quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Capítulo 15 - Os segredos de Nicolas Weny

As férias estavam sendo muito divertidas em Vila das Cachoeiras, por mais estranho que isto pudesse parecer. Kal, Daimon e Ralph acordavam bem cedo para tomar banho no pequeno rio que circundava a vila que dava origem à cachoeira. Os outros habitantes, apesar de não se expressarem abertamente, sentiam-se incomodados com o retorno dos Foster. Não deixavam seus filhos se divertirem com ele e mantinham um tipo de distância segura. Kal não conseguia aproximar-se mais do que cinco metros de uma pessoa sem que ela se afastasse instantaneamente.

- Eles são sempre simpáticos assim? – perguntava Ralph rindo-se.

- Só quando estão de bom humor. – respondia Kal.

Amanda preparava seus biscoitos de nata todas as manhãs com Guinevere, a cada dia elas ficavam mais parecidas. Adonis estava com uma vida bem agitada, corria de casa para a fábrica, de volta para casa então ia à sede do governo e três vezes por semana visitava Thom no Hospital Nautilus.

As aulas recomeçariam em pouco menos de duas semanas. Era mais do que o suficiente para cansarem de Vila da Cachoeira e desejarem voltar o mais rápido possível para Avalon.

Os pais de Ralph o escreveram para dizer que estavam bem e que continuavam buscando Kricolas com toda a equipe de Warren, o que não era uma novidade, porque faziam esta busca há mais de nove anos. A última notícia que circulou nos jornais nacionais era a de que o meio-vampiro estava escondido na África. Outra notícia importante dizia que o famosíssimo Sr. Weny continuava buscando pelo Livro de Merlin.

Os quatro passavam as noites conversando ao redor da mesa na sala de visitas da mansão e naquela noite não foi diferente. Quase que como um ritual eles começaram a falar sobre o Livro de Merlin.

- O que Cacius acha disso? – perguntou Daimon – O que será que ele pensa por ter alguém procurando o livro?

- O que ele tem a ver? – questionou Ralph.

- Bem, sendo ele considerado o Merlin dos tempos atuais, o livro por direito é dele não? Assim como ficou sendo o castelo. – explicou Daimon.

- Se ele mesmo não pôde encontrá-lo, talvez o melhor a fazer é deixar que alguém o encontre. – disse Ralph.

- E o que o Sr. Nicolas Weny quer com o Livro de Merlin? – questionou Guinevere entrando na conversa.

- Poder infinito. – sugeriu Ralph dando de ombros.

- E o que se faz com poder infinito? – retrucou Kal – Dinheiro e fama ele já tem.

- Talvez ele esteja apenas em busca de outro grande desafio. – falou a garota – O trabalho dele é solucionar mistérios mágicos.

- Como ele pode ter certeza de que o Livro de Merlin está na Cidade dos Elfos? – perguntou Kal muito pensativo.

- Quem sabe ele leu o mesmo livro que você ganhou de aniversário. – falou Daimon.

- Como você sabe que lá fala sobre o assunto?

- Ai, Kal... eu estava folheando...

- Olá, meninos! - saudou Adonis da porta do salão – Aproveitando as últimas semanas de férias?

- É. Estávamos falando sobre o Livro de... – Daimon foi interrompido por um beliscão de Kal, uma pisada de pé de Ralph e um olhar fulminante de Guinevere.

- O livro de Cacius... Bela obra... – continuou Kal.

- É uma pena que não fala nada sobre o Livro de Merlin. O assunto favorito de vocês, o assunto de toda as férias... – irrompeu Adonis em uma dramatização melancólica.

- Não, papai... Porque nos interessaríamos pelo Livro de Merlin? – perguntou Kal seriamente.

- Você não sabe mentir, Kal... – disse Adonis.

- Tudo bem, eu não sei mentir...

- Ok, quem quer saber mais?

Adonis puxou uma cadeira para sentar-se perto dos garotos e começou a passar algumas informações que eles já conheciam. Haviam pesquisado bem sobre o livro e sabiam que tinha sido escrito por Merlin após o sacrifício de Foster, e nele estavam todos, ou pelos menos a maioria, dos feitiços do mundo, além de alguns outros desconhecidos e muito poderosos. Adonis completou dizendo que os feitiços do livro eram tão incríveis que nem mesmo ele seria capaz de realizá-los.

- Talvez nem mesmo esse tal de Nicolas Weny seja capaz de usar o livro... – continuou.

- Então Cacius também não poderia usá-lo. – falou Guinevere.

- Professor Cacius, querida. – corrigiu Adonis – E tenho absoluta certeza. Se existe um homem neste mundo capaz de usar o Livro de Merlin este alguém é o professor Cacius. – terminou enfaticamente.

- E Kricolas? – perguntou Kal – Acha que ele consegue, pai?

- Oh... Bem, é outra coisa... Um bruxo milenar... Deve estar nos mais altos níveis de magia... Quem sabe... – Adonis lançara uma nuvem de incertezas e mudou de assunto em seguida – Tenho que sair agora, meninos. Mas vou contar um segredo a vocês antes. É que eu esqueci que neste final de semana, eu e Amanda, comemoramos quinze anos de casados... Bem, eu pretendia dar a ela um belo fim de semana, e como esqueci, não sei se vou conseguir. Felizmente, tenho um amigo que é dono de um hotel no sul do país... Vou direto para lá agora, me desejem sorte. Até mais.

Esfumaçou sem dizer qualquer outra palavra.

- Olha só Daimon, ele não precisou ser lembrado este ano... – brincou Kal.

Amanda parecia inquieta e nervosa na véspera do fim de semana. Atrasava com as refeições, deixava seus biscoitos passarem do ponto e não conseguia manter uma conversa por mais de meio minuto. Guinevere disse aos garotos que Amanda achava que Adonis não se lembrara do aniversário dos dois, o que era uma meia verdade. O casal não estava conversando muito, ela por não conseguir se concentrar em um diálogo e ele por ainda estar envergonhado de não ter se lembrado mais cedo e ter preparado algo melhor do que um final de semana no hotel de um amigo no sul do país.

No jantar da sexta-feira, Adonis pediu a atenção deles, Amanda, Kal, Daimon, Guine e Ralph, para fazer um breve pronunciamento. Batendo com o garfo em uma taça ele começou:

- Bem, gostaria de anunciar que Amanda e eu sairemos este final de semana para comemorarmos nossos quinze anos de casados em um hotel que reservei com dias de antecedência...

Amanda imediatamente simulou uma tosse. Aparentemente, Adonis mentia tão bem quanto Kal.

- Ah, meu amor! Você é sempre tão rápido nestes assuntos. – falou Amanda abraçando firmemente o marido como se realmente estivesse surpresa.

- Mentir não é o forte da Família Foster. – cochichou Kal para Ralph.

Depois de terminarem de jantar, todos subiram para os quartos ansiosos por uma boa noite de sono. Kal, no entanto tinha outros planos. Ele iria para a Cidade dos Elfos.

Deitou-se em sua cama com a barriga para cima e fechou os olhos. Inspirou fundo e expirou... Repetiu o exercício por longos minutos até finalmente relaxar e então pôde viajar pelo Plano Astral.

Lá ele estaria livre para sair e viajar rapidamente até a Cidade dos Elfos. Era apenas pensar no lugar que queria visitar e então estaria lá. Assim fez. Fechou os olhos e pensou na cidade, em suas casas, lojas e árvores. Quando os abriu ele estava ao lado da Livros & Boatos, no meio da Amazônia.

Algumas pessoas ainda estavam andando pela cidade, uma dessas pessoas era Nicolas Weny. Ele fazia gestos estranhos com uma das mãos e a outra segurava um pedaço de papel, parecia um mapa.

Nicolas seguiu pela trilha que levava ao pequeno pomar de macieira da cidade. Kal resolveu acompanhá-lo. O bruxo agitava uma das mãos e ela parecia ter vontade própria, apontando em diversas direções, até que finalmente cessou os movimentos.

- Que inútil... – resmungou Nicolas e voltou à cidade para a Pousada das Fadas onde estava hospedado.

Kal seguiu-o, mas ao ouvir um estalo no pomar, correu para ver o que era. Cacius estava de pé no mesmo lugar em que Nicolas estivera há pouco. Ele espreitava cada canto, como se procurasse algo. Olhou fixamente na direção em que Kal estava como se pudesse vê-lo, mas o garoto sabia que ninguém o via no plano astral. O diretor deu as costas a Kal, adiantou alguns passos e disse antes de esfumaçar disse:

- Espero que alguém o vigie por mim...

Kal tomou um susto com a fala de Cacius. Chegou a ser tamanho que ele foi imediatamente sugado de volta para o seu corpo.

Amanda e Adonis saíram bem cedo, carregados com malas, apenas terminaram o café e se despediram dos garotos com um forte abraço e uma série de recomendações.

A esta altura Kal já tinha contado tudo a Ralph, Daimon e Guine. Contara quando viu Nicolas e depois Cacius. Os três ficaram muito impressionados, também, com a atitude do professor. Apesar de todos os livros dizerem que uma pessoa não poderia ver outra no plano astral, Kal começava a pensar diferente. Afinal, Cacius não era qualquer pessoa.

- Você vai ter que nos ensinar a fazer a projeção astral, Kalevi Foster! – intimou Guinevere – Além do mais, você vai precisar de ajuda se quiser espionar o Sr. Weny.

Sem relutar, Kal pegou o seu livro, “Além da matéria” e lendo-o achou uma instrução de como realizar a projeção astral em grupo. Parecia algo bem simples. Bastava Ralph, Daimon e Guinevere deitarem-se de forma bem relaxada e Kal iria dar algumas instruções de como deveriam respirar e o que deveriam pensar.

Após umas três horas de tentativa, eles resolveram parar e descansar. Não agüentaram ficar parados nem vinte minutos e voltaram a sessão. Com mais alguns minutos, Ralph parecia ter progredido e entrado de vez no plano astral, o que deixou Kal muito animado, inicialmente. Mas o ronco que produziu logo em seguida indicava que a única coisa que ele via eram ovelhas pulando cerca.

Quando já estava anoitecendo, Kal desmontou-se na cadeira em que estava sentado e dormiu. Algo, no entanto, o fez despertar rapidamente, não no plano físico e sim no astral. Ele olhou para os três corpos estirados no chão e avançando pelas páginas do livro, descobriu um exercício muito mais eficaz que poderia ser feito dali mesmo, do astral. O efeito foi imediato! Agora, os quatro estavam juntos em outro plano que não o físico.

Em pouquíssimo tempo, Kal mostrou-lhes como andar naquele mundo tão estranho. Advertiu-os de que veriam objetos fora do comum e pessoas que não existiam, nem mesmo como fantasmas.

Dando-se as mãos, Kal, Ralph, Daimon e Guinevere rumaram até a Cidade dos Elfos. Encontraram-na bem vazia desta vez, nada de Nicolas ou de Cacius, apenas uma cidade inóspita. Voltaram. Eles retornaram tão exaustos aos seus corpos que dormiram naquela mesma posição.

Sr. e Srª Foster chegaram de viagem por volta das sete da noite, carregados de lembrancinhas que distribuíram entre os quatro. Passaram a noite contando novidades do sul, algumas histórias interessantes também. Os quatro aproveitaram bem aquele momento porque sabiam que seria um dos últimos. No domingo seguinte retornariam a Avalon e durante aquela semana eles sairiam no plano astral para observarem Nicolas a pedido de Cacius, supostamente.

Na segunda, terça e quarta-feira não houve nada de diferente. Quinta-feira, no entanto, eles viram Nicolas sair escondido da pousada e esfumaçar rapidamente.

- Ele não pode esfumaçar de dentro da pousada. – informou Daimon.

- Para onde terá ido? – perguntou Ralph.

- Acho que eu tenho um palpite. – Kal avançou pelas ruas rapidamente seguido pelos três, chegando assim à pequena e velha loja no final da cidade.

Nicolas abriu a porta e trancou-a, impedindo que Kal, Ralph, Guinevere e Daimon pudessem entrar.

- Não podemos entrar em lugares trancados. – lamentou Kal.

- Mas temos varinhas para ouvir o que está acontecendo lá dentro! – disse Ralph erguendo a sua – Captus! – a expressão alegre evaporou de seu rosto assim que percebeu que não conseguiria ouvir nada – Parece que ele bloqueou a sala contra o Captus.

- E então? O que nós faremos? – perguntou Daimon.

- Realmente eu não sei... – disse Kal desanimado – Acho que devemos esperar...

E certamente esperaram muito. Nicolas saiu da loja quatro horas depois de ter entrado, esfumaçando rapidamente. Outras três pessoas encapuzadas também saíram depressa esfumaçando no momento em que atravessaram a porta. Sem deixar qualquer chance de serem reconhecidas.

Felizmente, a porta ficara aberta permitindo que entrassem. O lugar estava do seu modo habitual, velho e acabado. Kal aproximou-se de uma cadeira e fechou os olhos na esperança de enxergar alguma coisa. Mas não parecia possível ter visões do passado no plano astral.

Toda aquela espera fora inútil. E na sexta-feira e no sábado nada mais aconteceu. Nicolas Weny não colocou os pés na Cidade dos Elfos.

No domingo, logo cedo, Adonis acordou os garotos porque deveriam embarcar na Cidade do Norte de volta a Avalon. Daimon nem se agüentava de ansiedade para retomar os estudos. Kal pretendia voltar o mais rápido possível para ficar de olho em Nicolas.

- Vamos, garotos! Apressem-se! Ainda temos que passar no Hospital Nautilus. Soube que Thom acordou ontem! – dizia Adonis enquanto guardava as malas na carruagem.

- Então ele saiu do coma, tio Adonis? – perguntou Guinevere visivelmente alegre.

- Sim, pelo que soube foi isso. Agora, subam.

Era a mesma carruagem que haviam vindo da Cidade dos Elfos, sendo puxada pelas mesmas vassouras. No entanto o percurso era muito menor, cerca de três minutos. Nem ao menos deu tempo de incomodá-los com o silêncio constrangedor.

- Chegamos ao Hospital Nautilus! – informou Adonis inutilmente, já que, Kal, Daimon e Guinevere conheciam bem o lugar. Talvez a informação servisse para Ralph.

Eles desceram da carruagem e entraram rapidamente no hospital.

- Bom dia, Sr. Foster. Aqui tão cedo? – disse uma mulher morena e gorda atrás de um balcão branco.

- Bom dia, Zileuza. – cumprimentou Adonis – Como está Thomas?

- Ontem estava bem disposto, mas Elvira achou mais prudente que ele passasse uma última noite aqui. O que foi uma sorte, porque Thomas entrou novamente em coma.

- Pelas barbas de Merlin... – entristeceu ele – Vou subir agora. Venham, garotos.

Adonis avançou até o elevador com portas douradas o que foi suficiente para embrulhar o estômago de Kal.

- Oitavo andar! Depressa! – nem ao menos tiveram tempo de ouvir a voz feminina do elevador. Ele começou a sacudir e balançar. Ia de um lado para o outro. Kal, Daimon, Guinevere e Ralph já haviam caído no chão e estavam rolando de acordo com o movimento. Quando Adonis disse “depressa”, o elevador deve ter entendido “violento”. Em sua última manobra ele girou 360° e parou. Os quatro estavam estirados no chão, de pernas e braços largados e, misteriosamente, Adonis continuava de pé.

- Ornitorrinco, Opandor! – disse Adonis em frente a uma porta e com um clique ela se abriu.

Thomas estava completamente imóvel em cima de uma cama típica de hospital. Nas paredes havia alguns armários suspensos com frascos de poções, deveriam ser remédios, e espalhado pelo restante do quarto, havia algumas cadeiras com almofadas. O lugar era pequeno o suficiente para que ficassem espremidos.

- Bom dia, Sr. Foster. – cumprimentou Elvira que estava sentada em uma cadeira na cabeceira da cama.

- Bom dia. Thom entrou em coma novamente?

- É... Ontem à noite ele teve outra forte recaída... – respondeu a mulher coçando a nuca.

- É uma pena... O que a médica falou sobre isto?

- Ela disse que é natural levantar do coma e voltar em seguida. – disse bem convicta.

No mesmo instante, Drª Samantha abriu a porta olhando muito curiosa para as pessoas que estavam ali.

- Ops... Desculpem-me, quarto errado...

- Não, não, não... Está no lugar certo, doutora.

- Ah é? Este é o quarto do boto cor-de-rosa, Thomas?

- É o quarto do Thomas sim, mas ele é um vampiro.

- Urgh... Boto cor-de-rosa tem mais charme...

- Pois sim, Drª Samantha, estava dizendo ao Sr. Foster que o Thomas entrou em coma depois de um momento de lucidez. O que você disse ser muito normal. – enfatizou Elvira.

- Eu disse isso? Quando? – questionou a médica olhando para o teto com o dedo na boca.

- Coitadinha... Ela é um pouco afetada. – cochichou Elvira para Adonis enquanto girava o dedo na têmpora.

- É... Percebe-se...

A médica aproximou-se de Thomas e começou a medir a pulsação.

- Por Merlin! Não tem pulso! Depressa chamem um médico! – disse apavorada.

- Você é médica doutora Samantha... – disse Adonis – Ele é um vampiro, vampiros não têm pulsação.

- Oh certo... Você não imagina como é estranho dar vida a um paciente morto. – disse ela rindo – Ok, tudo normal... Não há pulso, olhos vermelhos, pele muito pálida, músculos exageradamente flexíveis e temperatura corporal abaixo dos 36º. Para um vampiro está muito bom. – falou ela se levantando da cadeira em que estava e retirando-se para fora da sala.

Adonis e os garotos se acomodaram nas cadeiras e passaram ali algumas horas. Elvira e Adonis conversaram sobre Thomas enquanto Kal, Daimon, Guinevere e Ralph ficavam encarando-se, ambos dizendo facialmente que estar ali não era a coisa mais agradável do mundo.

Após as duas primeiras horas, Elvira começou a ficar inquieta em sua cadeira, minuto em minuto ela consultava o relógio na parede como se estivesse esperando alguém, ou algo. Depois que brincar com os dedos perdeu a graça, Kal começou a observar bem atentamente a sala. Pousou o olhar numa das prateleiras e dedicou-se a ler os rótulos dos frascos, e os que não tinham, tentava adivinhar o que seria pela cor ou textura aparente.

Quando Elvira percebeu o interesse dele pelos frascos, levantou-se da cadeira decidida e posicionou-se entre Kal e a prateleira com a desculpa de precisar esticar as pernas. A partir daí ela começou a andar em círculos pela sala e Adonis percebeu a inquietação.

- Algum problema, Elvira?

- Oh, como?

- Perguntei se há algum problema. – repetiu Adonis – Precisa de alguma coisa?

- Oh não, claro que não. É que... Que está na hora do remédio do Thom. – disse ela se apressando para o armário que Kal tentara enxergar.

Elvira retirou um frasco do armário, levemente nervosa.

- Precisa de ajuda? – indagou Adonis.

- Não se incomode. Não precisa. – Elvira retirou a própria varinha das vestes e enfiou dentro do frasco – Não tem colheres aqui...

- Compreendo. – falou Adonis educadamente.

- Beba Thomas, beba tudo... – dizia ela enquanto fazia um líquido esbranquiçado descer pela goela do vampiro – Isso, isso. Vai ficar bom logo.

- Bem, tenho que levar os garotos até a Cidade do Norte. Lá pegarão condução até a escola. – falou Adonis já de pé – Qualquer nova notícia, entre em contato comigo.

- Certamente. – falou ela conduzindo-os até a porta.

Já no corredor, eles esperavam a máquina assassina do Hospital Nautilus, chamada elevador, chegar para que descessem. Quando ela surgiu apareceu uma figura inusitada, Tâmisa.

- Oi! – cumprimentou Kal imaginando o que ela estaria fazendo ali.

- Olá! – respondeu rapidamente e seguiu pelo corredor.

- Uma graça a filha da Elvira, não? – disse Adonis entrando no elevador.

- Ela, Tâmisa? Filha da Elvira? – indagou Kal.

- Sim, ela mesma. Acredito que irá esfumaçar na Cidade dos Elfos. Não se preocupem, vocês poderão esfumaçar quando tiverem idade. – terminou Adonis apertando o botão para descer.

Na Cidade do Norte o clima era de entusiasmo. Os alunos que estavam esperando pelas carruagens andavam agitados com suas bagagens nas mãos. Kal achou tudo aquilo burrice, uma semana de aula com Amadeus Wosky era muito mais que suficiente para cortar o ânimo mais excitado, como o de Daimon e Jonathan, que acabara de encontrá-los.

- Eu achei uma carruagem vazia. – disse ele – Vamos.

Os quatro garotos despediram-se de Adonis que aproveitou para dizer a Ralph que ele seria novamente bem-vindo se quisesse passar as férias de final de ano em Vila da Cachoeira.

Eles apenas subiram na carruagem e as cinco vassouras presas a ela subiram, sozinhas, de forma imediata.

- Fomos os primeiros a sair! – observou Daimon.

- As vassouras levantam vôo quando a cabine se completa com cinco alunos. – informou Jonathan.

Depois de subirem acima das nuvens, as vassouras estabilizaram-se em uma única direção e voaram rapidamente. Daimon e Jonathan aproveitaram a viagem para colocar o papo em dia, e enquanto eles conversavam, Kal, Ralph e Guine preparavam uma estratégia para vigiarem Nicolas Weny o máximo de tempo possível.

Quando o sol já começava a se esconder, as cinco vassouras deram uma guinada para baixo e atravessando as nuvens, os garotos viram que já estavam de volta à Cidade dos Elfos.

Kal saltou rapidamente da carruagem com sua mala e correu para o alojamento de Tadewi a fim de guardá-las e sair de volta para ir até a velha loja averiguar o que Nicolas fazia lá. Daimon ficara conversando com Jonathan na praça e Kal puxou Guine e Ralph pelo braço para se apressarem.

Depois de guardarem as malas na república eles correram até a velha loja, o que não foi notado, porque todos os demais alunos estavam tão eufóricos quanto eles. Chegando lá abriram a porta com estrépito e viram ninguém menos do que Nicolas Weny, encostado em um balcão, parecendo falar sozinho.

- Olá... – disse Kal sem graça.

- Ah... Olá! Quem são vocês e o que estão fazendo aqui? – perguntou impaciente.

- Somos fãs... – falou Guinevere abobalhadamente.

- Não dou autógrafos. – respondeu de forma ríspida.

- Não queremos autógrafos. – retrucou Kal.

- O que vocês querem então?

- Saber o que vem fazer aqui com aquelas outras três pessoas. – disse Kal honestamente e de forma desafiadora.

- Ora, ora... Tenho pequenos detetives atrás de mim? – perguntou Nicolas com um sorriso debochado.

- Talvez... – disse Ralph.

- Estou fazendo o meu trabalho! – disse ele dirigindo-se até a saída.

Nicolas esbarrou no ombro de Kal no momento em que passou por ele, fazendo o garoto gritar e em seguida cair no chão com impacto.

- Qual o problema dele? – perguntou Nicolas e então saiu.

- Kal, você está bem? – perguntou Guinevere erguendo-o.

- Eu vi, Guinevere! Eu vi Nicolas matar uma pessoa.

- O quê? – espantou-se Ralph.

- Nicolas matou um homem! Eu não vi quem era. Era como se eu fosse a vítima. Ele tocou na pessoa e ela morreu. Estrangulamento.

- Kal, você tem certeza disso? – perguntou Guinevere – Isto é muito grave.

- Sim, eu tenho certeza, Guinevere. Tenho certeza... Amanhã falarei com o Professor Cacius.

Naquela noite, Kal ficou revendo a visão em seu pensamento até adormecer. Se é que ter sonhos com assassinatos era de fato adormecer. Em um destes sonhos ele se viu matando Ralph e depois investindo em Guinevere, logo acertou Daimon com um feitiço que o fez saltar dez metros e bater com a cabeça numa parede. Ainda no sonho, ele caminhou entre pessoas desconhecidas, correu por uma multidão e encontrou Thalis. Ele ergueu Kal pelo pescoço e jogou-o de lado com extrema facilidade.

- Kal... – cutucou Guinevere para acordá-lo – Acorde...

- Gui-Guinevere. Onde eu estou? – perguntou ele meio zonzo.

- Na enfermaria. Você não acordou ontem de manhã. Trouxemos você para cá...

- Fiquei em um dia inteiro inconsciente? – duvidou.

- É, ficou sim. – respondeu uma voz serena.

- Professor Cacius – disse ao vê-lo.

- Está se sentindo bem agora? – perguntou.

- Estou. Obrigado.

- Srta. Lingenstain, poderia nos dar licença?

- Sim, professor. – Guinevere recolheu seus materiais e saiu da sala trancando a porta.

- Coisas estranhas têm acontecido não é mesmo?

- Estranhas, sim... estranhas. – respondeu Kal sentando-se na cama.

- Você não confia no Sr. Weny, não é? – perguntou Cacius sorrindo para ele.

- Assim como o senhor... – respondeu suavemente.

- A questão é: qual o interesse de Weny em um artefato mágico antigo e muito poderoso?

- Não acredita que seja apenas interesse profissional, professor?

- Ora, é bem difícil, isso, quando se trata de um artefato capaz de fornecer extremos poderes.

- Professor Cacius, como o senhor não encontrou o Livro de Merlin ainda?

- Eu nunca o procurei. – respondeu instantaneamente.

- E por que não? – espantou-se Kal.

- Merlin o escondeu há muito tempo. Ele não devia querer que o livro ficasse exposto.

- Professor, posso te fazer outra pergunta?

- Certamente, Kal, certamente. – assentiu.

- Por que o senhor entra nestes assuntos comigo? – Kal fixou seus olhos nos de Cacius – Por que eu sou quase Donnovan?

- Sabe que não é Donnovan, Kalevi. E respondendo a sua primeira pergunta, eu converso mais com você porque gosto de ouvi-lo. – disse Cacius em meio a um sorriso de satisfação – Assim como eu converso com meus outros amigos. Agora devo deixá-lo descansar... – disse ele já se retirando.

- Há mais uma coisa. – falou Kal olhando fixamente para o professor.

- Sim. – disse Cacius girando o pescoço.

- Nicolas Weny esconde uma coisa.

- Todos escondemos. Todas as pessoas precisam ter seus próprios segredos.

Assim que Cacius saiu da ala hospitalar, Kal voltou a dormir, mas acordou no outro dia bem cedo muito bem disposto para voltar às aulas. Logo na primeira ele percebera que o segundo semestre não seria tão fácil quanto fora o primeiro.

Tirso estava ensinando muito mais teorias do universo do que feitiços propriamente dito. Daimon havia dito que a partir daquele momento os professores tinham que fazê-los interagir muito mais com as forças universais para que eles pudessem ficar mais fortes. Até mesmo as aulas de Relações com a Natureza estavam diferentes. Haviam mudado de horário e agora eram praticadas à noite sobre a luz de cada astro das plantas. O astro da Herviana de Kal era a Lua.

Thalis fora escolhido para estudar em Tadewi e agora dividia o dormitório com Ralph, Kal e Pedro. Ele se desenvolvera muito bem nos últimos dias. Visitou Kal na enfermaria com Guine e Ralph e apresentava um bom rendimento na sala de aula. A perda dos pais ainda o abalava muito, mas certamente esta era uma ferida que logo iria cicatrizar.

Os dias pareciam bem mais calmos quando não se é um Guardião-mirim. Nada de intervir em brigas e confusões, nada de fazer relatórios ou aplicar detenções, se bem que não era nenhum sacrifício fazer Rick Wosky pegar umas duas horas de castigo aos sábados.

No Quizard, as equipes de Tadewi e Katzin lideravam o campeonato, como todos os anos, Angus havia perdido quase todas as partidas. Os alunos desta república podiam ser bem talentosos com uma varinha, mas não tinham um espírito guerreiro como os das duas outras. A última e decisiva partida estava marcada para o final de dezembro. Seria em um campo criado exclusivamente para a ocasião na Cidade dos Elfos.

Quando o primeiro dia de setembro chegou, veio acompanhado de uma grande surpresa, especialmente para Kal. No primeiro embarque do mês até Avalon ele viu um broche bem familiar com as inscrições RW num uniforme de Katzin.

Rick Wosky era oficialmente o novo Guardião-mirim de Avalon.

- Que cretinos! – bravejou – Deram meu distintivo ao Rick.

- Ele também é de Katzin, esperava o que? – disse Guinevere.

- Agora o Conselho Estudantil é composto apenas por alunos de Katzin! – indignou-se Ralph.

- Não podemos, e nem devemos fazer nada. – aconselhou Guinevere.

- Isso vai ver ser problema deles! – disse Kal com ar de repugnância.

- Vai ser problema nosso também. – retrucou Ralph – Rick Wosky vai ficar no nosso pé...

Ralph era todo razão. Rick Wosky não estava facilitando nada para os alunos. Divertia-se aplicando detenções desnecessárias nos alunos de Tadewi e Angus e encobrindo as armações dos katzenianos. Por vezes, vários alunos queixaram-se com Amadeus, mas ele parecia ignorar. Devia estar achando o máximo ter seu filho como “dono da escola” e ainda por cima desafiante titular da equipe de Katzin no Quizard.

Rick só estava começando. Algo pior estava para acontecer...

domingo, 2 de dezembro de 2007

Capítulo 14 - O Enid na sala circular

Cidade dos Elfos estava com grandes sinais de destruição. Os Griphons haviam feito estragos em quase todos os cantos e as pessoas estavam coagidas no jardim da Rainha Eva e nas três repúblicas. O palanque que fora armado para a palestra estava dividido em três partes e uma delas sobre a copa das árvores mais próximas.

Enquanto saia da floresta, Kal olhava de um lado para o outro a procura de Daimon, Guinevere e Ralph. Sem encontrá-los decidiu por continuar seguindo Tirso até Cacius. Onde ele estaria? Pensou, pois não o vira no momento da palestra e nem quando os Griphons apareceram.

A poucos metros quem surgira fora seu professor de poções que estava tremendo, fosse de frio ou medo, mas estava. Ele segurava a varinha com as duas mãos e acenou com a cabeça ao ver Tirso e os outros se aproximarem.

- Professor Pote! – chamou Tirso – Onde está Cacius?

- Está no jardim da rainha, com os demais. Venham por aqui.

- Esses malditos Griphons fizeram um grande estrago. Diabos! – praguejou Amadeus.

- E os alunos? Estão bem? – perguntou Tirso.

- Devem estar, fugiram feito galinhas d’angola quando as criaturas apareceram. Nem parece que estudam magia. – retorquiu Amadeus mais uma vez.

- Não pode falar isto de todos os alunos, maldição. – falou Tirso piscando para Kal.

Amadeus entendera bem o que Tirso havia dito e resolveu calar-se durante o resto do percurso.

Em frente aos portões, Tirso se aproximou para que se identificar, com seu jeito peculiar, o portão se abriu para que eles se abrigassem junto com a multidão de quase 500 pessoas, abraçadas umas as outras, todos muito apavoradas.

- Kal! – berrou Guinevere assim que o avistou entrando e correu para dar-lhe um forte abraço – Você está bem?

- Estou, obrigado! Ralph e Daimon estão aqui também?

- Sim, estão com os pais do Ralph, ali.

Guinevere apontou para um casal de bruxos altos e intimidadores com os seus uniformes verde escuro, botas e luvas de couro e uma capa marrom. A mãe de Ralph tinha uma pele clara, longos cabelos cacheados que refletiam a pouca luz a sua volta. Os olhos verdes manchados com algumas lágrimas de felicidade por ver o filho. Seu marido, um homem robusto e de expressão amigável afagava as costas do garoto, mas sempre vigilante ao que estava ocorrendo. Foi o primeiro a perceber a entrada de Kal nos jardins do castelo.

- Kal, vou precisar de você um minuto. – falou Tirso – Thalis, poderia nos acompanhar.

- Quem é ele? – cochichou Guine.

- Depois explico.– respondeu Kal – Tenho que ir.

Tirso, Amadeus, Kal e Thalis seguiram por um estreito corredor até uma sala no segundo andar. Nenhum deles desviou o olhar do caminho, nem mesmo para observar as tapeçarias nas paredes, o carpete floral ou as estatuetas. O único som que se ouvia no corredor era o de passos apressados que eram amortecidos pelo tapete. De todos, Thalis parecia ser o mais assustado com tudo aquilo. Bruxo ou não, ele estava entre pessoas desconhecidas que o levavam para lugares também desconhecidos a todo o momento.

Tirso parou diante uma sala de porta dupla, a porta tinha um formato arredondado para acompanhar o interior da sala que guardava.

Cacius os esperava de pé em uma pequena sala circular no segundo piso da casa de Eva. A rainha estava ao seu lado com as mãos segurando o rosto em expectativa e pavor. E Mardo, o Ministro da Defesa Mágica, estava sentado em uma cadeira tamborilando os dedos no na barriga e olhando para cima apreensivo.

A sala, que devia servir para receber visitas tinha um grande sofá verde e várias tapeçarias penduradas nas paredes e outras tantas estiradas ao chão. Os vitrais retratavam os dias de construção da Cidade dos Elfos, e uma janela mais ao norte tinha uma visão privilegiada da floresta.

- Professor Cacius. – começou Tirso – Kal encontrou este garoto perdido na floresta. Estava sendo atacado pelos Griphons quando apareceu.

Todos encararam Thalis com profunda curiosidade. Amadeus escaneava o garoto com o nariz torcido com certa repugnância e muito desprezo.

- Professor, acho que devemos apagar a memória do garoto e devolvê-lo aos pais. – sugeriu o professor de maldições.

- Este menino não tem pais agora, professor Wosky. – respondeu Cacius tristemente – Esta tarde Kricolas cometeu dois outros terríveis assassinatos. Não imagino como um garoto humano pode sobreviver a ele e chegado até aqui, mas, este conseguiu.

- Ele é um bruxo, professor! – falou Kal de forma que todos na sala pudessem ouvi-lo.

- Tolice... – bufou Amadeus de onde estava e virando o rosto para a parede.

- Ele usou a minha varinha para conjurar o Pelínculo. – continuou Kal.

- Não fantasie, Foster! – disse novamente Amadeus virando-se para os dois garotos – Professor Cacius, o senhor sabe tão bem quanto eu que este menino é apenas um humano de sorte.

- Sobreviver ao ataque de um vampiro assassino não me parece apenas sorte.

- O professor Tirso tem toda razão. – continuou Cacius – Talvez fosse sorte ele ter escapado conseguindo pular uma janela, mas esfumaçar a uma distância de quilômetros não é algo que um humano poderia fazer nem mesmo com toda a sorte do mundo.

- O senhor está dizendo que este garoto esfumaçou? – espantou-se Eva – Nem mesmo os nossos garotos conseguem fazer isso... – Eva olhou para Kal e ele sentiu-se diminuído.

- Professor, devemos ser sensatos. Humanos não podem esfumaçar...

- Professor Wosky. – pronunciou-se Mardo pela primeira vez – Meus guardas interrogaram as testemunhas do ataque antes de desmemoriá-las e todas disseram que depois de matar os pais, Kricolas se aproximou deste garoto erguendo-o pelo pescoço e no segundo seguinte ele virou fumaça, apenas uma nuvem de fumaça. Kricolas urrou feito um urso e então desapareceu sem deixar pistas.

- Kricolas deve tê-lo mandado para morrer na floresta! – insistiu Wosky.

Thalis sentara-se na poltrona e encarava as pessoas a sua frente, para ele desconhecidos, como se fosse uma rápida partida de tênis, olhando de um lado para o outro da sala.

- Muito bem. Por que não perguntamos como ele foi parar na floresta. – sugeriu Amadeus ainda incrédulo.

Cacius consentiu com a cabeça e lançou um olhar inquisidor a Thalis e como se o bruxo tivesse dito por pensamento alguma coisa o garoto começou a relatar.

- Depois que aquele monstro matou os meus pais, – disse ele e as lágrimas desceram ajudadas pelo soluço que o fazia tremer – ele partiu para cima de mim e realmente me agarrou pelo pescoço.

- Acalme-se e continue. – disse Tirso apoiando Thalis.

- Eu senti como se meu corpo entrasse em chamas, e aí estava em uma floresta... Andei por toda a tarde procurando ajuda. Ouvi barulhos e corri para ver se eram pessoas, foi quando aquelas criaturas me encurralaram e ele me salvou.

Kal sentiu-se corar.

- Realmente foi uma grande sorte este jovem bruxo ser encontrado pelo senhor Foster. – falou Cacius com um sorriso estampado.

- Professor Cacius... o senhor acredita mesmo que...

- Não é questão de acreditar, professor Amadeus. – cortou Tirso – Você acabou de ouvir ele dizendo que ouviu barulhos, barulhos vindos da Cidade dos Elfos.

Kal ainda não entendia a relação das coisas.

- Os encantamentos que protegem a cidade bloqueiam os sons produzidos, de forma que eles não possam ser ouvidos por humanos. – explicou Cacius.

- Sim sabemos, mas... como teremos certeza? – indagou a Rainha Eva.

- Revelarbus. – disse Tirso – Se Thalis for de fato um bruxo ele tem um Enid.

Kal enfiou a mão no bolso e retirou a própria varinha entregando-a a Thalis.

- Tome. Não precisa se intimidar. Apenas aponte a varinha para frente e diga: Revelarbus. – ensinou Kal – Da mesma forma que você fez na floresta.

Timidamente, Thalis se levantou e segurou a varinha. Empunhou-a firmemente apontando direto para o centro da sala, Mardo levantara-se de sua poltrona para visualizar melhor o que estava para acontecer e Amadeus descruzara os braços. Cacius gesticulou algo com os dedos e Thalis gritou:

- Revelarbus!

Uma forte e densa fumaça prateada varreu a sala até o centro provocando um pequeno estalo. Depois de reunida em um único ponto, a fumaça tornou-se menos densa e começou a subir revelando uma pequena figura masculina.

Todos se espantaram muito, até mesmo Cacius permitiu-se soltar um som de espanto ao ver um segundo Thalis naquela sala. Era como se o garoto estivesse de frente a um espelho. A fumaça revelara o mesmo corpo magro e comprido, os cabelos escuros, olhos castanhos, pele clara e macilenta.

Amadeus olhava para aquela imagem com asco e nojo, principalmente porque havia perdido a disputa que travara. Thalis não só era um bruxo, como também possuía um Enid próprio.

- Isto é espantoso... – falou Cacius muito curioso.

- É fantástico... – continuou Tirso.

Eva olhava muito espantada e deixara-se cair no sofá ao lado de onde Kal olhava o Enid brilhar, boquiaberto. Mardo retornou à poltrona incrédulo.

- Tome. – disse Thalis devolvendo a varinha a Kal.

- Lócus Amenus! – Tirso fez a ilusão desaparecer – O que faremos professor, Cacius?

- O que sempre fazemos. Vamos ensinar um jovem bruxo a fazer magia.

- O que? Ele não pode! Não no meio do ano! – retrucou Amadeus muito impaciente. – É errado!

- Errado é não ensinarmos magia a este garoto! – falou Tirso com azedume.

- Ele é um garoto humano! Filho de humanos!

- Ele é um autentico bruxo! E tem Enid próprio! Em alguns anos ele será grandioso. Wosky, seu amaldiçoado, você sabe bem que aqueles que nascem com Enid próprio tornam-se mais fortes porque a magia é gerada, e não herdada.

- Acalmem-se professores, acalmem-se. Avalon nunca fez distinção entre bruxos e humanos. Ela sempre esteve a disposição dos que quisessem estudar magia. Então, cabe a Thalis decidir.

Mais uma vez todos o encararam com apreensão, ele olhava de um lado para o outro tentando fugir dos olhares nervosos. Kal tinha a impressão de que Thalis devia estar se sentindo um animal enjaulado.

Alguns minutos que pareceram a eternidade passaram sem que qualquer um dissesse alguma coisa. Thalis ergueu a cabeça ainda indeciso, olhou para o rosto sereno de Cacius e então para uma aflita Eva. A cabeça de Thalis deveria estar rodando com tudo o que acontecera, a morte dos pais por um monstro assassino, ficar perdido em uma floresta e ser atacado novamente, ser salvo por um garoto desconhecido que o chamou de bruxo e então encontrar com todas aquelas pessoas em um jardim da casa de uma tal rainha elfa em uma cidade que mais lhe parecia um parque temático.

Virando-se para o outro lado viu Amadeus com uma cara amarrada e ranzinza. Mardo esperava sua resposta de cabeça baixa. Fosse para aonde fosse, estava mais do que claro que o professor não o queria por perto. Ainda assim, havia Tirso que até agora parecia estar sempre lhe defendendo e zelando pelo seu bem estar. Tirso abaixou-se na altura dos olhos de Thalis e disse:

- Escute, você não deve conhecer ninguém aqui. Mas saiba que estamos prontos para te ajudar. Avalon é uma escola, onde crianças com dons mágicos, como os que você possui, estudam para aperfeiçoá-los e aprendem a utilizá-los com responsabilidade. Eu estarei sempre lá, e vou te ajudar.

- Meu querido. – começou a falar Eva do lugar onde estava – Minha casa estará aberta para você. Não se preocupe com pouca coisa, você tem uma grande decisão a tomar agora. Ela mudará sua vida a partir deste momento.

- Seja qual foi a sua decisão, eu apoiarei. – falou então Kal pondo uma das mãos no ombro de Thalis.

Ouvir aquelas palavras produziu um efeito mágico nele, muito mais do que tirar coelho de uma cartola, derrotar criaturas estranhas em uma floresta ou conjurar uma imagem de si mesmo com uma varinha. A partir daquele momento, Thalis sabia que qualquer passo que ele desse não estaria desacompanhado. Três pessoas acreditavam nele e o apoiavam. Sendo um deles seu melhor amigo. Não é todo dia que dois garotos de treze anos derrotam monstros sozinhos em uma floresta. E quando se faz isto, é impossível não se gerar uma forte amizade.

- Professor Cacius, eu quero ir para Avalon. – falou Thalis de modo conclusivo.

- Mas isso... – quis retrucar Amadeus, mas não teve espaço.

- Não, não professor Wosky, como havia lhe dito, Avalon está à disposição de qualquer jovem bruxo que queira aprender. Thalis quer estudar em Avalon e ele irá ainda este ano!

- Professor Cacius, ele está despreparado. Não tem o nível de conhecimento dos nossos alunos.

- Ele pode não ter a prática, mas tem fibra para isso. Tenho certeza que aprender o conteúdo de um semestre em um mês não significa nada para um jovem bruxo que foi capaz de esfumaçar de maneira tão brilhante.

Não havia mais o que ser dito. Thalis aceitara a proposta de estudar em Avalon e Cacius dera a última palavra. Indiscutível.

Na manhã do dia seguinte todos ainda estavam muito agitados com o desastre que fora a palestra do tão famoso senhor Weny. No café, na Suor de Sapo, Guinevere e Daimon colocaram Kal e Ralph a par do que havia acontecido depois que eles saíram. Daimon repetiu todo o discurso de Nicolas como se fosse um gravador e Guinevere cortou-o contando logo a parte final.

- Nicolas disse que veio para Cidade dos Elfos procurar pelo Livro de Merlin!

Kal e Ralph suspiraram fundo e algumas pessoas que estavam no lugar os observaram por entre seus copos de refresco.

- Ele vai procurar mesmo? – perguntou Kal discretamente para que não fossem ouvidos.

- Sim, ele disse que sim. E foi aí que os Griphons surgiram. Todo mundo começou a correr e assim terminou a palestra. E vocês foram aonde? – quis saber Guine.

- Fomos até a velha loja. E quando toquei na maçaneta, eu vi Nicolas conversando com uma pessoa.

- Hum, foi uma visão? – perguntou Daimon.

- É, foi. – confirmou Kal – Ele parecia estar tramando. Acreditem em mim, foi ele quem trouxe os Griphons.

- Não diga asnices. A troco de quê ele estragaria a própria palestra. – retrucou Daimon.

- Eu também não entendo, mas tudo coincide... – insistiu.

- Tudo bem Kal, vamos esquecer isso um pouco. E o garoto que você ajudou. Quem é? – perguntou Guine.

Kal contou aos três sobre Thalis, quem era, como havia parado na floresta e o que acontecera na sala circular da Rainha Eva. Daimon levou a mão à boca sem acreditar. Guinevere deu um leve salto da cadeira mas logo se recompôs.

- Ele vai estudar conosco? – perguntou ela.

- Acredito que sim. Enquanto ficarmos de férias ele vai estudar muito com Tirso e os outros professores para nos acompanhar. – informou Kal.

- E onde ele está agora? – perguntou Ralph.

- Ele está na casa da rainha. Vai ficar lá agora nas férias. – respondeu Kal.

- E então, Ralph, conversou como seus pais? – perguntou Guinevere para mudar de assunto.

- Sim conversei com eles, pouco, mas deu para conversar. Eles partiram ontem à noite mesmo. Ficaram contentes por eu poder ficar na casa de vocês, porque eles não vão tirar férias ainda, ainda. Disseram que têm muito serviço a ser feito e que ainda têm que investigar esta invasão de Griphons.

- É claro... Pessoal, olhem! – Daimon olhava pela janela de onde se via inúmeras carruagens voadoras, todos em alta velocidade e aterrissando nas ruas da cidade,

Todos os pais de alunos vieram buscar seus filhos. A invasão de Griphons na Cidade dos Elfos parecia ter repercutido muito rápido. Os pais estavam aterrorizados e temiam pela segurança dos filhos, o melhor a ser feito era tirá-los imediatamente dali.

Um homem usando um chapéu pontudo e uma capa de viagem entrou na Suor de Sapo apressado. Era Adonis. Assim que avistou os quatro garotos chamou-os para a saída.

- Vocês estão bem? – perguntou ele conferindo se não estavam com machucados.

- Sim, nós estamos bem. Cacius nos protegeu o tempo todo. – disse Daimon.

- Professor Cacius, rapazinho. Agora vamos depressa, sua mãe está muito exaltada. Ralph, você vai ser bem vindo na nossa casa.

- Obrigado, senhor Foster.

- Hoje pela manhã aluguei esta carruagem e enfeiticei estas dez vassouras para que a puxassem. Não vamos demorar a voltar para casa. Passei na república e as malas de vocês já estão na guardadas. Só precisamos partir.

Os cinco seguiram até a carruagem estacionada em frente a Suor de Sapo e um pouco antes de subir na carruagem, Kal foi avistado por Rômulo que o chamou.

- Hei, Foster! –Rômulo estava ao lado de Marcos Herdam e Antonio Furtado. Os três estavam um bocado sérios.

- Algum problema Rômulo? – perguntou Kal.

- Não, é solução. – respondeu ele – Algumas pessoas não gostaram da sua atitude de punir um aluno da forma com que você fez com Rick Wosky. Lembra?

- Esse, algumas pessoas é Amadeus. – questionou Kal.

- Não interessa. Só o que precisa saber é que você não faz mais parte do Conselho Estudantil. – disse Rômulo com frieza na voz.

- E por acaso Amadeus ameaçou vocês caso não me expusessem? Ele ameaçou fechar o conselho, foi?

- Entregue-me seu distintivo ou...

- Ou vai arrancar à força? Tome esta porcaria! – gritou Kal jogando o objeto em Rômulo – Eu não preciso disto para parecer legal!

- É bom que não precise mesmo, Foster, porque não o terá mais! – disse ele e saiu.

- Algum problema, meu filho? – perguntou Adonis a Kal assim que este retornou – Parece abatido.

- Tudo bem pai, não há problema não. Aquele Conselho estava se tornando um estorvo...

- Então vamos, suba.

Kal entrou na carruagem que estava flutuando a trinta centímetros do chão, ele foi seguido de perto por Guinevere, Daimon e Ralph. Por último entrou Adonis que primeiro foi encantar as dez vassouras que estavam firmemente amarradas a carruagem de madeira.

Assim como a Vestuário, a loja de roupas onde eles haviam comprado os uniformes, a carruagem parecia bem desproporcional ao que se via por fora. Se do lado externo ela não media mais de dois metros, por dentro ela tinha o dobro de comprimento. Com duas poltronas largas, uma de frente para a outra e no fundo um tipo de porta malas, espaçoso o suficiente para carregar as quatro malas de roupas de Kal, Daimon, Guine e Ralph.

A primeira parte do trajeto foi feita em silêncio completo. Era tão constrangedor que eles evitavam se olhar. Ninguém parecia muito a fim de falar e ficaram o tempo todo olhando pela janela, para o chão, ou brincando com os dedos para fingir-se indiferente a situação.

- Nada de fadas Grullanas desta vez... – disse Ralph rompendo o gelo.

- Júlio me contou o episódio. Vocês foram valentes. – Adonis entrara no assunto e agora a nuvem de constrangimento parecia estar se dissipando.

- É... – falou Kal e o assunto foi encerrado.

Kal ainda estava revendo em sua cabeça a figura cínica de Rômulo pedindo pelo seu distintivo de Guardião Mirim. Não que importasse fazer ou não fazer parte do Conselho, mas a maneira como fora dispensado não era das melhores.

Depois de remoer tudo aquilo, Kal pensou em Thalis, ele perdera os pais fatalmente e fora para em um lugar cheio de desconhecidos. Mesmo ele sendo de fato um bruxo, não devia estar acostumado a ver elfos, fadas, gnomos, curupiras, saci e tudo o mais de criaturas mágicas.

Era um mundo completamente novo, cheio de mistérios e ainda teria que aprender praticamente tudo que os outros alunos primeiranistas sabem sobre magia no curto espaço de um mês. Mas alguma coisa dizia a Kal que era possível. Isto o tranqüilizava. De qualquer modo, ele não gostaria de se colocar no lugar do amigo. Perder um pai ou mãe já parecia muito doloroso. Mas perder os dois de forma tão trágica era infinitamente pior. Sabia disto porque ocorrera o mesmo com Guinevere, e mesmo que não parecesse, ela sentia-se triste todos os dias ao ver Kal e Daimon beijar Adonis e Amanda.

- Como passa o Thomas, tio Adonis? – perguntou Guinevere sem muito interesse.

- Mal, muito mal. Ainda está em coma.

- Eu devo me sentir culpada por isso? – perguntou Guine.

- Oh, claro que não querida. – Guinevere foi quem usou o Formanômago em Thomas para que ele voltasse ao seu estado normal, desfazendo a transformação, mas desde então ele tem permanecido no Hospital Nautilus. Um coma que já durava cinco meses.

- E quem é que cuida dele? – perguntou Kal.

- Elvira. Lembram-se dela? Ela fica com ele o dia todo e a médica é a doutora Samantha.

- A desvairada? – perguntou Daimon.

- A Conhecem? – indagou Adonis.

- É outra história pai... – falou Kal rompendo o assunto.

- Thomas é o vampiro pai de Kricolas não é? – quis saber Ralph.

- Sim, é sim. – respondeu Adonis.

- Acha que este coma pode ter algo a ver com o filho, senhor Foster? – continuou Ralph.

- Talvez Kricolas esteja induzindo o pai ao coma para ele não se meter nos seus assuntos. – disse Daimon.

- Huhuhu... O que é isto? O clube da conspiração? – brincou Adonis.

- É porque você ainda não ouviu a do Kal. – retorquiu Daimon.

- E qual então meu filho?

- Kal acha que o senhor Nicolas teve alguma coisa a ver com o incidente de ontem à noite. – fofocou Daimon.

- Que absurdo, Kalevi. De onde tirou isto?

- Bem, pai, você sabe, o professor Cacius deve ter contado que posso ver o passado.

- Sim, claro ele contou sim. É realmente fascinante isso, mas continue.

- Pois é... ontem à noite Ralph e eu estávamos entediados com a palestra e fomos para uma velha loja abandonada, onde às vezes ficamos papeamos. Quando eu toquei a maçaneta, vi Nicolas conversando com uma pessoa e ele disse que aquela noite seria inesquecível.

- Ora Kal... inesquecível poder ser qualquer coisa... – falou Adonis com um sorrisinho maliciosos no rosto.

- De qualquer forma, papai, por que Nicolas se daria ao trabalho de ir a uma velha loja dizer que aquela noite seria inesquecível? Então está na cara que ele não queria ser visto.

- Meu filho, há certas coisas que não podem ser explicadas. Além do que, foi uma visão, não poderia provar nada. Seria a sua palavra contra a dele. Melhor esquecer isso. Olhem! Chegamos!

Eles estavam sobrevoando o Bosque de Vinho quando Adonis anunciou que haviam chegado. Kal olhou pela janela e vislumbrou Vila da Cachoeira, há cinco meses ele partira e ela estava exatamente igual como havia deixado. As mesmas casas, as mesmas pessoas, enfim, nada mudara.

- Pai. – chamou Kal quando Adonis descia o degrau da carruagem atrás de Daimon, Guine e Ralph. – O que faria se pudesse ver tudo?

- Aprenderia a fechar os olhos. – disse prontamente e saiu.