
- Não enquanto bruxos como Merlin insistirem em ensinar magia a esse humanos. – dizer essa última palavra parecia ter ardido a língua do jovem.
- Nessas horas fico feliz em não ser considerado humano. – disse o encapuzado enquanto tomava para si um drink cor de âmbar.
O jovem, de pele alva e cabelos enegrecidos, fuxicou o nariz levemente ao ouvir o encapuzado se pronunciar.
- Tudo ao seu tempo, Kricolas. – disse o jovem, retomando o assunto original – Existem outros bruxos que não estão tão satisfeitos em ter que partilhar suas riquezas com esses humanos.
- Temos o apoio de criaturas mágicas, certamente. – disse o encapuzado em meio a outro gole do líquido âmbar.
O jovem Donnovan desviou sua atenção do homem ao seu lado e voltou a olhar para a sua janta, que aquela altura já esfriara. Olhou para a janela e viu a chuva brigar com o vento. Tudo parecia desinteressante naquele momento. As pessoas no bar não se entreolhavam, era como se o espírito de natal não tivesse alcançado aquele lugar.
A maioria dos freqüentadores da Mulsos para Moços eram pessoas que não tinham companhia para essas ocasiões, ou não gostavam de comemorá-las, como Donnovan.
- E o seu pai? – perguntou o bruxo.
- Não sei por onde anda. Provavelmente se vendendo e não fazendo o que sua natureza ordena. Uma vergonha.
- Difícil acreditar que um dos maiores vampiros do mundo é aliado do tolo mago Merlin.
- Não me culpe por isso, por favor. – disse Kricolas.
- Poderíamos assassinar Merlin. – disse Donnovan com um certo vislumbre em seus olhos, como se pudesse imaginar perfeitamente a cena.
- É uma opção. Ou podemos matar aquele discípulo estúpido dele.
- Foster? – indagou o bruxo em meio a uma risada – Não entendo qual talento Merlin vê naquele fracote.
- Dizem que ele tem um Enid próprio. – comentou Kricolas.
- Está falando sério? – espantou-se Donnovan, um ar de indignação estampou-se em seu rosto, lividamente.
- Não se chateie por isso. Você ainda é o mais forte, sem dúvidas.
- Não eu não sou. Por mais difícil que seja dizer isso, Merlin ainda é mais poderoso do que eu. – como da primeira vez, parecia que a língua do jovem bruxo iria inflamar.
- Merlin é apenas um velho, meu senhor. Não há dúvidas de que seu poder será infinitamente maior que o dele em questão de tempo.
- Quão tempo? – indagou Donnovan, sacudindo a varinha no ar em gesto ameaçador.
- Você será uma lenda e quando isso acontecer, esses não mágicos cairão. Serão escravos ou sei lá qual o destino deles.
Donnovan permaneceu em seu silêncio, mas quase era possível ouvir seus pensamentos fantasiando com dias de glória, poder e total controle sobre a magia. Algo que ele fascinava e orgulhava-se. Há poucos dias ele soubera que possuía um Enid próprio, um indicativo de que ele era dono de grandes habilidades mágicas e capaz de grandes feitos.
- Desgraçado! – rugiu um dos homens que entrara no bar minutos antes.
O outro, que o acompanhara, reagiu do outro lado jogando no primeiro uma garrafa cheia de hidromel, que se espatifou ao atingir o balcão.
Madame Maria Ortiz veio correndo da cozinha ver o que acontecia em seu bar, mas desta vez nem mesmo sua varinha foi ameaçadora o suficiente para os dois briguentos.
Num ato impetuoso de fúria, Donnovan largou o resto de sua janta no balcão e ergueu a varinha para o homem que iniciara a nova confusão. Sibilou algumas palavras e um feixe de luz prata engalfinhou o humano, fazendo tombar e bater a cabeça com força em uma mesa próxima. Quando o sangue parecia jorrar pelo ouvido do sujeito, Madame Maria Ortiz horrorizou-se
- Por Merlin, você o matou?
Donnovan sorriu maliciosamente para a mulher e repetiu o gesto com a varinha, mas esta estava preparada para desviar do ataque. Os demais ocupantes do bar recolheram-se a um canto, amedrontados demais para qualquer outra reação.
Enquanto o jovem bruxo de cabelos negros abria caminho para fora do bar, ouviu-se um grito seguido por uma explosão. Quando Donnovan olhou de volta para o balcão, viu os traços de Kricolas arrastando para a chuva o corpo inerte e ensangüentado do outro humano briguento.
Numa última ação triunfante, Donnovan disparou um feitiço dentro do bar fazendo parte do teto ceder e, assim, saiu pela chuva para cumprir o seu destino que fora determinado naquela Natal.




segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Desejos e a fumaça

Era mais um dia entediante como qualquer outro. As mesmas pessoas na sala de aula, a mesma ladainha sobre cadeias de carbono, mitose e meiose, sujeito e predicado, trigonometria e mais blá, blá, blá...

Os minutos agradáveis conseguidos no intervalo já estavam longe do pensamento naqueles dez últimos minutos de aula em que os professores gostavam de tornar mortificantes o suficiente para derrubar o ânimo juvenil de qualquer estudante.

Os ponteiros do relógio na parede pareciam estar colados. Simplesmente não se moviam. Mas os ouvidos do garoto estavam bem atentos ao sinal da escola. Logo, logo ele tocará. Pensou, ansioso.

Era a última semana de aula antes das férias de julho, e logo, ele e os pais viajariam para o litoral. Nada como uma boa praia e uma água de coco para fazer esquecer todas aquelas regras e raízes quadradas que ele absorvera nos últimos meses.

Sete minutos...

O professor andava de um lado para o outro, esforçando-se para manter a atenção dos alunos, que já guardavam seus materiais escolares.

- Ainda temos mais alguns minutos. – alertou o professor, ao consultar o relógio na parede.

O garoto batia o pé embaixo da mesa. Os olhos já não conseguiam focar um único ponto e giravam nas órbitas como se fosse um prisioneiro desesperado por uma oportunidade de fuga. Mas ele sabia que a fuga logo chegaria... apenas mais cinco minutos.

Debruçando-se sobre a cadeira, o garoto decidiu fechar os olhos e pensar nos momentos agradáveis que estariam por vir. Assim, talvez, a ansiedade não fosse mais desesperadora e os cinco minuto finais da aula, conseqüentemente, menos mortificantes.

Não demorou mais do que o tempo de se abaixar. Após não obter da turma a resposta para o valor de π, o professor viu-se derrotado pela proximidade das férias e liberou os alunos.

A animosidade se viu refletida no barulho de carteiras se arrastando e no espreme-espreme provocado na hora de passar da sala para o corredor. Os alunos se acotovelavam nas escadas e corriam até o portão de saída. Ele, no entanto, estava mais tranqüilo depois de livre da sala de aula. Suas férias já se iniciavam do jeito que planejara. Tudo o que precisava agora era chegar em casa com tranqüilidade, almoçar, colocar seus últimos pertences na mala e cair na estrada com os pais...

Despediu-se dos colegas com um aceno, desejou-lhes boas férias e seguiu caminho assoviando uma música que passava em sua cabeça. Tinha um ritmo bem baiano; descontraído e risonho. Provavelmente era algum axé que ele ouvira numa rádio qualquer e já não se lembrava.

Sua escola ficava bem próxima a sua casa, apenas quatro quadras de distância. Era muito rápido o trajeto e durante ele, sempre via as mesmas pessoas. A sra. Salestiana, dona da padaria em que, costumeiramente, ele passava para comprar alguns doces antes da aula; o sr. Ronaldo, um caminhoneiro conhecido da região que passava o dia a revisar seu instrumento de trabalho e Pedrinho Tião, um pinguço que vivia a tropear pelo bairro cantando bossa nova e recitando versinhos românticos para as mulheres que por ali transitavam.

Apesar de ser totalmente inofensivo, o garoto não gostava de topar com Pedrinho Tião. Havia nele um quê de derrota que o incomodava, mas não sabia por que se sentia assim. Apenas sentia.

Naquele dia, porém, a padaria estava fechada e tanto o caminhão quanto o sr. Ronaldo não estavam na rua. Porém, ao longe, o garoto viu os pés caídos de Pedrinho Tião entre latas de lixo tombadas, bem em frente ao destino final.

Por que ele tinha que cair logo aí? Perguntou-se o garoto, muito enraivecido.

Meio que de soslaio, ele tentou dar a volta no bêbado para chegar até o portão e entrar sem ser notado, pois sabia que Pedrinho Tião faria um pequeno escândalo se fosse acordado.

Mas que droga! Bravejou o  garoto ao perceber que o homem estava escorado justamente no portão.

- Ei. Ei... – chamou – Acorda.

O bêbado, porém, não se mexeu. Ele não tinha muito mais que trinta anos, cabelos lisos, sujos e compridos até a altura do queixo, pele queimada pelo sol e enrugada pelos hábitos pouco saudáveis, trajava uma calça de brim bege que exalava um azedume de urina e fezes misturadas e uma camisa de botões que um dia fora branca.

A cabeça estava caída, quase encostando na própria barriga e não havia em nenhuma de suas duas mãos uma única garrafa de cerveja ou cachaça. O que era, de fato, estranho.

- Vou chamar a polícia. – ameaçou o garoto, cutucando o bêbado com o pé direito, mas, como da primeira vez, não obteve resposta.

Ele olhou pela rua buscando por alguma ajuda. Não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Não naquele dia.

O garoto estendeu um braço até o interfone da casa e apertou o botão na esperança de que seus pais já estivessem em casa para acudi-lo. Quando fez-se o barulho do interfone saindo do gancho, produzindo os sons de dentro da casa, não houve uma voz, nem sussurro, ainda assim, o garoto respondeu.

- Cheguei!

A trinca estalou várias vezes quando alguém, dentro da casa, abriu o portão. Automaticamente, o peso de Pedrinho Tião empurrou o portão para dentro e, por conseguinte, o deixou estirado no chão, a cabeça virada de lado.

Dessa vez ele acorda. Pressupôs o garoto. Cedo demais.

Vendo que o bêbado não reagia, ele entrou em casa e foi espiar mais uma vez o homem. Uma onda de choque tomou-lhe por inteiro ao ver de perto, e pela primeira vez, o rosto de Pedrinho Tião. A garrafa que lhe faltava à mão estava enterrada em seu crânio, fora enfiada por baixo da mandíbula até o cérebro, mas, estranhamente não lhe escorria sangue.

- MÃE! – gritou o garoto em desespero, correndo para dentro da própria casa.

Tal seu desespero que somente notou que a porta da entrada fora explodida quando já estava saindo a caminho do segundo cômodo. Observou os demais móveis em volta e pareciam intactos. Saindo da sala e partindo para a cozinha, deparou-se com gavetas reviradas, pratos quebrados e a geladeira caída sobre a porta numa tentativa inútil de bloquear a passagem até a sala de jantar.

Seu bom senso parecia ter sido anestesiado assim que pisou dentro da casa. Em qualquer outra situação ele teria saído à rua gritando desesperadamente por socorro, mas aquela era a sua casa. A casa dos seus pais. Não havia o que temer.

Na sala de jantar, mais rastros de luta. Uma mesa de vidro quebrada, garrafas de vinho estilhaçadas, paredes queimadas e no alto da escada de acesso ao segundo andar um tremendo choque.

O garoto procurou evitar aquela visão pavorosa e angustiante. Seu pequeno poodle fora preso à parede com uma fava atravessada na garganta, manchando toda a área com seu sangue canino, que fora derramado numa tentativa valente de proteger o lar de seus donos.

- Ahhhh! – gritou uma mulher, no segundo andar.

Mais que depressa, o garoto rumou até a origem do grito, passando pelo cadáver do animal sem nem ao menos lhe dedicar atenção. Aquela era sua mãe e ela precisava de ajuda. Ao pé do segundo andar, ele localizou uma faca caída e a empunhou com valentia. Seu coração pulsando mais rápido do que jamais pulsara antes. O pensamento de férias calmas e tranqüilas no litoral já inexistentes e uma incrível saudade de trigonometria.

A porta do quarto de seus pais estava entreaberta e sombras indistintas eram projetadas pela luz que incidia pela janela e iluminava o quarto. Ele não soube se fora por valentia ou burrice, mas segundos depois estava escancarando a porta para dar de cara com a cena que marcaria para sempre a sua vida. Havia três ocupantes no quarto. Todos amontoados em cima da cama de casal ensangüentada. Um dos ocupantes estava caído de barriga para cima, os braços escapulindo pelas beiradas, os dedos ainda se mexiam por espasmo, mas o restante do corpo estava visivelmente morto. As vísceras expostas e rosto manchado de vermelho traziam a expressão de quem sofrera terrivelmente até chegar àquele estado.

O Segundo ocupante era monstruoso. Grande, forte, amarelado e nodoso. Um estranho par de asas rasgadas se armara ao ver o garoto. Ainda assim, essa súbita invasão não o impediu de dar um último mergulho no sangue que escorria do pescoço da mulher que ele segurava com tanta sede. Ela ainda estava viva quando viu o garoto entrar no quarto, mochila nas costas, faca na mão e a pior representação do medo.

- Cor-rre... – disse ela num último esforço, antes de se entregar com prazer à morte e cair por cima do corpo frio do marido.

Apavorado, o garoto deixou a faca cair no chão, por pouco ela não o perfura o pé. Descendo as escadas três ou quatro lances por vez, ele tropeçou na metade do caminho e bateu de cara com a parede, a testa latejou de dor após o contato, mas a adrenalina anestesiara aquele ferimento muito rapidamente.

Outra vez no primeiro andar, ele correu até a saída, saltando pela geladeira que obstruía o caminho. Quando pensou estar a salvo na sala de estar. O assassino de seus pais surgiu como fumaça em seu caminho. Só agora sua atenção pudera entrar em detalhes da criatura.

Ele possuía um focinho achatado como o de morcego, olhos injetados e uma fúria que transpirava de cada poro.

O garoto tornou a correr para dentro, desesperado por ajuda. Saltou uma terceira vez sobre a geladeira planejando pegar o telefone sem fio, retornar ao segundo andar e trancar-se no banheiro para fazer uma ligação.

Ele não soube explicar como, mas assim que se aproximou da mesa com o telefone, ela simplesmente explodiu à ordem do assassino.

Encurralado, o garoto olhou para a enorme janela de vidro que servia como fonte de iluminação de toda o ambiente e decidiu que aquela seria sua única salvação. Retirou a mochila das costas, colocou-a diante da cabeça para se proteger e se atirou contra o vidro.

Com a astúcia improvisada, ele se equilibrou e já quase alcançava o portão de saída quando o assassino usou de alguma força que ele não conhecia e o fez tropeçar. A mochila ficou de lado quando ele caiu por cima do corpo de Pedrinho Tião. A pressão do impacto fez a garrafa sair de dentro do crânio seguida por litros de sangue...

A estranhíssima criatura puxou o garoto pelo ombro e o encarou por alguns instantes. Aqueles olhos vermelhos vasculhando os olhos castanhos, como se estivessem tentando penetrar a mente e a alma. Mas o garoto já achava que sobrara pouco das duas coisas. Não havia nada em sua mente que não fosse tristeza, angústia, medo – muito medo, pavor, aflição e infelicidade infinita. E sua alma, ele sabia, estava assombrada por cada um desses péssimos sentimentos. Certamente já não era uma alma tranqüila que valesse a pena se roubar.

- O q-ue q-q-quer? – perguntou o garoto, que agora sentia aqueles dedos nodosos abraçarem tão fortemente sua garganta.

A resposta que ele recebeu do assassino foi uma pressão maior sendo exercida por aqueles dedos, as unhas afiadas rasgando-lhe a carne...

Sons sufocados do garoto se confundiam com a respiração ofegante do assassino, que agora sorria e parecia contente ao exibir suas longas presas vampírescas.

Pela mente do jovem Thalis Kinguest passavam as últimas imagens tranqüilas de seu dia. Como seria bom retornar para aquela última aula de sexta-feira antes das férias. Como os números eram amigáveis. Biologia nunca lhe pareceu tão interessante quanto agora. História seria extremamente excitante, se tivesse outra oportunidade.

Seu pavor era tamanho que sua mente estava eliminando qualquer pensamento negativo. Ele tentou relembrar dos pais no andar de cima da casa, mas já não podia. A pressão daqueles dedos repeliam suas memórias e ele só pensava em sua sobrevivência.

Enquanto o ar lhe faltava nos pulmões, ele imaginou-se respirando ar puro, uma outra vez. Sentiu seu corpo livre daquela pressão e longe daquele assassino. Ocorreu-lhe então uma floresta deserta, preenchida por árvores altas e espessas, abrigo de pássaros e outros animais. Queria sentir-se de novo entre pessoas como ele. Queria fazer novas amizades. E tão forte foi o seu querer, que seu corpo quase morto pareceu inflamar-se de desejo. Cada centímetro ardia como brasa, seus órgãos pareciam estar se afastando, e isso nada tinha a ver com o vampiro que ainda o segurava. Então, ele reabriu os olhos a tempo de ver a surpresa na face daquele monstro ao ver sua vítima desaparecer de suas garras deixando para trás apenas um rastro de fumaça.  

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Planos e avanços

Já se passara três dias desde que trancara-se dentro daquela pequena sala repleta de objetos estranhos, pontiagudos e barulhentos. A falta de notícias do mundo externo o incomodava um pouco, embora fosse difícil aceitar esse pensamento; de que algo o podia incomodar.

Seu servo saíra para uma caçada e não retornara, o que poderia ter acontecido? Descartou qualquer possibilidade de derrota. Seria vergonhoso demais. Improvável demais para se pensar naquilo. Ele era asqueroso o suficiente para afastar qualquer curioso, forte o suficiente para encarar qualquer inimigo e perigoso o suficiente para matar qualquer um que se metesse em seu caminho.

Os três dias que se passaram foram seguidos de planos e revisões de planos. Ele não era um homem que se deixava guiar pelo acaso. Ele planejara tudo. Planejara seu próximo passo como quem planeja uma vida inteira, mas não queria compartilhar tais informações com qualquer um que fosse. Ele precisava garantir-se de que daria certo.

Largando um amontoado de pergaminhos em cima de uma mesa, ele levantou-se de sua cadeira de peroba polida e caminhou até uma estante de pedra desalinhada, onde se encontravam vários pequenos objetos, como um guarda-volumes. Dentre esses objetos, ele selecionou um pequeno relógio de bolso muito brilhante. Abriu-o e checou as horas, parecia não ter acreditado, pois retornou a checar e depois conferiu com um segundo relógio pendurado à parede.

Está atrasado. Pensou, mas não era ao relógio a quem ele se referia.

Andou vagamente pelo quarto a espera de algum sinal estranho. Reviu seu plano infalível mentalmente e consentiu consigo mesmo. Não havia como falhar. Nada que fosse feito pelo outro poderia atrapalhar suas ambições. Já descartara qualquer intervenção do velho, que àquela altura já tivera sua influência oxidada no meio mágico. Após a terrível demonstração de fúria em Cidade dos Elfos, todos os que resistiam por acreditarem no ideal daquele velho bruxo já não estavam mais tão certos de sua sanidade.

Pelo que ele soubera, antes de se enclausurar, Merlin descera de seu imponente castelo bravejando impropérios, mais para si do que para outros, e mutilou um livro em praça pública, em seguida acolheu-se no pomar da cidade.

Retornando sua atenção para o cômodo em que estava, o homem voltou a andar em círculos, sua longa capa arrastando-se e o barulho de suas botas fazendo o chão de madeira ranger sinistramente, como se fantasmas assombrassem o ambiente.

Onde está? Pensou, uma ânsia dominando-lhe os sentidos.

Ele não queria explodir sua cólera naquele instante. Estava prestes a fazer isso, mas não seria a toa. Logo estaria de frente com seu inimigo e poderia fazer dele o que quisesse... aí sim, valeria a pena externar toda aquela ânsia, aquela frustração de ter que se confinar por três dias, quando, na realidade, precisava estar a céu aberto, matando, torturando e avançando com seus planos de dominação.

Ouviu-se um toc toc quando o homem já experimentava sentar-se novamente em sua cadeira de peroba polida. Sem demonstrar a ânsia que sentira a pouco, aproximou sua mão da maçaneta logo mais a frente e com um giro e um puxão, abriu a porta. Um corpanzil encapuzado apareceu ao batente, completamente molhado.

- E então? – perguntou ao servo – O que houve?

- Quinze, meu senhor. Entre eles Aleixo e Mordento... infelizmente.

O homem de capa longa crispou os lábios ao saber da morte de seus aliados, mas pareceu não se importar e prosseguiu:

- Foi a mulher, não foi?

- Sim, meu senhor. Ela estava do lado deles o tempo inteiro.

- O que mais? – inquiriu.

O servo retirou seu capuz empapado de água e jogou-o numa cadeira vazia, fechando a porta atrás de si em seguida.

- Schimedel. Pegamos a Schimidel, mas não obtivemos muito mais do que já tínhamos com ela. Então a matamos. – informou o dedicado servo. A pele naturalmente enrugada estava ainda mais cavada, resultado das batalhas e dos dias sem descanso – Todos esperam pelo seu plano, meu senhor. Estão todos em posição neste exato momento.

Donnovan caminhou com sua capa longa pelo ambiente avaliando as notícias. Certamente perder quinze de seus seguidores não estava em seus planos, mas muitos outros iriam substituir esses mortos assim que seu plano fosse executado com perfeição.

- Kricolas, e quanto a Foster? – perguntou Donnovan, como se esperasse por aquela resposta desde o momento em que fitara o servo a sua porta.

­­- Foragido, agora. Após duelarmos na região sul do país, mas ele esfumaçou antes que algum feitiço potencialmente letal o atingisse. – fez uma pausa, pensativo – Seria algo maravilhoso se algo assim existisse de fato, não? Um feitiço letal.

- Tenho certeza que algo assim é possível. E após o plano tratarei de descobrir. – comentou Donnovan, pensativo.

- O Livro de Merlin? – arriscou Kricolas, intimidado.

Donnovan assentiu que sim, mas não queria mais tocar no assunto, guardava suas certezas para si, e só para si. Se um poder tão grandioso assim realmente existisse, somente ele seria digno de possuí-lo.

- Meu senhor... – suplicou Kricolas por mais algumas palavras, mas este o ignorou.

Andou novamente até a estante de pedra, alisou os cabelos negros com as mãos firmes, e retirou do móvel o pequeno relógio de bolso, checou as horas uma outra vez e o guardou em suas vestes.

- Está na hora. – alertou – Hora de matar tudo aquilo em que as pessoas acreditam.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O dia em que ele se foi

Ela estava impaciente àquele dia. Já fizera seis semanas desde que se mudara para aquela terra distante. Distante das batalhas sangrentas que eram travadas na lendária ilha de Hi Brazil. Queria poder estar lá, como queria...

Sentia que a pequena cabana improvisada que construíra no dia de sua chegada era um cômodo cárcere, porém, a verdade que doía em seu peito é a de que seu coração, pulsante e raivoso, era a pior de todas as celas.

Após os quatro primeiros dias, ela percebeu que seus prantos já não mais seriam atendidos, que não haveria quem enxugasse suas lágrimas e que a colocasse no colo para ampará-la. Decidiu estocar cada lágrima que ainda lhe restava para quando fosse feliz. Mesmo que isso lhe parecesse uma idéia muito vaga.

Na terceira semana, decidiu que seria seguro sair para olhar o sol e à noite, a lua. Sentir o vento tocar a cútis seca, sem brilho e envelhecida pela preocupação. Rugas se formavam naquele rosto jovem que não havia muito, irradiava extrema beleza. Os cabelos longos e enegrecidos caídos nas costas, agora pareciam chumaços de palha amontoados na cabeça. As roupas sempre tão limpas e cheirosas tinham um aspecto rústico após dias de solidão.

Não parecia haver magia que consertasse todos aqueles problemas, aquelas deformações. Não enquanto estivesse enclausurada. Não enquanto fosse prisioneira do seus sentimentos. Da sua culpa.

Quinze para meia-noite, avisava o pequeno relógio de madeira pendurado à parede. Ela começava a se misturar aos lençóis da própria cama, apalpando um travesseiro extra que substituía alguém ausente.

CLAC!

O coração dela pulsou forte ao ouvir aquele som familiar. De um só salto pôs-se de pé, a varinha em riste. Só uma pessoa sabia exatamente onde ela estava, e por mais que seu coração pedisse por esperanças, ela já as perdera ao longo das últimas seis semanas. Não teria motivos para ele ir até ela. Teria?

- Está aí? – perguntou uma voz masculina, do lado de fora, que a fez tremer encima dos joelhos.

- O q-q-que f-faz a-a-aqui? – perguntou ela, a voz falhando pela falta de uso.

- Aconteceu alguma? Parece assustada. Deixe-me entrar.

Reagiu por impulso, como se aquele “Deixe-me entrar” fosse, de fato, uma ordem.

Vaidosa, ela ainda tentou ajeitar os cabelos ressecados com algum feitiço conhecido, mas a emoção a impedira de fazer um bom trabalho.

- Não é porque está foragida que precisa se aparentar tão mal. – disse o homem sardonicamente.

Sem outra reação, ela jogou-se para cima do amado e tocou suas costas com um longo abraço, querendo dar mais valor aqueles segundos de amor do que as seis semanas de esquecimento.

- Senti sua falta. – disse ela, finalmente.

- É claro que eu senti também. – comentou ele, sua voz sincera, porém comedida – Como vocês passaram esses últimos dias?

Ela não queria falar dela mesma. Tivera tempo o suficiente para saber que a dor que sentira não era digna de lembrança ou comentários. Queria notícias.

- Por onde vocês estiveram? Não recebi uma notícia se quer.

- Estivemos lutando, claro. – respondeu ele, ainda curioso, analisando a mulher a sua frente – Desde a sua partida, as pessoas têm resistido mais.

- É verdade? – inquiriu, enquanto puxava cadeiras para os dois se sentarem próximos à mesa.

- Por certo. Eles entenderam de que lado você está e agora estão resistindo.

- Mas isso me custou a liberdade. – lamentou.

- Fiz bem em te mandar para cá. Não seria seguro você permanecer por lá. Não depois de ter abatido Aleixo e Mordento. Dizem que os dois eram os mais fiéis e antigos seguidores dele.

- Eu juro que não queria matá-los... juro. Mas não poderia permitir que ele se aproximasse de mim, não agora. – falou ela encarando, resignada, o pequeno quarto aonde dormia.

- Gostaria de poder estar presente. – lamentou o homem, encarando os próprios pés.

- Você tem o seu outro, não tem? Faça dele alguém feliz.

- Não diga essas coisas, por favor... – pediu o homem, levantando-se.

Ela sentiu que uma lágrima lhe escaparia, lembrou-se de sua promessa e a segurou com todas as forças.

- Você acha que ele ainda virá atrás de mim? – desviou o assunto.

- Já o teria feito se realmente quisesse. – tranqüilizou-a – Ele anda muito ocupado chefiando seu exército de criaturas mágicas.

- Ainda usam aquelas criaturas?

Por algum motivo ele soube exatamente do que ela falava.

- Sim. Pegaram Alicia Schimidel na semana passada. Todos lamentamos a morte dela.

- Não gosto daqueles olhos azuis perfurando a minha alma... eles realmente paralisam.

Ele deu mais algumas voltas pela pequena sala improvisada analisando o ambiente. Sacou a varinha e saiu realizando feitiços para consertar objetos quebrados e conjurar novos.

- Sua proteção tem servido bem. Ninguém pareceu tentar perfurá-la.

Ele sorriu vaidosamente.

- Enquanto eu viver, você estará segura aqui. E quando eu morrer... – fez uma pequena pausa – não haverá motivos para se esconder.

Quer fosse por gratidão, pena ou desespero comedido, ela sorriu.

- Posso dar uma olhada nela antes de ir?

- Claro... – respondeu a mulher, guiando-o para o pequeno quarto.

Logo ao lado da cama onde a pouco a mulher estivera deitada, estava um pequeno berço torto de madeira, coberto por um véu negro.

- Não tem me dado o menor trabalho. – disse ela erguendo o véu e revelando uma pequena criança com pouco mais de um ano de idade, dormindo em sono profundo, distante dos acontecimentos.

- Sinto tanto por não estar presente... – lamentou ele, com uma sinceridade marcante.

- Cuide do seu outro filho. Garner. Não foi esse o nome que o deram?

- Sim. – respondeu – Garner Foster, é o nome dele.

- Antes de ir... – disse ela se aproximando de uma cômoda e retirando de lá um objeto – Quero que leve isso.

- O que é?

Ela se aproximou do amado e colou nele um pequeno colar.

- Para lhe trazer sorte nas batalhas. – após isso deu-lhe um curto beijo.

- Eu te amo, Morgana.

- Também te amo, Foster.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Desenho do Castelo de Avalon


Não sei quanto a curiosidade de vocês, mas resolvi postar um desenho muuuiiittooo antigo do castelo de Avalon que eu fiz. Dei uma pintada básica no photoshop só para ilustrar, mas é mais ou menos essa a idéia da escola de Kal Foster.


Abraços

sábado, 21 de junho de 2008

Lista de Feitiços do primeiro livro

Edjipto – feitiço de limpeza.

Sendart – dobra um pedaço de papel em formato de avião e o envia para alguém.

Pedrusco – conjura uma pedra.

Scringer Secret Schoupan – versão poderosa do Opandor.

Bolhasradiant – cria bolhas de luz.

Guives – interrompe o Bolhasradiant e espoca as bolhas que já saíram.

Levitoriano – faz objetos flutuarem.

Concertûnia – repara objetos.

Lonvy (maldição das fadas) – deixa a pessoa sem senso de direção.

Fículous (maldição das fadas) – impede que a fada minta quando está sozinha.

Planta Exander – faz a planta adormecer.

Lumier – ilumina a planta.

Farfalha – atira estilhaços no inimigo.

Escaparta – dispara um filete azul.

Amstãnder – um raio elétrico.

Mórfinus – faz a pessoa dormir.

Opandor – abre trancas.

Eixo – fecha trancas.

Efesto – fogo

Inflamiun – fogo 2

Sedructos – maldição da morte

Morgora Nãltis – feitiço da morte

Dracóvia – oposto ao Lumier.

Horbário Obedientis – invoca a Herviana.

Obéverno – feitiço de transformação.

Griamen – revitalizar.

Cefalotúrgia – transforma cabeças em balões.

Corparo – revitalizar.

Réplica – repele ataque.

Dunkel – maldição da transfiguração.

Linglesingle – maldição da voz cantarolante.

Fétida – fumaça marrom fedorenta.

Revelarbus – invoca o Enid.

Lócus Amenus – cancela qualquer feitiço.

Pelínculo – feitiço sinalizador.

Morgáide – feitiço do clima.

Ediagrom – contra-feitiço do clima.

Aprumus – feitiço usado por Kal e CIA durante “O desafio do Amaldiçoado”.

Perpétuo – Feitiço que gera uma grande força com a destruição do Enid

domingo, 4 de maio de 2008

Capítulo 2 - A casa Foster

Araçá era um pequeno bairro residencial de Anomatí, uma cidade no interior do sul do Brasil. No interior do bairro, a Rua Guaçuí se estendia de uma pequena praça com brinquedos até um sobrado que tinha em seu quintal uma lagoa de águas esverdeadas. As casas tinham formas e tamanhos variados, algumas com apenas o andar térreo e outras que chegavam até o terceiro andar. Todos os dias de manhã, os moradores da levantavam-se bem cedo, abriam suas portas e janelas, colocavam seus carros modernos para fora, levantando uma massa cinzenta de fumaça que empestava toda a rua. Depois de feito este ritual diário, eles enfurnavam-se em ternos ou vestidos longos, enfiavam-se nos carros e saiam para o trabalho no centro da cidade.

Em quase todas as casas esta era a rotina. Mas não na casa número vinte e dois.

Os moradores da Rua Guaçuí ainda tentavam se acostumar com o estilo de vida dos novos vizinhos. As três crianças raramente saiam do quintal da casa que era cercado com um muro alto e bem gradeado. A mãe delas não trocava palavras com os vizinhos, eles nem ao menos sabiam exatamente o seu nome e porque haviam se mudado para aquele bairro tão isolado.

No dia da mudança, alguns deles se ofereceram para ajudar a carregar umas caixas pesadas, já que seria impossível três crianças e uma mulher levantá-las sozinhas, mesmo assim, relutante, a mulher agradeceu e dispensou toda a ajuda.

- Mal educada. – disseram eles.

Após um dia inteiro de entra e sai de caixas, a nova família trancou a porta da frente e fechou as cortinas dos dois andares da casa, que não era tão grande, mas suficiente para abrigar as quatro pessoas. O jardim havia sido decorado com pequenos anões, que segundo souberam os vizinhos, haviam sido um presente de uma amiga da região do Amazonas, e algumas margaridas e tulipas que estranhamente os moradores da casa queixavam-se porque elas não estavam se movendo. Sem dúvida alguma era a família mais esquisita que já residira em Araçá.

Talvez, a única casa que pudesse se igualar aos vizinhos do número vinte e dois fosse a da velha senhora que residia no número dezessete. Enquanto todos os moradores de Rua Guaçuí expunham-se em público para conversar, a senhora de cabelos brancos e de pele flácida, fazia de sua casa sua grande fortaleza anti-social.

No segundo dia da mudança, os Almeida, moradores do número vinte e um, levaram um bolo de boas vindas aos novos vizinhos, um menino de cabelos e olhos castanhos colocou o rosto para fora do portão, estendeu um dos braços para receber o presente, agradeceu rapidamente e em seguida trancou o portão sem nem mais uma palavra.

- Que gente esquisita. – disseram.

No terceiro fim de semana desde a chegada da família ao bairro, eles receberam sua primeira visita. Um velho senhor de olhos bem azuis, com a cabeça quase careca, porém com algumas tranças desalinhadas que lhe batiam abaixo dos ombros e uma barba quase tão longa que seria possível amarra-la ao cinto que segurava sua calça marrom lama.

- Bom dia. – cumprimentava ele aos moradores que lhe encaravam curiosos.

Certamente se poderia haver tipo mais esquisito de pessoa que os moradores do número vinte e dois, com toda certeza seria este estranho senhor.

- Bom... bom dia... – responderam alguns somente por educação.

O velhote seguiu rua acima até chegar ao portão, então chamou pela dona da casa.

- Sra. Foster!

Como se estivesse esperando pela visita, a mulher, imediatamente, colocou o rosto na janela e disse:

- Oh, bom dia Prof. Cacius. Queira entrar, por favor.

A trava elétrica do portão estalou e este imediatamente se abriu para receber o visitante. O homem sorriu e deu bom dia para os anões de jardins enquanto caminhava em direção à pequena varanda de entrada. No meio do caminho, Cacius foi surpreendido por um gato de pelo laranja e estranhamente o homem respondeu.

- Bom dia, Fred.

Os moradores olharam-se curiosos e então sacudiram a cabeça e foram para seus lares certos de que já haviam visto de tudo.

Alexia Almeida pegou sua vassoura de piaçava e saiu sacudindo até a porta de entrada de sua casa para espantar os pombos que se alimentavam de migalhas de pão caídas pela calçada.

- Malditas aves! Malditas aves! – resmungou.

- Esta rua está parecendo um zoológico! – resmungou junto seu marido.

Era verdade. Após a mudança da família Foster, a Rua Guaçuí recebeu um considerável contingente de animais que passaram a perturbar toda a vizinhança. Eram pombos em todas as calçadas, cachorros latindo e uivando, gatos que andavam pelos telhados à noite e ratos que percorriam todas as casas, atravessando cozinhas e salas a qualquer hora do dia como se nada os incomodasse.

Os únicos simpatizantes da família Foster eram, ironicamente, seus vizinhos mais distantes, os Chiabai. O casal Mara e Alexandre e sua filha de treze anos, Sara, haviam indicado aos Foster onde era a sua nova casa assim que chegaram ao bairro. Naquele mesmo dia, Amanda havia feito um convite para que, num sábado, eles fossem almoçar em sua recém inaugurada casa. Passaram-se dois finais de semana e os Chiabai ainda não tinham se apresentado para o tal almoço, mas, ao que parecia, os próprios Foster também haviam esquecido, ou não se importado.

Ao término do primeiro mês, os vizinhos começaram a reclamar que as lâmpadas dos postes não duravam mais do que uma noite sem queimarem. E a companhia de luz passou a ter que trocá-las quase que diariamente. Certa vez, um vigia foi contratado para descobrir quem estava queimando as lâmpadas, ele passou a noite inteira perambulando pela rua para apanhar o vândalo, mas ao invés disto, surpreendeu-se ao ver que a casa dos Foster parecia abrigar uma boate. Luzes coloridas piscavam por todos os cômodos da casa e barulhos estranhos como chicotadas e tambores ruíam pelo jardim. O vigia estava estático olhando aquela cena, pensou em tocar a campainha e perguntar se estava tudo bem por lá.

No momento em que se decidiu por fazer isso, as luzes da rua começaram a piscar freneticamente atraindo a atenção do homem que deixou os braços caírem sobre as pernas e a boca abriu-se quase que automaticamente. Foi um piscar incessante até que finalmente todas as luzes se apagaram de uma só vez, deixando a Rua Guaçuí completamente mergulhada em sombras.

Na manhã seguinte, mais uma vez, a companhia de luz e energia veio fazer a troca das lâmpadas, no momento em que o velho homem de tranças atravessava a rua, a pé, para visitar mais uma vez a família Foster.

- Bom dia, senhor. – cumprimentou Alexia Almeida que já se acostumara com a figura do visitante.

- Bom dia, senhora. – disse gentilmente – Sabe me dizer se a sra. Foster está em casa hoje?

- Com certeza sim. – respondeu a mulher – Ninguém sai daquela casa, senhor.

- Eles sofreram muito nestes últimos meses...

- Como assim? – perguntou a mulher debruçando-se sobre o seu muro.

- Outra hora, talvez. – falou ele sorrindo.

- Tenha um bom dia.

- Igualmente.

Cacius atravessou a rua em direção ao número vinte dois que, para sua surpresa, encontrou o portão destrancado.

- Estou entrando. – anunciou – Bom dia! – disse para os anões, como era de costume fazer.

- Oh, estávamos esperando pelo senhor, Prof. Cacius. – disse Amanda, que surgira em uma das janelas da frente – Fiz uns bolinhos.

- Fico grato. E os meninos? Como estão?

- Superando, eu diria. Kalevi sentiu mais com a perda, mas acho que ele consegue.

- Tenho certeza. Tenho certeza. Você tem filhos muito corajosos.

Amanda permitiu-se um pequeno sorriso de orgulho, mas ainda assim não parecia muito contente.

- Professor, o que está acontecendo no mundo... no mundo...

- No mundo mágico? – completou Cacius olhando em volta – Acho que ninguém pode nos ouvir aí dentro.

- Certo. – concordou ela acompanhando o professor até a entrada da casa através da pequena varanda – Mas o que está havendo lá? Os guardas sumiram. Não há mais pombos, gatos, cachorros ou ratos. Ninguém está vigiando a rua. Estou com medo.

- Não há com o que se preocupar. – falou Cacius já fora do alcance de ouvidos curiosos – Bem, eu posso oferecer proteção em quanto eles não voltam.

- Mas por que eles foram embora então? O Governo desistiu de nos proteger?

- Não exatamente sra. Foster...

- Mamãe quem est...

- Olá, Kal. Há quanto tempo. – saudou Cacius.

- Olá, professor. – cumprimentou secamente – Desculpe, agora tenho que ir.

O garoto saiu pela porta da frente correndo em direção à rua, sua mãe em seus calcanhares.

- Não vá longe, Kalevi Foster!

- Deixe-o. Tenho certeza de que estará seguro...

Esta foi a última frase de Cacius que Kal pôde ouvir. O garoto vazou pelo portão de entrada e desceu a rua em direção à praça, sem destino exato. A companhia de luz ainda estava fazendo o serviço de troca das lâmpadas e alguns moradores estavam acompanhando o trabalho dos operários e conversando.

Kal passou por eles sem ao menos notá-los, mas eles repararam bem o menino. Era a primeira vez que um dos Foster colocava os pés fora de casa, e este parecia estar afoito para fazer isto, porque correu loucamente como se tivesse ganhado a liberdade de uma prisão. Kal Foster estava com um jeans desbotado e uma camisa de manga cumprida um pouco mais larga do que deveria ser. Aparentemente sua mãe havia se distraído na compra e escolhera uma um número maior.

- Você ouviu a sua mãe! Não vá muito longe! – disse Alexia quase que correndo atrás dele como uma dama de companhia que fora largada para trás.

- Não use a varinha, não use a varinha... – falou entre os dentes de modo que ninguém pudesse ouvi-lo.

Kal não estava se acostumando muito bem ao novo estilo de vida que lhe fora imposto. Não usar a varinha durante o dia, não poder brincar de duelo com Daimon e Guinevere, enfim, não fazer nada para chamar a atenção dos outros moradores. Nestas horas, Kal sentia saudades dos resmungos e implicâncias dos moradores de Vila da Cachoeira, pelo menos, lá, ele poderia agir de maneira natural.

Em Avalon, a escola de magia que Kal estudara no ano anterior, ele havia aprendido diversos feitiços, os quais planejava colocar em prática assim que retornasse para casa. Mas isto agora parecia impraticável. Sua nova casa estava cercada de guardas de Warren muito bem disfarçados de animais e sua mãe não abria uma brecha para diversão. Mas naquela manhã, Kal Foster havia planejado tudo muito bem. Assim que ouvisse Cacius chegar em sua casa para conversar com Amanda, ele passaria pelos dois em disparada e sairia, finalmente, do número vinte e dois.

A praça no final da rua não tinha muito mais que alguns canteiros de flores, algumas gramíneas e um pequeno playground com escorregador e balanço. O lugar estava deserto àquela hora do dia, ao que parecia, não havia muitas crianças na Rua Guaçuí e os adultos que não estavam trabalhando estavam observando o interessante trocar de lâmpadas.

Kal aproximou-se de um dos balanços e sentou-se. Ficou a olhar para a praça à procura de algo móvel com que pudesse se distrair, mas não encontrou nem mesmo uma formiga. Mas para sua surpresa ele ouviu atrás de si uma voz feminina e aveludada que desconcertou seus pensamentos.

- Olá.

Kal virou-se para examinar quem seria e contemplou aquele rosto de pele clara e cabelos bem enegrecidos e alisados, lábios rosados, nariz fino e olhos verde vivo. Ele sentiu que conhecia a garota, mas em sua mente ela o lembrava uma garota por quem se apaixonara em Avalon, Emanuela Goldemberg, no entanto Emanuela era loira e tinha os olhos bem azuis.

- Olá... – respondeu ele timidamente.

- Posso me sentar? – perguntou ela segurando um balanço ao lado de Kal.

- Claro.

- O que está fazendo aqui?

Ele olhou para as pessoas da companhia de luz, deu uma pequena risada e voltou à garota.

- Não acho um passatempo divertido assistir a troca de lâmpadas. – comentou.

A garota deu sorrisinho e então disse.

- Qual o seu nome?

- Kalevi Foster. – a garota eriçou as sobrancelhas, talvez assustada com a espontaneidade que ele demonstrara ao dizer o nome por completo – E o seu? – perguntou tentando se redimir.

- Sara. Sara Chiabai, já que você gosta assim.

Agora era a vez de Kal levantar às sobrancelhas incomodado com alguma coisa.

- Vocês nos mostraram nossa casa assim que chegamos na rua, não foi?

- Exatamente. Mas só não entendemos como não sabiam onde era a própria casa. Quero dizer... as pessoas olham as casas antes de comprá-las, não é?

- É que... é que... foi uma herança.

- Ah... e vocês moravam onde?

- Morávamos no Centro-Oeste do país.

- Goiás, Mato Grosso...?

- Pode ser... – disse Kal sem saber na verdade qual era o estado em que morava. Os bruxos não ligavam muito para a geografia dos humanos não mágicos.

Sara permaneceu curiosa, mas decidiu não perguntar mais nada sobre a antiga casa de Kal.

- Você mora aqui há muito tempo? – perguntou.

- Sim. Meus pais trabalham no centro da cidade e eu estudo no colégio do bairro. A propósito, você vai se matricular aonde?

- Hã... é...

- Ainda não decidiram?

- Acho que vou permanecer na minha antiga escola.

- Na Região Centro-Oeste?

- Não. Ela fica no Amazonas. No meio da... – Kal ponderou sobre o que ia dizer, estava se expondo demais, por um triz ele não dissera que sua escola ficava no meio da Floresta Amazônica, sobre uma nuvem, acima de uma cidade cheia de elfos, fadas e outras criaturas mágicas – No meio da capital.

- Oh sim... – disse ela achando que Kal tinha algum tipo de problema – Você tem irmãos não tem?

- Sim. Na verdade apenas o Daimon é meu irmão. Guinevere mora com a gente desde que os pais dela morreram, já faz um bom tempo isto.

- Vocês não gostam muito de se expor, não é?

- Aconteceram muitas coisas...

- Que coisas?

- Coisas difíceis de explicar... perdas, na verdade.

- Desculpe. – falou ela percebendo que estava entrando em um assunto delicado.

- Ainda estamos superando...

Sara permaneceu em silêncio, seu estoque de perguntas pareceu ter acabado após descobrir que os Foster estavam passando por um problema familiar um pouco mais grave do que as pessoas da rua comentavam.

- Coisas estranhas têm acontecido, não é? – disse ele.

- Defina estranho.

- Lâmpadas queimando, animais por toda à parte... a rua é sempre tão animada? – fingiu.

- Na verdade. – falou ela, pausadamente – Essas coisas começaram a acontecer depois que vocês se mudaram.

- Sério? – perguntou ele quase que convencido de que não sabia de nada a respeito.

- É o que as pessoas comentam.

- Incluindo você e seus pais?

- Não. Não nos intrometemos na vida das pessoas. Mas existem algumas pessoas por aqui que gostam de se preocupar com os outros. Bom dia, dona Alexia! – cumprimentou à mulher que disfarçadamente varria a calçada da esquina da rua – A frente já foi varrida hoje senhora!

- O que ela está fazendo ali? Aquela não é a sua casa? – perguntou Kal.

- Exatamente. Dona Alexia tem o péssimo hábito de ouvir a conversa alheia.

- Acho que entendo. – falou ele.

Neste momento Kal observou que Cacius saia de sua casa e começava a caminhar pela rua. Ele não sabia ao certo como o diretor chegava à Anomatí.

Talvez ele esfumace em um beco ou banheiro público. Pensou.

Kal observou Cacius descer a rua, pensou que talvez o professor iria até ele assim que passasse pela praça e imediatamente Kal planejou continuar a conversa com Sara para que pudesse disfarçar e fingir que não o notara. Kal Foster não estava com raiva ou rancor de Cacius. Os dois deram-se muito bem no ano anterior, na verdade. Cacius agira mais como um bom amigo do que como um professor, em Avalon, ele aconselhou e apoiou o garoto em situações difíceis e após a morte de seu pai, Adonis Foster, Cacius contara a Kal alguns segredos sobre Kricolas e o Livro de Merlin. Tornara-o seu confidente. Mesmo assim ele ainda sentia-se magoado porque Cacius aparecera minutos depois de Kricolas ter matado Adonis. Ele imaginava que se o professor tivesse aparecido mais cedo, talvez, os Foster ainda estivessem juntos em Vila da Cachoeira e não tivessem que se esconder tanto das forças malignas do meio-vampiro.

- Desculpe-me por eu estar fazendo outra pergunta, não quero que pense que sou como a Alexia. Mas quem é aquele senhor que vai até a sua casa todos os fins de semana?

- Um amigo da família. – respondeu Kal sorrindo.

- Ele parece ser uma boa pessoa. Parece ser um senhor calmo.

- Às vezes até demais. – falou Kal lembrando-se do ar sereno que Cacius mantinha em todas as ocasiões, por mais sérias e desesperadoras que sejam.

- Olhe, ele está conversando com os moradores.

Kal olhou para Cacius de imediato. Sara estava correta. O bruxo mais respeitado do Brasil, e provavelmente o melhor, estava parado diante um poste de luz a observar o serviço dos operários, como faziam os demais ao redor. Kal percebeu que se quisesse evitar Cacius aquela era a melhor hora de voltar para casa. Passaria despercebido pelo professor, que aparentava estar muito distraído e interessado pela curiosa técnica de se trocar lâmpadas de poste.

- Desculpe, Sara. – falou Kal olhando fixamente para a garota – Tenho que ir para casa.

- Tudo bem. – respondeu satisfeita – Vejo você depois?

- Ah... ah claro. – falou ele embaralhado – Você e seus pais ainda nos devem uma visita.

- Apareceremos em breve. – falou ela sem muita confiança no que dizia.

- Por que não vão jantar lá hoje? – sugeriu Kal sem nem ao menos pensar. Ele só percebera o que disse depois de as palavras já terem escapulido de sua língua.

- Sua mãe sabe deste convite? – perguntou ela.

- Oh, claro. Claro que sim. Na verdade eu vim justamente fazer o convite a vocês, mas vi que não tinha ninguém em casa e resolvi esperar aqui. – mentiu. Percebendo estar ficando bom em fazer isto.

- Tudo bem então. Vou dizer aos meus pais assim que eles chegarem do almoço.

- Se quiser... Pode levar alguém que seja especial para você também... – falou ele investigando.

- Oh, acho que... acho que não tenho ninguém em especial...

- Ok. Vejo você mais tarde então. É... então é isso. Até mais.

Kal virou o rosto antes mesmo que começasse a ficar vermelho, tinha certeza de que ela o acharia um idiota se isto acontecesse. Ele quis correr, mas também achou que os garotos não correm quando se despedem de uma garota. Ainda mais uma garota por quem se está desenvolvendo uma amizade.

Amizade, decididamente é isto. Disse Kal mentalmente.

Ele seguiu caminho com passos apertados, em certos momentos achou que iria tropeçar, mas, finalmente, conseguiu sair da praça e passar por Cacius, que estava tão entretido com o processo de troca das lâmpadas que nem ao menos o notou, ou pelo menos fingiu não ter notado.

Em casa, Amanda estava na cozinha sendo ajudada por Guinevere a fazer o almoço, uma das duas, Kal não distinguiu qual – a voz delas eram muito parecidas –, queixou-se de que não usar magia atrasava muito o serviço. Daimon estava na sala tentando ligar a televisão, que por vezes dera problema, assim como todos os eletrodomésticos da casa. Em sua primeira visita aos Foster, Cacius dissera que eles sofreriam com um problema chamado de radioestesia, que era causado quando há muita magia em determinado ambiente, tudo que utiliza energia elétrica sofre forte interferência mágica e entra em curto circuito. Este era o motivo real para as lâmpadas dos postes estarem queimando todas as noites. A magia irradiada pela casa deles gerava uma forte interferência nos postes que piscavam até que finalmente queimassem. Cacius explicou os eletrodomésticos funcionavam como copos de água cheios até a borda. E que utilizar magia perto destes objetos seria o equivalente a colocar mais água no copo. Quando ele transborda significa que o aparelho entrou em curto.

A nova casa dos Foster não era nem um pouco parecida com a mansão em que estavam acostumados a morar, onde Kal nasceu, literalmente dizendo, e onde passou sua turbulenta infância. Ao entrar na sala pela varanda da frente, chegava-se à sala, virando para a esquerda estavam a cozinha e copa, de onde Amanda e Guinevere estavam, e atravessando a sala passando ao lado da escada para o segundo andar estava um confortável banheiro. No segundo andar havia três quartos e um corredor. A casa era pintada de branca e o piso de alvenaria da mesma cor, que Amanda fazia questão de manter sempre limpo, mesmo que nunca ninguém o sujasse, ela insistia em limpá-lo, talvez para passar o tempo.

- Mamãe, temos visita para o jantar. – disse Kal enquanto subia as escadas para o segundo andar.

- Como assim? – perguntou ela vindo com um pano de prato enxugando as mãos.

Kal olhou para os lados, Daimon levantara-se do sofá e parou para fixar o olhar em Kal, assim como Guinevere fez em seguida.

- Os Chiabai, lembra?

- Kalevi, você deveria ter me consultado primeiro. Não sei se podemos recebê-los agora...

- Eu acho uma ótima idéia. – disse Cacius que acabara de abrir a porta.

- Professor... o senhor tem... certeza?

- Sim, por que não sra. Foster?

- Não sei, talvez não seja prudente... acho que não nos acostumamos muito bem com a situação...

- Pois eu acho que vocês já estão bem acostumados. – opinou.

- As lâmpadas da casa vivem piscando por causa da radioestesia, se ainda fosse de dia... não sei se vai ser uma boa idéia...

- Não se preocupe. Vamos dar um ótimo jantar.

- Obrigada, professor.

- O senhor está se convidando? – perguntou Kal indiscretamente.

- Kalevi Foster, não seja indelicado.

- Não faz mal Amanda. Não faz mal. Nós realmente não explicamos aos garotos a situação.

- Certo, professor. Meninos, venham até a cozinha aqui comigo.

- Amanda, se me permite, poderia eu mesmo dizer isto ao Kal?

Ela deu de ombros e então seguiu para a cozinha com Daimon e Guinevere. Cacius acompanhou com o olhar os três até que finalmente haviam desaparecido de sua vista, então se voltou a Kal.

- É algo difícil de se resumir. É muito mais significante do que podemos imaginar.

- Desculpe, mas eu vou subir.

- Eu lhe acompanho. – insistiu o professor.

Kal terminou de subir os degraus até o segundo andar e seguiu caminho pelo pequeno corredor até o seu quarto, no fundo estava curioso para saber o que Cacius queria dizer-lhe. Sentia vontade de abraçá-lo e chorar a morte de seu pai, contudo ainda assim queria culpá-lo por tudo aquilo estar acontecendo. Queria dizer que ele deveria ter detido Kricolas assim que chegou na Cidade dos Elfos disfarçado de Nicolas Weny, que deveria ter protegido melhor o Livro de Merlin, que deveria ter encontrado a Página Perdia antes de Kricolas e que deveria ter feito tantas outras coisas para impedir que Adonis morresse.

- Não adianta me culpar, Kal. – falou Cacius e Kal percebeu que o professor estava lendo seus pensamentos, porque os grandes bruxos têm habilidades para fazer isto.

- É costume seu espiar o que as pessoas estão pensando? – perguntou ele deitando em sua cama e passou a jogar uma bolinha de tênis para cima.

- Não preciso ler seus pensamentos para saber que você está me condenando aí dentro. – retrucou o professor com sutileza – Eu gostava tanto de Adonis quanto você, Kal.

- Mas não sente tanto a falta dele como eu. – disse, parando de brincar com a bola e olhando para o professor com um olhar cortante e gélido, cheio de rancor.

- Você ainda tem sua mãe, seu irmão, seus amigos. Várias pessoas já passaram pelo que você está passando agora. E todas elas cometeram o mesmo erro que você está cometendo. Culpar alguém inocente.

Kal sentou-se em sua cama e ele olhou para fora, viu o reflexo do lago em toda a sua serenidade. Se existisse algo mais calmo, com certeza este era Cacius.

- As pessoas que sofrem perdas graves procuram uma válvula de escape para que possam drenar todo o seu rancor. E acho que infelizmente eu sou a sua válvula.

Kal desviava do olhar do professor fingindo estar intrigado com algo em cima do guarda roupas de quatro portas a sua frente.

- Isto não vai adiantar. – insistiu o professor.

O garoto mantinha-se concentrado na difícil tarefa de ignorá-lo. Cacius não era o tipo de pessoa que abria a boca a todo instante e quando fazia isto, merecia toda a atenção possível.

- Me culpar não trará seu pai de volta, Kal.

- E o que trará? – perguntou ele virando-se para frente da cama de Daimon onde o professor estava parado, de pé.

- Não há como... sinto muito...

- Sempre há uma maneira.

- Bem que eu queria, Kal. Não só por Adonis. Esta semana Kricolas matou outro amigo.

Kal olhou curioso para o professor, não ouvira nada sobre o assunto. Geralmente os guardas de Warren que os protegiam informavam-lhes o que estava acontecendo pelo país, alguns deles conseguiam edições do Folha Mágica, o jornal mais popular entre os bruxos, mas talvez esta nova morte estivesse relacionada com o fato dos guardas terem subitamente desaparecido da Rua Guaçuí.

- O que houve, afinal? – perguntou Kal olhando fixamente para Cacius.

- Algo trágico aconteceu com Mardo.

- Kricolas matou o Ministro da Defesa e Segurança Mágica? – espantou-se o garoto.

- Não sei se matar é exatamente a palavra, talvez com mais calma eu pudesse lhe usar outro verbo, – Cacius tinha uma voz pesada quase como se ela estivesse sendo empurrada garganta acima – mas sim, Mardo está morto.

- Por que ele fez isto?

- Não saberia responder a esta pergunta. Há mais coisas na mente de Kricolas do que poderíamos entender.

- Professor. – chamou Kal e Cacius sentiu-se aliviado ao perceber que a raiva do garoto estava se esvaindo – No ano passado eu perguntei ao senhor quanto tempo Kricolas demoraria em traduzir todo o Livro de Merlin.

- E eu lhe disse que era impossível fazer esta previsão.

Kal assentiu.

- Continuo tendo a mesma opinião, se quer saber.

- O senhor já leu o livro? – perguntou Kal, com interesse.

- Algumas partes. A complexidade do livro não é verdadeira.

- Como assim?

- Isto depende de quem o lê.

- Quer dizer que...

- Quero dizer que o Livro de Merlin arma um labirinto para aquele que não têm boas intenções. Isto acontece com a maioria dos objetos criados por magia do bem.

Kal achou este detalhe de magia do bem algo bobo, mas no fundo agradecia por ela existir e ser precavida o suficiente para que os segredos mágicos mais poderosos do mundo não caiam em mãos erradas.

- Isto impedirá Kricolas?

- Esta é outra previsão impossível. Para um bruxo comum, o fato de a magia do bem estar contida no livro é o suficiente para que ele não entenda nem mesmo o significado da existência do referido objeto. Contudo, tratando-se de Kricolas, bem, ele é o bruxo mais velho do mundo, certamente, e tem muita experiência. É como eu já havia lhe dito, nós não sabemos quais os limites de seu conhecimento. Encontrar o Livro de Merlin sozinho foi uma verdadeira prova de sabedoria. A magia que protegia o livro também era magia do bem, e ele conseguiu burlá-la.

- Entendo... então os guardas de Warren foram prestar uma última homenagem ao seu ministro? É isso?

- Não teria explicado melhor. – falou Cacius simploriamente.

- Professor Cacius, tia Amanda pediu para chamá-lo para almoçar. – disse Guinevere ao colocar a cabeça para dentro do quarto.

- Oh, sim, minha querida. Creio que eu e Kal já tenhamos conversado bastante.

Quando Cacius preparava-se para sumir no corredor ele foi interrompido pelo som da voz de Kal.

- Professor, desculpe-me e... obrigado também.

Cacius sorriu para o garoto e deu uma piscadela com um de seus brilhantes olhos azuis, como se dissesse “sem ressentimentos”.

- Senti pena do ministro... – comentou Guinevere sentando-se na cama de Daimon.

- Eu também. É sempre uma pena. – falou Kal.

Guinevere era uma garota muito bonita e que se assemelhava muito à Amanda em alguns aspectos, mas a mãe de Kal tinha os cabelos negros e olhos azuis, enquanto Guinevere tinha os cabelos castanhos e olhos esverdeados, porém o jeito, a maneira de falar e a meiguice eram idênticas. Ela fora morar com os Foster quando ainda tinha seis anos, logo após a perda dos pais, que também haviam sido mortos por Kricolas em sua fuga de Warren.

- É doloroso, não é? – indagou a garota – Perder uma pessoa tão importante.

- Sim... – disse ele sabendo que Guinevere referia-se a Adonis agora.

- Eu perdi meus pais, e agora o tio Adonis...

- Pelo mesmo assassino.

- Ele vai pagar.

- Isso eu te garanto. Ele vai pagar sim.

Durante o almoço eles retornaram o assunto sobre o jantar com os Chiabai. Cacius convencera Amanda de que aquela era uma boa oportunidade para eles se entrosarem com a nova vizinhança, e que seria importante para ela fazer algumas amizades, de forma que tivesse com quem conversar quando Kal, Daimon e Guinevere retornassem à Avalon.

Já convencida, Amanda pediu algumas sugestões de pratos para impressionar os Chiabai com uma boa comida, Kal, Daimon e Guinevere sugeriram pizza, haviam viciado desde que comeram uma de presunto no dia da mudança, mas Amanda não achou que seria muito prudente. No final do almoço ela já estava muito empolgada com os visitantes, e ordenou que os meninos arrumassem a casa enquanto ela e Guinevere se viravam na cozinha para preparar o jantar.

Cacius despediu-se de Amanda, Kal, Daimon e Guinevere logo após o almoço dizendo que deveria se encontrar com alguns outros bruxos do governo, porém antes disso providenciaria um outro grupo de guardas para protegê-los, já que não poderia fazer este serviço por muito tempo. Amanda perguntou se ele estaria para o jantar, mas ele não foi muito preciso em sua resposta, ainda assim os quatro ficaram esperançosos de que o professor pudesse voltar a tempo para ajudá-los com a recepção.

Aquela seria a primeira visita não mágica que a família Foster receberia e eles não estavam muito certos de como agir, do que preparar ou dos assuntos que deveriam ser desenvolvidos durante a noite. Cacius sugeriu então que um deles fosse a uma banca de revistas próxima e comprasse alguns exemplares para que eles pudessem conhecer melhor o universo não mágico. Amanda apenas levantou o dedo num estalo e apenas disse:

- Ótima idéia.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Imagem de divulgação

sábado, 22 de março de 2008

O Castelo de Avalon

Construído por Merlin, com alguma ajuda de Foster e outros bruxos da época, o castelo foi edificado em cima das nuvens de Cidade dos Elfos no momento em que a magia passou a ser mal vista pelos humanos não-mágicos.

Assim, Avalon passou a ser um lugar onde os bruxos poderiam praticar suas feitiçarias sem medo de retaliações.

Avalon é um nome comum na história de Merlin. Ele construiu várias outras, como a britânica, onde, supostamente, hoje é Glastonbury.

Várias histórias cercam Merlin, como o seu suposto envolvimento amoroso com Viviane, porém nenhuma delas é confirmada e provada pela história.

Alguns ambientes do castelo:

Primeiro andar – Sala de Clerigologia; Sala de Poções

Segundo andar – Sala de Feitiços (Roberta Skinger)

Terceiro andar – Salão de Katzin; Sala de Geomagia; Sala de Maldições; Sala de Feitiços (Tirso); Sala de Biomagia;

Quarto andar – Sala de Línguas; Enfermaria; Sala de Artefatos Mágicos

Quinto andar – Sala de aula de História; Salão de Tadewi; Diretoria

Sexto andar – Sala do Conselho Estudantil; Sala de Adivinhação

Torre do Sino – ponto mais alto da escola

quarta-feira, 12 de março de 2008

O passado de Amanda Foster

Amanda Jude Foster, nasceu na cidade de Aracruz – ES, em 1968, onde passou os doze primeiros anos da sua vida morando com os pais em uma área afastada da sede. De família humilde, Amanda estudou em casa e aprendeu noções básicas de magia com seus pais e a irmã mais velha, Lilith.

Aos treze anos, Amanda mudou-se para Cidade dos Elfos com uma bolsa de estudos para a Escola de Magia e Feitiçaria de Avalon. Lá ela se formou em 1985, quando foi trabalhar na sede do Governo como Auxiliar Da Inquisição de Criaturas Mágicas, no nordeste do país. Durante um trabalho, conheceu o jovem Adonis Foster, com quem se casou anos mais tarde, dando origem a dois descendentes, o que jamais acontecera na família Foster.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Capítulo 1 - Kal Foster e o Mestre das Sombras

Para Mardo Runifer, o ministro da Defesa e Segurança Mágica, aquele dia fora o mais cansativo do mês de janeiro. Após as comemorações de natal e ano novo, todo o país parecera explodir em conflitos. Incidentes mágicos aconteciam por toda parte e o governo teve que dobrar o número de funcionários para inspecionar as cidades mágicas que a cada novo dia preocupavam-se menos em manter-se em segredo. Há mais de mil anos bruxos e não mágicos deixaram de viver juntos, os bruxos refugiaram-se em suas florestas, erguendo pequenas cidades protegidas por encantos de forma que nenhum humano não mágico pudesse descobrir sua existência.

Após a nova fuga de Kricolas, semanas antes, na Cidade dos Elfos, e o sepultamento de Adonis Foster, bruxos de todo o Brasil passaram a migrar para os países vizinhos em busca de proteção e apoio. Um número cada vez maior de pessoas anunciava ter visto carruagens voadoras e pessoas montadas em vassouras atravessando cidades inteiras. O Ministério do Segredo Mágico, responsável por manter secreta a existência de criaturas mágicas no Brasil, tentou contornar a situação enviando bruxos disfarçados de ufólogos. Eles se infiltravam na população destas cidades e espalhavam boatos sobre disco voadores e alienígenas. Em pouco tempo a situação foi controlada e as pessoas se convenceram de que não estavam vendo nada de mais, as carruagens voadoras na verdade eram “apenas aviões de teste”, pois era mais simples aceitar essa idéia que a de seres de outro mundo.

Com os humanos sob controle, o Governo, através do Ministério da Defesa e Segurança Mágica, alegou que ninguém corria riscos de permanecer no país e que não havia motivos para que as pessoas abandonassem suas casas. A fim de aliviar ainda mais as tensões, Mardo Runifer anunciou pelo jornal Folha Mágica, o maior tablóide mágico do país, que dois terços da Guarda Armada de Warren, soldados da maior penitenciária para bruxos e criaturas mágicas do país, estava fazendo rondas periódicas em busca de Kricolas e seus aliados, Elvira Lugunster e sua filha Tâmisa, que no ano anterior haviam contribuído para que o meio-vampiro roubasse o Livro de Merlin, o maior livro de magia do mundo e que fora escrito pelo próprio mago Merlin há quase mil anos.

Agora, o ministro Mardo chegava ao seu escritório exausto e louco para sentar-se em sua larga poltrona de espumas. A sede do Governo Mágico estava localizada entre os estados do nordeste do Brasil, onde nenhum humano seria capaz de chegar sem recorrer à magia. Escondido pela vegetação agreste e pela terra seca nordestina, o prédio de dois andares e de formato circular abrigava todas as repartições públicas e abrigava algumas salas particulares que eram alugadas para alguns empresários.

Mardo esfumaçara no corredor do segundo andar onde ficava sua sala, as luzes estavam apagadas, mesmo já sendo noite, e aparentemente todo o prédio estava vazio. Esfumaçar é a maneira mais prática de se deslocar de um lugar a outro para os bruxos, um tipo de teletransporte. Mardo arrastou sua pasta de couro embaixo do braço suado por causa do paletó marrom que trajava. A cabeça redonda e quase toda afetada pela calvície, suava a ponto de respingar no tapete vermelho estendido. Os últimos dias não haviam sido gentis com o ministro. “Muita pressão. Muita pressão”. Repetia ele.

Quando já se aproximava de seu destino viu que uma das salas no final do corredor à esquerda estava iluminada e decidiu ir até lá para espiar. Raramente alguém ficava no prédio depois das oito, mesmo em situações tão críticas. A única vez que isto acontecera fora há poucas semanas, no primeiro dia de trabalho do jovem Bernardo Mecflex, ou Escritor da Terra, como também era chamado.

- Quem diabos está naquela sala? – indagou-se Mardo quase enfurecido.

Não havia sons vindo de parte alguma e o corredor estava escuro quase que por completo, sua única fonte de luz era a da misteriosa sala.

- Algum funcionário irresponsável deve ter esquecido a lâmpada acesa. Estes incompetentes que me mandam. – bufou furioso – Nunca chegarão a lugar algum na vida, que desperdício de oxigênio, essa gente.

Em certo ponto a luz da sala se apagou e então Mardo soube que alguém estava ali ainda. Só não tinha idéia de quem poderia ser. Tateou no escuro enquanto procurava por sua varinha no bolso do paletó para iluminar o lugar. Sentiu-a entre os dedos, mas no momento em que ia sacar a varinha, deixou-a cair no chão. Bufando, abaixou-se para apanhá-la, assim que ergueu o gordo corpo para cima ele esbarrou em algum outro corpo fazendo-o desabar no chão num só baque.

Demonstrando uma agilidade tremenda, o ministro empunhou a varinha para frente, pronto para disparar o primeiro feitiço.

- Escap...

- Sou eu, ministro! – disse a pessoa que esbarrou em Mardo – Bolhasradiant!

Uma imagem quase espectral se conjurou na frente do ministro da Defesa e Segurança Mágica sob a fraca luz que incidia a sua frente.

- Dorian? – disse Mardo ajudando o outro a se erguer – Que raios de coisa está fazendo aqui uma hora desta?

- Ah, me desculpe, senhor. Estava terminando de ler os relatórios do Bernardo. Ele tem feito alguns progressos com os experimentos. O relatório diz que ele está próximo de um resultado satisfatório. – respondeu o bruxo que agora se mostrava mais visível.

- Não podia deixar isto para amanhã? – indagou.

- Estamos passando por um período de crise, senhor. Seria prudente terminarmos logo este serviço em especial. Acalmaria os ânimos das pessoas.

- Não estamos em um período de crise, Dorian, por mil chifres de unicórnios! Lembre-se disto, se quisermos que as pessoas acreditem que o país ainda é um lugar seguro para se viver devemos começar nos convencendo de que o é. Entendeu?

- Sim, senhor. – respondeu prontamente.

- Agora vá para casa. Descanse, pois amanhã será outro longo dia de trabalho.

- Tudo bem então, senhor. Tenha uma boa noite de sono.

- Se eu for dormir, você quer dizer. Sinto saudades quando meu maior problema eram duendes rebeldes e bruxos gatunos...

- Não se preocupe tanto, senhor, vivemos em um país seguro, lembra-se?

- Este é o espírito, Dorian, este é o espírito... até mais.

Dorian Gulemarc seguiu corredor afora carregando seus pouco mais de sessenta quilos e aparência esquelética, os cabelos totalmente desalinhados e um rosto exausto, onde as olheiras praticamente escondiam os olhos castanhos e o nariz parecia dobrar de tamanho a cada dia ganhando todo o espaço de onde deveria haver uma boca, que raramente se fechava.

Mardo retornou para seu caminho, ainda mais louco para sentar-se em sua poltrona de espumas, ficara ansioso por isto o dia inteiro. A mesa de sua secretária estava vazia, se não apenas por um copo de café. Todos os dias, antes de ir embora, ela preparava um pouco da bebida e depositava em sua mesa para que o ministro tivesse o que beber em sua ausência.

- Obrigado mais uma vez, Tifany. – agradeceu Mardo apanhando o copo após perceber que ele fora devidamente enfeitiçado para não esfriar.

O ministro despejou sua bolsa de couro na mesa largou o corpo em sua poltrona de espuma soltando um largo “ah” de satisfação. Bebericou seu café e começou a ler os bilhetes em sua mesa.

- Reunião com o presidente no sábado... ler relatórios de Bernardo Mecflex... enviar tropa de apoio aos guardas no sul do país... e ora ora. – disse o ministro parando de supetão e inclinando-se para frente – Um recado de Cacius! O que este velho caduco quer comigo?

Cacius, o diretor da maior escola de magia do Brasil, Avalon, de longe era um velho caduco. Ostentava o reconhecimento de maior autoridade em magia da América do Sul, acumulava prêmios de Honra ao Mérito reconhecidos internacionalmente e era um dos bruxos mais influentes no meio mágico, nos dias atuais. Raramente ele entrava em contato com pessoas senão de seu corpo docente, Cacius tinha a incrível habilidade de resolver seus próprios problemas sozinho. Coisa que muita gente não conseguia mais. Era isto que intrigava Mardo Runifer, o porquê do recado. Nele, Cacius solicitava que o ministro comparecesse ao seu escritório em Avalon para uma reunião imediata. O diretor não ocupava um cargo público, desinteressou-se pelo assunto após a primeira decepção, sua única prioridade era o bem estar dos humanos, bruxos, ou não, e demais criaturas mágicas.

- Quanta petulância! Eu sou o ministro e ele exige que eu vá vê-lo! – resmungou Mardo – Que se dane este velhote! Tenho muito mais com o que me preocupar. Na certa ele quer me mostrar aquele quadro esquisito em sua sala, francamente...

O quadro a que o ministro se referia era uma pintura a óleo de Merlin sob a sombra de uma macieira. Cacius dizia que aquele quadro era uma espécie de termômetro de perigo e que nos últimos dias tem alertado que o mundo está à beira de um colapso. Cacius insistia que o fato de Merlin estar olhando para os lados a todo o momento tem íntima relação com a liberdade de Kricolas e o fato dele ter adquirido o Livro de Merlin.

Em sua última conversa com o diretor da escola, Mardo havia deixado claro que não permitiria que Cacius se pronunciasse diante a população sobre o assunto. Relutante, Cacius foi obrigado a concordar, pois caso contrário teria sua escola fechada. E esta era a última coisa que ele queria.

- Estou te avisando, Mardo. É um grande engano. E você será o primeiro a pagar pelos seus erros... me escute, por favor – insistia o diretor – Não pode esconder a verdade destas pessoas. Não tem o direito... elas precisam saber a dimensão do perigo.

Segundos depois, sem nem mesmo dizer uma única palavra, Mardo saíra do escritório de Cacius.

Voltando ao presente, ele refutou o bilhete jogando-o em uma lixeira e passou a analisar os demais. Após uma breve olhada, segurou seu copo de café quente mais uma vez e reclinou na poltrona balançando-se de um lado ao outro.

Ele girava a poltrona até sua estante de livros, que acumulava volumes de diversos assuntos, ele rodava novamente e tinha uma visão privilegiada de toda a sua sala, com piso de madeira e tapete marrom, paredes também de madeira quase que completamente tapado por estantes, montes de caixas e papéis, sua mesa não era uma das mais arrumadas, havia vários relatórios por cima dela, penas, tinteiros, agenda e folhas de pergaminho em branco com o selo do governo. No teto pendia um lustre de vidro com uma das lâmpadas queimadas, era difícil mantê-las funcionando com tanta magia circulando pelo lugar.

Do lado oposto a sua estante estava uma janela que ia do chão ao teto, as cortinas estavam abertas e a fraca luz da lua iluminava o ambiente. Mardo continuou com sua brincadeira na poltrona por longos minutos até quase cair no sono. Lembrou-se de outros incidentes mágicos que haviam ocorrido nos últimos dias no mundo dos humanos, a maioria deles envolvia a aparição de uma estranha criatura grande, forte, enrugada e com par de asas de morcego. Kricolas.

O meio-vampiro estava de fato dando uma tremenda dor de cabeça ao ministro e todo o seu pessoal. Ele aparecia e desaparecia dos lugares como um fantasma. Nunca deixava pistas e jamais cometia erros. Suas ações eram sempre precisas e no tempo certo.

Há três dias ele aparecera no sudeste do país e atacara três homens que saiam de um bar. Com essas três vítimas o vampiro contabilizava vinte mortes desde Adonis Foster. Os corpos foram encontrados por uma senhora de meia idade na manhã seguinte. Ambos estavam com mordidas no pescoço. Na cidade o caso foi registrado pela polícia e apelidado de “O vampiro suga álcool”, devido ao estado de embriagues dos homens.

Stack.

Mardo levantou assustado com o que ouvira. O estalo pareceu ser dentro de sua própria sala. Parou por um instante. Analisou e apurou os ouvidos, mas não ouviu mais nada. Decidiu então perguntar.

- Dorian? É você? Já disse que pode ir para casa, homem. Vá descansar!

A voz ecoou pela sala, mas não houve resposta. Mardo decidiu que aquilo era apenas sua imaginação. Estou cansado. É só isso. Apenas cansaço.

Ele tocou o pé no chão para dar um impulso à cadeira para que pudesse voltar a se balançar de um lado para o outro novamente.

Girou o corpo para a estante. Depois para a janela. Estante. Janela. Estante... e quando pela quarta ou quinta vez que se virava para a janela sentiu cada pelo de seu corpo eriçar ao ver a fantasmagórica sombra formada a sua frente. O coração de Mardo quase saltou pela boca ao ver aquela figura horrenda dentro de sua própria sala.

- Feliz em me ver? – indagou Kricolas.

- O... o... que... fa...

- O que faço aqui? É isto que quer perguntar, seu gordo medroso? – Mardo continuava estático e Kricolas sorria mostrando seus dentes amarelos e desalinhados – Eu pensei em deixar hora marcada, mas achei que sua secretária não encontraria lugar na agenda para mim.

- O que... o que... o que você fez com ela seu maldito! – grunhiu Mardo tomando coragem.

- O que fiz com ela é passado, meu amigo. Deveria estar mais preocupado com o que vou fazer a você.

- Oras seu!

- Quanta valentia. Quem diria que por trás de tanta banha existe um espírito valente. – debochou Kricolas.

- Estou melhor do que você.

- Quero ver daqui a mil anos. – falou Kricolas irônico – É uma pena que não vá chegar nem aos cem.

- O que você quer de mim?

- Que sua equipe pare de me atrapalhar. Francamente! Eles estão por toda parte!

- Oras cale-se!

Kricolas avançou em direção de Mardo, agilmente, e dobrou seus dedos sobre a garganta do ministro dizendo:

- Não me dê ordens!

Mardo segurou o braço que Kricolas usava para sufocá-lo e então sentindo a respiração falhar balançou a cabeça assentindo que entendera bem o recado.

- Muito bom. Melhor que comecemos a nos entender cedo. – disse Kricolas soltando-o – Diga-me, onde está a família Foster!

- Não sei do que está falando. – desvencilhou Mardo.

- Não brinque comigo! Eu sei que o seu maldito governo tirou os Foster de Vila da Cachoeira!

- Realmente não sei do que você está falando...

- Mardo, seu inútil! Minha paciência está estourando. Quer me dizer onde-estão-os-malditos-Foster?

- E para quê? Já não arruinou o suficiente aquela família? Você já matou Adonis Foster! O que ainda quer? Matar três crianças e uma mulher? – indagou o ministro cheio de coragem.

- Bela atitude. Digna de elogios. Já que estamos nos entendendo tão bem, vou lhe contar o meu interesse neles.

- Vá para o inferno!

- Não me dê ordens! – berrou Kricolas mais alto do que um humano normal poderia gritar, uma voz gutural e cheia de ódio paralisou cada célula do ministro – Eu visitei o inferno em Warren, e não pretendo voltar para lá.

- Em pouco tempo você vai desejar estar lá.

- Por favor, ministro, tenha senso do ridículo. Em pouco tempo mestre Donnovan estará de volta! E eu governarei ao lado dele. Talvez eu use esta mesma sala quando estivermos no poder.

Mardo se contorcia na poltrona espiando por cima da mesa até a porta, torcendo para que ela se abrisse e que pelo menos dez guardas de Warren entrassem disparando feitiços para todos os lados e prendessem Kricolas definitivamente.

- Não seremos incomodados por guardas hoje ministro. – falou Kricolas como se tivesse lido a mente de Mardo – Certifiquei-me de que o prédio está vazio.

- Você sempre pensa em tudo, não é?

- Modestamente? Sim. – riu-se sardonicamente – Fazemos de tudo para sobreviver neste mundo, ministro.

- Cretino.

- Elogios não pouparão sua vida.

- E então? Qual o plano com os Foster? – perguntou Mardo para distrair Kricolas enquanto ele alcançava sua varinha no bolso do paletó.

- Achei que não estivesse interessado. – respondeu Kricolas dando as costas para o ministro.

- Ora, se vou morrer. Quero morrer sabendo alguma coisa.

- Isto foi quase filosófico.

- Vai me dizer?

Mardo ergueu a varinha com dificuldade, suas mãos tremiam e suavam muito. No momento em que preparava para dar o golpe certeiro em Kricolas, este virou-se mais rápido do que uma bala e fez com que a varinha de Mardo saltasse de sua mão e ficasse grudada no teto.

- Pensou que poderia me enganar?

- Parecia uma boa saída.

- Gosto do seu humor. – falou Kricolas após uma breve risada.

- Esta é a parte que você me convence a passar para o seu lado e ajudar você no seu plano maluco de ressurreição de Donnovan?

- Isto nunca foi uma opção, ministro.

- Bem, você recrutou a criada de seu pai e a filha e pelo que soube tentou persuadir o jovem Kalevi Foster a te seguir.

- Anda muito bem informado para alguém do governo.

- Por que o interesse em Kalevi?

- Kal para os íntimos.

- Você matou o pai dele!

- É minha maneira de começar uma amizade.

- Você é repugnante.

- Obrigado. – piscou – Muito bem então. Já que pretendo matá-lo, não há mal você saber o que planejo.

- Sou todo ouvidos. – confortou-se Mardo, ainda imaginando, esperançosamente, que mil guardas fossem entrar ali a qualquer minuto.

- O pequeno Foster tem o Enid de mestre Donnovan. E pretendo fazer com que este Enid domine todo o corpo e a mente de Kal.

Enid é a parte mágica de um bruxo, um tipo de alma que se recebe ao nascer. Crianças bruxas não choram ao nascer porque recebem um Enid. No entanto, há treze anos, quando Kal Foster nasceu, ele chorou feito um bebê humano qualquer e somente seis anos depois ele misteriosamente recebeu seu Enid. Naquele momento ninguém imaginou como aquilo poderia ser possível, mas no ano anterior, Kricolas contara ao próprio Kal como ele adquirira o Enid de Donnovan.

- Você é um porco imundo mesmo, Kricolas!

- Obrigado. Obrigado. Não é todos os dias que encontramos pessoas tão agradáveis como você.

- Você não passa de um covarde! Precisa do seu grande mestre para fazer com que as pessoas te obedeçam, não é? Você não é tão bom assim.

- Não se trata de covardia! – Kricolas bateu firme sua mão direita na mesa, o suficientemente forte para parti-la em alguns pedaços – E sim de lealdade!

- Quase mil anos já se passaram Kricolas... não há como trazê-lo de volta. Kal Foster não se renderá ao Enid de Donnovan.

- Eu sempre penso em tudo. Lembra-se?

- O que quer dizer?

- Se o pequeno Foster não quiser cooperar terei que fazer da maneira mais difícil.

- Retirar o Enid dele?

- C'est la vie. Kricolas dá, Kricolas tira.

- Você sabe bem que para fazer isto ele precisa estar...

- Morto. Isto mesmo. Vejo que não faltou a nenhuma aula na escola, ministro.

- Não vai ser tão fácil arrancar a vida de um aluno de Cacius, ainda mais sendo ele um Foster.

- Oras cale-se. Cacius não é problema para me preocupar. Já tirei o Livro de Merlin dele. O que pode fazer?

- Não duvide daquele velho.

- Quem te vê falando deste jeito pensaria que você é muito fiel a ele.

- Se cheguei aonde cheguei foi porque Cacius me apoiou.

- E parece que você não soube retribuir muito bem tantos favores.

Mardo calou-se ao olhar na lixeira o bilhete amassado.

- Termine logo com isto. Vamos!

- Disse para não me dar ordens. – falou Kricolas agarrando Mardo pela garganta mais uma vez – Será o seu fim!

Mardo examinou sua sala por um último segundo sabendo que aquela seria sua última visão. Ele passara tantos anos entre aquelas quatro paredes que aquele lugar havia se tornado seu segundo lar, sua maior fortaleza. Ele não era casado, tão pouco tinha filhos, e às vezes ele passava semanas ali. Seja lá para onde estivesse indo, sentiria saudade da sala número 219 da sede do Governo Mágico.

- Alguma última palavra? – indagou Kricolas.

Fazendo um esforço enorme, Mardo cuspiu no rosto do vampiro e disse:

- Vida longa a Kal Foster!

- Veremos. Boa noite ministro.

Como nunca antes, Mardo gritou, era pura dor e agonia, para sua sorte aquilo não durara mais do que cinco segundos. A sala foi impregnada por um forte odor de carne e sangue e Kricolas parecia sentir-se imensamente satisfeito.

- Você foi um tolo em não me contar a localização dos Foster. Bem, há outras pessoas com quem posso me informar. Os Scheiffer, por exemplo...

Enquanto olhava pela última vez o que fizera a Mardo, Kricolas ouviu passos vagarosos vindos do corredor do lado de fora da sala. Ele espiou por entre a porta e viu um vulto se aproximando cada vez mais rápido. Imediatamente, Kricolas se pôs em posição de ataque e assim que o vulto ficou a um metro da entrada da sala, ele abriu a porta e agarrou-o pelo pescoço.

- Não, por favor! – disse o homem – Estive procurando o senhor.

- Todos estão!

- Tenho um interesse em especial, senhor, meu nome é Dorian.

- Me dê um bom motivo para não fazer o mesmo que fiz com Mardo.

Dorian Gulemarc olhou horrorizado para o que deveria ser o corpo do Ministro da Defesa e Segurança Mágica, então voltou-se até o meio vampiro a sua frente e disse:

- Eu sei onde estão os Foster.