quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Capítulo 6 - A Caixa de Pandora

Após o sexto insistente toque, Kal puxou o gancho do telefone e com um ligeiro temor colocou-o na altura do ouvido direito. Nos dois primeiros segundos torceu para que fosse um engano e que seus piores pensamentos não se concretizassem. Naquelas férias, por inúmeras vezes, ele assistiu a filmes na televisão em que telefones explodiam ao serem atendidos, mas achou que ninguém que ele conhecia tinha esse estilo.

- Boa noite, pequeno Foster.

Todo o sangue de Kal congelou ao ouvir aquela voz grave que penetrou em seus ouvidos e o fez oscilar em cima dos joelhos. Somente uma pessoa o chamava de pequeno Foster. E não era o mais carinhoso de todos, muito menos o seu predileto. Era Kricolas.

- Gostou do meu show? – falou mais uma vez, com se nem ao menos se importasse de ter alguém consciente do outro lado da linha – Tenho muito mais criatividade do que esses humanos bobocas que se dizem mestres de espetáculo.

- O que você quer? – perguntou Kal reunindo toda a coragem que ainda tinha.

- Conseguir um pouco de divertimento, mas meu prêmio maior seria você. – disse Kricolas em um tom anormalmente sereno – E veja como isso soa romântico. Parece até mesmo um pai pedindo para o filho retornar ao lar.

- Já não nos causou sofrimento demais?

- Não venha falar de sofrimento comigo! – retorquiu com fúria – Você e seus malditos antepassados Foster arruinaram meus planos por diversas vezes! Aquele primeiro e amaldiçoado que tive o gosto de matar destruiu meu mestre e nossos seguidores, e então seu filho, argh! Garner Foster! MISERÁVEL, nunca tive a oportunidade de beber aquele sangue! Construiu Warren e deixou-me apodrecendo por quase um milênio! Depois, seu querido pai, Adonis Foster, um perfeito intrometido para completar a linhagem. Meteu-se onde não deveria e fui obrigado a matá-lo. Sem falar nas outras tantas gerações de Foster que comandaram aquele maldito cativeiro que me consumiu quase por inteiro. Mas você, pequeno Foster, é o meu favorito, a minha sina... me pequeno milagre. Devo dizer que você ganhou o meu respeito por ter sobrevivido ao feitiço que matou seu pai, é claro que...

- Cale a boca! Cale a boca! Não fale do meu pai! – gritava Kal, enquanto Guine, Daimon e Sara olhavam para ele preocupadíssimos.

- Não ouse me interromper, se não irei pessoalmente me certificar de que você jamais fará isso de novo. – retrucou Kricolas com impaciência. Neste momento, Kal fez menção em largar o telefone, mas como se estivesse sendo observado de perto, o meio-vampiro rugiu.

- Não desligue, ou os pais de sua amiguinha humana sofrerão.

Kal sentiu toda a seriedade na voz de Kricolas e apenas assentiu que sim esperando que tivesse sido entendido.

- Como dizia antes de ser interrompido, – prosseguiu numa voz cordial – aquele dia você somente sobreviveu graças ao presente de Cacius. Aquela ametista sugou o meu feitiço e permitiu que você vivesse para sofrer mais um pouco. Mas foi bom que tenha acontecido. Tenho planos para você este ano, pequeno Foster. Como lhe disse na Cidade dos Elfos, meu mestre mora em você e com um pouco da minha ajuda e os exercícios certos ele poderá renascer em meio ao sangue que um dia o destruiu. Não seria irônico?

- Eu nunca vou cooperar com você! – disparou.

- Com a motivação correta irá sim, irá sim...

- O que você quer de mim ainda, Kricolas? Não se dá por satisfeito? Você matou os pais de Guinevere, e toda a família de Thalis – disse Kal puxando as informações da memória – Mais recentemente Mardo, não é? Para quê isso? Por que causar sofrimento nas pessoas? Monstro! – berrou Kal e teve certeza de que todos ao alcance de uns dez metros ouviram-no com clareza.

- Você ainda não descobriu qual o meu objetivo? Quer que eu desenhe? – debochou – Ora, pequeno Foster, pode ter coragem e determinação, mas não tem um bom cérebro. Eu não faço as pessoas sofrerem, apenas julgo se elas são descartáveis ou não para o meu propósito de ressuscitar meu mestre. Você ainda não é descartável, preciso de você vivo. Mesmo que não pareça. Este ataque foi apenas uma forma de me manter vivo em sua memória. E também tenho uma motivação pessoal de irritar os homens do governo. Uric Scheiffer, ainda o pego...

- Você nunca o pegará! Ele é um... – Kal parou abruptamente percebendo que Kricolas não estava mais do outro lado da linha após ouvir o sinal do telefone.

Kal colocou-o no gancho e olhou para Guine e Daimon, apático. Os dois o encararam com certa curiosidade, mas decidiram não comentar nada na frente de Sara. Kal, no entanto, não a poupou de nenhum detalhe da conversa, imaginando que algum guarda de Warren iria desmemoriá-la ainda naquela noite, como sempre faziam com não mágicos quando estes descobriam algum segredo sobre os bruxos.

- Quer dizer que Kricolas fez toda essa barulheira para chamar a sua atenção? – indagou Guinevere, incrédula – Ele não queria mesmo matá-lo? Ele fez aquelas criaturas o arrastarem para um lugar vazio apenas para assustar?

- Foi o que pareceu. – confirmou Kal, secamente.

- Quem é Kricolas? – perguntou Sara mostrando-se por fora do assunto dos amigos – Quem são vocês? Ou o que são vocês? Quem são aquelas criaturas e por que elas atacaram a todos no circo sendo que esse tal de Kricolas só tinha interesse em vocês três?

- Kricolas é um meio-vampiro sanguinário em busca de vingança pelo seu mestre morto por nosso antepassado, ah, ele também quer ressuscitá-lo usando um artefato mágico que ele roubou ano passado. Somos bruxos, mas ainda assim humanos como você ou qualquer outra pessoa. E respondendo a última, Kricolas ordenou esse ataque em massa porque ele é pirado. – respondeu Daimon, quase perdendo o fôlego porque estavam andando apressados até o carro dos Chiabai.

- Vocês? Bruxos? – repetiu incrédula.

- Levitoriano! – disse Kal acertando uma lixeira e fazendo-a levitar – Acredita agora?

- Bruxos não existem! Magia não existe!

- Existe sim, e aqui estamos nós. Também existem fadas, elfos, saci, curupira e tudo o mais que você leu em livros ou ouviu em histórias. – retorquiu Daimon com seriedade.

- Sara, é muito importante que tudo o que você viu hoje seja mantido em segredo. – disse Guinevere olhando fundo nos olhos da garota.

- Não há com o que se preocupar, Guine, alguém irá desmemoriá-la. – falou Kal.

- Você quer dizer, fazer eu esquecer tudo o que aconteceu? – perguntou com a mão na cintura – E se eu não quiser?

- Eles te amarrarão e farão assim mesmo. – finalizou Daimon, sem demonstrar nenhum tipo de ressentimento.

- Não podem! Não quero! – exclamou furiosa.

- E não iremos. – disse uma voz. Era Ivo – O que ainda fazem no parque?

Por um momento, Kal pensou em falar da ligação que recebera, mas achou que aquela informação não era necessária para Warren. Seu bom-senso dizia que sim, mas um lado de seu cérebro ficara relutante em contar. Esse lado venceu.

- Estamos saindo. – desculpou-se Kal.

- Não quero que apague minha memória! – disse Sara com bravura.

- E como já disse, não vou. Tenho ordens para deixá-la como está. No entanto a memória de seus pais já foi alterada. Como a de todos os outros não mágicos no parque. – informou Ivo.

- E por que ainda estão gritando? – perguntou Daimon olhando para trás e vendo ainda um resquício de pessoas desesperadas.

- Eles, agora, acham que os Griphons são vândalos disfarçados. Pobres ignorantes...

- Hei! – resmungou Sara.

- Desculpe. – disse honestamente – Sem enrolação, quero que vocês vão imediatamente. – frisou – É muito importante que fiquem seguros.

Os quatro acenaram com a cabeça e correram desenfreados. Sara sentiu um alívio imenso em sua cabeça sabendo que não perderia parte de suas lembranças, mas ainda seria difícil para ela aceitar que tinha amigos com poderes mágicos e que na cola deles havia um meio-vampiro assassino.

- Vocês têm mais algum inimigo? – perguntou.

- Kricolas não é nosso inimigo em particular. – respondeu Kal – Ele é inimigo de toda a comunidade mágica.

- Comunidade mágica? Quantos mais de vocês existem?

- Milhões no Brasil. Existem bruxos vivendo por todos os cantos, até mesmo embaixo da nossa lagoa. – disse Kal, como se o que estivesse falando fosse a coisa mais sensata do mundo para um não mágico.

- O quê? – espantou-se – Eu tomava banho lá quando era criança.

- Aquele é um lugar novo para os bruxos. Mas existem outros lugares muito mais antigos do que o próprio Brasil, entende?

Sara assentiu, mas resolveu continuar com o questionário.

- Onde vocês aprendem a fazer magia?

- Em uma escola, naturalmente. – respondeu Daimon.

- Será que um dia eu poderia conhecê-la?

- Duvido muito. Humanos sem poderes mágicos não têm acesso às cidades mágicas. Já é uma grande coisa você poder saber da nossa verdadeira existência. – disse Guine.

- Não entendo ainda por que permitiram que você soubesse de tudo. – disse Daimon, reflexivo.

- Ivo disse que tinha ordens de não trabalhar com a mente de Sara. Mas de quem será a ordem? – questionou-se Kal.

- Olha lá os meus pais.

Sara correu por entre os outros carros do estacionamento até que finalmente alcançou os braços abertos de Alexandre e Mara Chiabai.

- Graças a Deus vocês estão bem. – disse Mara – Dois policiais nos disseram para esperarmos aqui... não pudemos fazer nada... Kalevi! Este braço, está, está... – gaguejou procurando a palavra certa – Horrível!

- Está tudo bem comigo, sério. – disse meio que sem confiança enquanto segurava o braço contra o corpo.

- Depressa. Quanto mais rápido sairmos, mais seguros. – disse Alexandre já segurando a chave do carro.

Kal abriu a porta de trás do sedan e entrou com tanta pressa que nem ao menos reparou que sentara em um envelope amarelo. O carro foi ligado e em alguns minutos de estrada, os quais foram usados para comentar a “rebeldia dos jovens que atacaram o parque”. Os quatro garotos entreolharam-se e por um momento Sara sentiu inveja da inocência a que os pais foram forçadamente submetidos.

Alexandre guiou o veículo até alcançar a extremidade máxima da Rua Guaçuí. Kal, Daimon e Guinevere saltaram do carro atentos para qualquer movimento ao redor deles. Os três agradeceram aos Chiabai pelo “passeio” e despediram-se. Antes que o carro sumisse de vista, Sara gritou para eles que na manhã seguinte, logo após o café, ela iria visitá-los para continuar o assunto da noite. Na verdade foi um “Até amanhã cedo”. Mas podia sim ser interpretado dessa forma.

Kal abriu o portão utilizando a varinha, não queria perder nem um segundo do lado de fora procurando a chave certa. Atravessaram o jardim, fortemente vigiado pelas estátuas vivas que ganharam da Rainha Eva. Alguns gnomos apenas balançaram a cabeça ao vê-los passando, outros correram para escoltá-los até a porta.

- Obrigada. – agradeceu Guinevere, alisando a careca de um deles.

- Meninos! – disse Amanda saltando do sofá em direção à porta – Vocês nunca mais sairão à noite!

- Estamos bem, mãe. Não se preocupe. Soubemos nos defender.

- E os guardas de Warren? Não apareceram? – perguntou indecisa.

- Sim. Um tal de Ivo Gostuânia nos ajudou também. – respondeu Kal.

- Por Merlin! Apenas um?

- Não sei dizer, mas acho que havia outros sim. O movimento dos Griphons foi rapidamente contido, depois que o Ivo se identificou como guarda. Acredito que outros tenham lutado por lá. – prosseguiu Kal.

- E os Chiabai? Como estão?

- Acredite, estão melhores do que a gente. – disse Daimon – Os guardas tiraram a memória deles e de todas as outras pessoas que estavam lá. Fizeram todas acreditarem que foi um ato de vandalismo.

- Quase todas, Daimon. – corrigiu Guine.

- Como assim?

- Sara Chiabai teve a memória preservada.

Amanda levou uma mão à boca e caiu sentada no sofá.

- Mas por quê?

- Ivo disse que ele tinha ordens de não mexer com as lembranças dela. – informou Kal, vagamente.

- Quer dizer que ela sabe dos Griphons?

- E de nós também. – Kal resolveu omitir mais uma vez a parte sobre Kricolas.

- Por mil escamas de dragões... quem deu essa ordem?

- Não sabemos. – disse sinceramente, Guinevere.

- Amanhã falarei imediatamente com o professor Cacius. Agora, tomem um banho e durmam. Não quero saber de mais nenhum detalhe desta noite, ou nunca mais conseguirei dormir. Kal, filho, depois do banho vá até meu quarto para cuidarmos deste ferimento. – disse ela apontando para o braço ensangüentado do garoto.

Kal não se importou em nada em não ter que contar a mãe sobre suas aventuras dentro do circo e no trem fantasma. Sentiu apenas uma imensa vontade de limpar todo o corpo com água fria, tratar o braço ferido e ir dormir. Uma noite de sono seria o suficiente para refrescar a sua mente de tudo aquilo. Na manhã seguinte, Sara chegaria até eles com uma vasta lista de perguntas e sem saber por que, Kal sentia-se na obrigação de respondê-las. Más só amanhã... Pensou.

Muitas horas depois, Kal foi acordado por um irritante raio de sol que penetrou pela janela e repousou bem em cima de seus olhos. Uma noite de sono não fora o suficiente para recuperar os ânimos do garoto que levantou soltando impropérios que acordaram Daimon em seguida.

- Bom dia... – falou Daimon, espreguiçando-se em meio a um longo bocejo.

- Bom dia. – respondeu Kal acompanhando o irmão no bocejo – Isso pega...

Os dois desceram até a cozinha, ainda de pijamas, para tomar o desjejum. Lá estava Guinevere, que sempre levantava cedo, não importando a ocasião, e Amanda que estava segurando uma garrafa de café quente na mão quando os dois entraram fazendo barulho com o arrastar de pés.

- Dormiram bem? – perguntou Amanda – Porque eu não. Um dia meu coração ainda escapole pela boca. Se eu pudesse enviá-los mais cedo para Avalon eu ficaria muito mais tranqüila. Mas as Repúblicas ainda estão fechadas e não quero incomodar a Rainha Eva com minhas preocupações maternas.

- Tudo bem, mãe. Não há perigo aqui em casa. Estamos bem protegidos. – tranqüilizou Kal, imaginando que talvez a mãe mudasse de idéia quando ouvisse Cacius dizer que Cidade dos Elfos não era mais um lugar seguro.

- Olhe para o seu braço! Isso é proteção? – apontou para os ferimentos do garoto.

- Não vai passar disso. – falou Kal mantendo a calma.

- Não vai mesmo! Daqui vocês não saem mais. – disse em definitivo – Nem mesmo de dia. Não posso arriscar perder vocês. São tudo o que eu tenho...

Os três puderam sentir a comoção na voz de Amanda e não quiseram chateá-la com desculpas de que lá fora não era perigoso. Afinal, faltavam apenas duas semanas para as aulas recomeçarem em Avalon e na Cidade dos Elfos eles teriam muito mais liberdade para agir.

- Ok, mãe. Combinado. Não sairemos mais... – disse Daimon tentando disfarçar o desânimo.

Os quatro sentaram-se para tomar o café e comer um pão feito pela própria Amanda. Os programas de culinária que ela assistia na televisão estavam realmente valendo a pena. A cada dia ela aparecia com uma massa diferente de pão e bolo, além de receitas de sobremesa de encher os olhos e a boca com saliva.

Kal ainda estava com seu último pedaço de pão a meio caminho da garganta quando a campanha do portão de entrada tocou. De imediato ele soube que era Sara. Ele apressou-se a tomar mais um gole de café para facilitar a descida do alimento e correu para o segundo andar a fim de se trocar.

Ele subiu a largos passos pensando no que Sara perguntaria ainda. Afinal, ela já sabia que eles eram bruxos, que eram perseguidos por um meio-vampiro e que as criaturas da noite anterior serviam a ele, Kricolas. Kal inclusive usara a varinha na frente dela. E ainda tinha Ivo que revelou à garota sobre o que ele e os outros de Warren estavam fazendo com os não mágicos e que fizeram o mesmo com o senhor e senhora Chiabai.

Kal retirou a primeira peça de roupa do guarda roupa e jogou-se dentro dela o mais rápido que pôde. Ainda estava enfiando uma das mãos na manga da camisa quando retornou ao primeiro andar. Sara estava de pé ao lado de Amanda, Guinevere e Daimon. Amanda estava séria e ordenou que os quatro a acompanhassem até a cozinha. Eles seguiram em fila. Sara parecia mais nervosa que os demais. Não podia ser diferente.

- Sara, - começou Amanda olhando bem nos olhos dela – precisamos que entenda que não somos pessoas ruins. Eu sei como os não mágicos deterioraram a história dos bruxos através dos séculos. Nos associam a tudo o que é ruim, mas não é bem assim. Existem bruxos bons e bruxos ruins. Nós somos os bons e ontem você viu o que bruxos ruins são capazes de fazer. Compreende?

A garota acenou que sim com a cabeça, parecia menos nervosa naquele momento.

- Por que vieram para cá? – perguntou, honestamente, imaginando-se por que uma família de bruxos se mudaria para uma cidade habitada somente por humanos comuns.

- Coisas terríveis aconteceram conosco no ano passado. – respondeu Kal percebendo que sua mãe seria incapaz de responder a essa pergunta simples.

- Que coisas? – insistiu.

- Desculpe, mas essa é uma ferida que está cicatrizando ainda. Não queremos remoê-la. – disse Amanda em tom convincente.

- Nossa vizinhança corre algum perigo com vocês estando por aqui?

- No tempo em que vivemos, todos os humanos correm perigo. Bruxos ou não. - prosseguiu Amanda com temor na voz.

- Como assim? – indagou mais uma vez Sara, mostrando-se obstinada a obter todas as informações.

- Essa história pode ser muito maior do que pensa. – iniciou Guinevere – Mas vamos fazer um breve resumo.

Ela concordou com a cabeça.

- Há alguns anos, o meio-vampiro, Kricolas, fugiu da penitenciária de Warren. – informou Kal – Ele tinha um mestre chamado Donnovan, que foi destruído por um antepassado nosso. Enfim, como Daimon explicou para você ontem, Kricolas roubou um artefato mágico poderoso para ressuscitar o tal mestre. Donnovan é um bruxo cruel e que odeia não mágicos. Ele quer acabar com todos vocês.

- Quer dizer... eliminar todos que não tiverem poderes como vocês?

- Isso. – confirmou Daimon – Mas acreditamos que ele vai querer uma vingança antes. Por isso estamos aqui. Nos escondendo.

- Pai! – exclamou com a mão na boca – Vocês correm sério risco de vida...

- Nem tanto. – interrompeu uma voz.

Quando Sara percebeu que o falante era um gato cinza que estava sentado no parapeito da janela ela deu um salto para trás.

- Esse gato... ele fala? – perguntou incrédula apontando para o felino com o indicador direito enquanto a mão esquerda segurava o queixo para que não caísse.

- Mais respeito! Eu não sou um gato. Sou um guarda de alto-posto em Warren. – declarou.

- Algum problema, Stuart? – perguntou Amanda reconhecendo o gato.

- Vim apenas conferir se está tudo bem por aqui.

- Estamos. – disse Kal.

- E a garota? – perguntou espiando Sara – Soube que Uric deu uma ordem para não desmemoriá-la.

- Uric Sheiffer permitiu isso? – questionou Amanda.

- Sim, senhora. Uric é o único em Warren que tem poder para essa decisão.

- Stuart, o Folha Mágica publicou alguma coisa sobre o incidente de ontem? – indagou Amanda mudando de assunto.

- Sim, em uma notinha de rodapé. Eles ocuparam todo o jornal com uma única e grandíssima matéria.

- Que tipo de matéria poderia ser de maior destaque do que um ataque de Griphons em uma cidade não-mágica?

- A de um roubo muito, muito estranho. Também realizado por Kricolas. – disse o guarda.

- E quem foi roubado? – perguntou Sara já se sentindo parte daquilo tudo.

- O fauno Saguior. – respondeu Stuart com uma má vontade estampada em seus olhos felinos por estar dando informações a uma simples garota humana.

- Saguior? – duvidou Kal – O fauno que faz parte do Conselho de Magia?

- O próprio.

- O que foi roubado dele? – perguntou Amanda curiosa.

- Leiam vocês mesmo. – disse o gato estendendo a cauda, que enrolava o jornal.

O mal pode estar à solta

Foi roubado da Biblioteca Central da Cidade do Norte, ontem, um dos artefatos mágicos mais antigos e controversos da antiguidade. O artefato era guardado em sigilo pelo fauno Saguior que amargamente lamentou a perda. Segundo ele, pela manhã uma garota chamada Tamisa Spineli apareceu na biblioteca procurando um inocente livro de poções, ele a deixou sozinha por um tempo e segundo suas suspeitas ela averiguou onde ele guardava o artefato.

Na mesma noite, Saguior foi surpreendido por ninguém menos do que Kricolas. O meio-vampiro parece estar colecionando artefatos mágicos antigos. No ano passado, ele localizou o lendário Livro de Merlin, carregando-o consigo. No entanto, Saguior tem seus temores, pois o artefato mágico em questão era nada mesmo do a Caixa de Pandora.

Segundo lendas populares e alguns relatos históricos, a Caixa de Pandora abriga os males do mundo. Emoções terríveis, como, ódio, inveja, desprezo... Questionado pela nossa equipe o por que dele estar com a caixa, Saguior simplesmente respondeu “protejo a caixa muito antes de todos que existem no mundo usarem fraudas”. Sabe-se que Saguior é uma das criaturas mágicas mais antigas existente, mas não sabemos o quanto. Essa informação a nós não foi revelada.

Alguns bruxos que trabalham no Departamento Secreto do Governo acreditam que Kricolas pretende abrir a caixa e lançar sobre a Terra um reino de maldições, mas o enigmático Cacius Henrique, diretor da Escola de Magia e Feitiçaria de Avalon, rebateu a teoria dizendo que nenhuma pessoa com más intenções poderia remover a tampa da caixa.

O novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica, Dorian Gulemarc, afirmou que Saguior cometeu um grave erro ao não passar a responsabilidade de proteger a caixa para o governo. Segundo o ministro, Saguior possui um temperamento egoísta e de difícil compreensão, mas ele não acredita que o fauno seja totalmente inocente nessa história. “Admito que Saguior é um dos seres mais poderosos que já conheci. Por tal fato, não acredito que alguém pudesse arrancar qualquer coisa dele, mesmo esse alguém sendo Kricolas. Se Saguior foi confiado à caixa ou não, jamais saberemos ao certo, mas para mim ele facilitou o lado dos vilões. Por isso abri uma investigação minuciosa e esta noite teremos uma reunião no Conselho de Magia para decidir o futuro dele”, disse hoje cedo em nossa redação.

O que nós cidadãs podemos fazer é torcer para que os problemas se resolvam e os culpados sejam punidos com a varinha da lei.

- Inaceitável! – exclamou Amanda – A Caixa de Pandora! Aqui, no Brasil! Na Cidade do Norte... não faz sentido...

- Estou tão surpreso quanto a senhora. – disse Stuart – Esperaremos até à noite para sabermos o que vai acontecer a Saguior, mas duvido que o ministro vá facilitar o lado dele.

- Isso tudo é injusto. – protestou Kal – Saguior nunca faria nada para prejudicar ninguém.

- Você o conhece? – perguntou Sara perplexa com todas aquelas novidades.

- Sim. – respondeu. Guinevere e Daimon o olharam curiosos – Por que não vamos lá pra cima. – sugeriu – Mamãe e Stuart devem estar querendo conversar.

Antes mesmo que Amanda fizesse um sinal em protesto, Kal já havia desaparecido da cozinha com Daimon, Guine e Sara em seus calcanhares.

Os quatro subiram agitados até o quarto de Kal e Daimon. Kal olhou para o lago pela janela e começou a falar.

- Quando Cacius me levou até Celacanto. – disse apontando para o centro do lago – A cidade que eu disse ficar lá no fundo. Pois bem, fomos até lá e eu entrei com ele na sala de reuniões do Conselho de Magia. Saguior estava lá também. Mas quando foi realizada a votação para eleger o novo ministro, nós dois tivemos que nos retirar e Saguior me levou para uma sala de treinamento, ou sei lá o que era aquela sala. Enfim, ele me ensinou um feitiço de proteção diferente do Réplica. O mesmo que usei para nos proteger dos Griphons, Sara – disse olhando fixamente para a vizinha com cumplicidade – Dorian Gulemarc insultou Saguior e Cacius o defendeu com unhas e dentes, entendem o que eu digo?

- Cacius tem plena confiança nesse Saguior. – adivinhou Daimon.

- Exato! Cacius não costuma se enganar quanto as pessoas. E Saguior também me pareceu ser digno de confiança.

- Acha que Dorian está inventando coisas, então? – indagou Guinevere, Sara assistia a tudo impassível.

- Dorian é o pior tipo de bruxo que já conheci. – comentou Kal.

- Pior do que o Kricolas? – questionou Sara ajeitando-se na cama onde estava sentada.

- Muito pior. Ele é mascarado. Disfarça seus planos e artimanhas. Ele armou para cima de Bernardo Mcflex, lembram-se dele?

- Escritor da Terra? – certificou-se Guinevere.

- Ele mesmo. Com investimentos do setor em que Dorian trabalhava, Bernardo produziu um pó capaz de esfumaçar qualquer pessoa para qualquer lugar. Como ninguém além de Bernardo sabia que o produto fora custeado pelo governo, Dorian quis lucrar um pouco, mas foi desmascarado em frente ao conselho, porém deu a volta por cima e culpou Bernardo e se não fosse pela interferência do pai de Ralph estaria preso agora.

- Que horror! – espantou-se Guine – Mas qual o propósito de manter Saguior longe?

- Isso eu já não sei. Mas tenho certeza de que ele fará de tudo para mandar Saguior para Warren. – concluiu Kal.

- E esse Cacius? Não fará nada? – perguntou Sara, por dentro do assunto.

- Cacius é apenas um membro do Conselho, seu voto pode não fazer diferença. – desanimou Kal – Fazendo as alianças corretas, Dorian poderá conseguir o que quiser. Ainda mais agora no posto de Ministro da Defesa e Segurança Mágica.

- E o que vocês podem fazer a respeito? – indagou Sara, erguendo-se da cama.

- Eu vou até a Celacanto hoje à noite. – disse Kal com um tom aventureiro na voz.

- Tia Amanda disse que não deveríamos sair mais de casa. – protestou Guinevere com bravura.

- Não vou sair de casa. Celacanto está no meu quintal. – respondeu Kal ironicamente.

Guinevere levou uma mão na testa em ar de derrota e disse:

- Ok. Kal, não nos deixariam participar da reunião. Não somos membros do conselho!

- Eu sei, Guine. Mas quero estar lá, não importa o quanto custe.

- Tudo bem, nós vamos. – frisou – Não vou deixar você sair por aí sozinho.

- Posso ir também? – perguntou Sara posicionando-se na janela para ver o lago.

- A sorte lhe sorriria mil vezes antes que te deixassem entrar em uma cidade mágica. – respondeu Daimon com um sorriso nos lábios.

- Como assim?

- Existem vários encantamentos que protegem nossas cidades da presença de na mágicos. – respondeu.

Sara baixou o rosto em desânimo, mas não se deixou ficar abatida, logo o ergueu e disse com um perceptível ar de alegria recheando cada uma de suas palavras.

- Estou honrada por vocês estarem compartilhando tantos segredos comigo. Estou mesmo. Nunca imaginei que um dia estaria conversando com bruxos de verdade, muito menos descobrir que o lago em que passei metade da minha infância é uma cidade mágica. Sabe, este está sendo o melhor ano da minha vida e espero que ele só fique melhor até o final. Saibam que o segredo de vocês está seguro comigo, não sei como poderia provar isso, mas espero que minha palavra baste. Já os considero amigos e torço para ser correspondida. – neste momento ela fixou sua atenção em Kal que ficou levemente corado – Qualquer ajuda que precisarem vocês sabem onde me procurar. Agora, tenho que ir.

Sara deu um sorriso de despedida e saiu do quarto tranqüilamente, dali era possível ouvir o som que seu tamanco produzia no assoalho e meio segundo depois ouviram ela se despedindo de Amanda.

- Acha que ela é confiável? – perguntou Guine a Daimon.

- Acho. – respondeu Kal instintivamente.

- Eu perguntei ao Daimon. – repreendeu Guine.

- E porque não a mim?

- Porque opinião de quem está apaixonado não conta.

Os três amargaram com as horas até o pôr-do-sol. Amanda nem ao menos desconfiava o que eles tramavam. Assim que a lua iluminasse a superfície da água do lago, eles chamariam por Viviane para que juntos pudessem chegar até Celacanto.

No momento em que o sol se pôs, eles prepararam-se para a janta, correndo até a cozinha para fugir dos olhares inquisidores de Amanda comendo alguma coisa. Em seguida, eles sentaram-se no sofá com Amanda para assistirem um pouco de televisão, ela agora parecia ter se acostumado com a magia circulante dentro da casa e já estava funcionando bem melhor.

A lua já brilhava alto lá fora e os três estavam inquietos quando finalmente Amanda subiu para tomar banho eles não perderam tempo para agirem. Correram até a margem do lago e Kal tentou se lembrar de como Cacius fizera para chamar a mulher da gôndola.

- Talvez eles mantiveram contato mental. – sugeriu Daimon.

Kal forçou sua memória e aproximou-se ainda mais da margem do lago. O vento já empurrava a água até seus pés, como antes. Ele sacou a varinha e com a sua ponta tocou a superfície do lago. Imaginou que Cacius pudesse ter usado um feitiço, mas ele não se lembrava de tê-lo ouvido usando, ou ter visto algum efeito, geralmente os feitiços produziam clarões bem perceptíveis.

- Viviane, você pode vir nos buscar? – perguntou Kal, por impulso.

Uma névoa cobriu toda a extensão do lago, como se ele estivesse evaporando rapidamente.

- O que é aquilo? – perguntou Guinevere apontando para uma sombra que se aproximava. Era Viviane com sua gôndola, sem remos ou motores.

- Boa noite, meninos Foster. Boa noite para você também senhorita Lingenstain. – saudou Viviane – Podem subir.

Kal subiu primeiro ajudando Guinevere e Daimon em seguida. A gôndola recomeçou a se mover indo em direção ao centro do lago. Viviane estava de braços abertos, a brisa tocando suavemente seus cabelos loiros brilhantes que de tão brancos se misturavam com a névoa.

- Você é uma bruxa? – perguntou Daimon à mulher.

- Quase...

- Um fantasma, então? – prosseguiu.

- Muito próximo a isso... – disse evasivamente.

- Um espírito?

- Está esquentando...

Daimon deu de ombros e resolveu não questionar mais a existência de Viviane.

- Cacius me disse que ela é a guardiã deste lago. – informou Kal, baixinho.

- Chegamos. Segurem-se firme.

Os três seguraram-se nas bordas da gôndola quando ela começou a girar e a descer para o fundo do lago. Guinevere e Daimon sentiram uma aflição por imaginarem-se descendo até o fundo. Cercados por água sem poder respirar.

Alguns segundos depois, seus medos foram perdidos. Estavam agora flutuando e descendo às margens do lago que beirava a cidade de Celacanto.

- Ela é linda... – admirou-se Daimon ao ver as construções em puro marfim.

A cidade estava diferente do que o dia anterior. Outras cinco lojas haviam sido abertas da noite para o dia e a única rua da cidade parecia ter ficado maior, embora o tamanho das demais lojas e do lago não parecia ter diminuído um centímetro.

- O novo ministro quer aumentar o número de moradores aqui em Celacanto e promoveu este aumento repentino. – explicou Viviane percebendo o espanto de Kal – É bem provável que em poucos meses esta cidade esteja tão grande quanto a Cidade dos Elfos.

Kal olhou para ela admirado, mas não questionou mais nenhum assunto. Estava distraído com o número de bruxos que havia lá embaixo. Celacanto fervilhava. Pessoas esfumaçavam a todo o instante, algumas até mesmo já usavam o pó de bobetônia que Bernardo criara.

- É aqui que os deixo. – disse Viviane em uma voz pesarosa – Espero que encontrem o que procuram.

- Obrigado, Viviane. – agradeceu Guinevere gentilmente enquanto desciam do barco.

A mulher inclinou a cabeça em sinal de respeito e desapareceu por entre as brumas que se ergueram.

- Vamos até o Conselho de Magia. – disse Kal, pouco pensativo.

Seguiram caminho por entre a multidão de bruxos, todos muito agitados, falavam alto, por vezes xingavam, faziam gestos estranhos com a mão, mas para eles nada fazia sentido algum. Procurando um rosto conhecido, Kal ergueu seu pescoço o mais alto que pôde. Ele olhava de um lado para o outro atento a cada uma das pessoas. Quando virou-se para a sua direita deparou-se com seu amigo de Avalon, Ralph Scheiffer, filho de Uric, o Guardião-chefe de Warren. Ralph ainda era poucos centímetros menor do que Kal, tinha olhos bem castanhos e um cabelo loiro escuro, pele clara e um pouco queimada de sol.

- Ralph! – gritou Kal ao vê-lo, contente.

Ele virou-se ao ouvir o chamado e abriu um sorriso exibindo seus dentes brancos. Ralph abriu caminho por entre as pessoas e chegou até os amigos.

- Sabia que vocês viriam. – disse olhando de Kal para Guinevere e por último Daimon – Papai disse que vocês estão morando na margem do lago aqui em cima.

- Exato. – confirmou Daimon.

- O que você faz aqui? – perguntou Guinevere.

- Eu reclamei com meus pais por que eles estão me deixando muito tempo sozinho em casa. Na verdade eu não queria mesmo perder a audiência no Conselho de Magia. – admitiu.

- Vai ser aberta ao público? – perguntou Kal, preocupado.

- Não. Apenas algumas poucas dezenas de pessoas com credenciais poderão entrar na sala do Conselho.

- Droga! – praguejou Kal.

- Nós vamos tentar entrar de qualquer modo. – falou Ralph, tranqüilo.

- Como? – perguntou Guinevere.

- Eu tenho meus truques.

Ralph guiou os três por entre toda aquela gente emaranhada que parecia se engalfinhar em uma briga intensa. Eles eram espremidos a cada passo, tinham seus pés pisoteados impiedosamente e nem ao menos ouviam uma palavra de desculpas. Quando finalmente chegaram a um espaço mais aberto, Ralph travou as pernas e disse que não poderiam tentar entrar naquele momento.

- Tem um guarda de Warren vigiando a entrada do Conselho. – apontou para o guarda de capa marrom – Teremos que esperar ele sair dali. Não deve demorar muito. Ele precisará cobrir outra área em pouco tempo. Papai disse que eles não mandaram mais de dez guardas para cá. Todos os outros estão se esforçando para seguir o rastro de Kricolas agora que ele está com a Caixa de Pandora.

- Seu pai falou alguma coisa a respeito? – indagou Kal.

- Não, mas mamãe sim. Ela disse que a caixa é muito mais poderosa do que imaginamos. E não acha plausível que Kricolas consiga abri-la.

- E por que não? – indagou Daimon.

- Parece que antes de ser entregue a Saguior, a caixa passou pelas mãos de Merlin. E bem... sabemos quem é Merlin e o que ele já fez para proteger este mundo. Com sinceridade, aquele velho não dava ponto sem nó.

- Acha que a afirmação de Cacius no Folha Mágica pode ser verdadeira? – questionou Guinevere.

- Meus pais disseram que sim. Eles têm total confiança na palavra de Cacius. Kricolas não poderia remover a tampa da Caixa de Pandora mal intencionado. E não vejo um bom motivo para ele fazer isso.

- Certo. – aliviou Kal.

- O guarda está saindo! – disse Ralph atento – Vamos agora. Não teremos hora melhor.

- Humhum. – concordaram em coro.

- Façam cara de gente importante. – disse Ralph empinando o nariz e estufando o peito.

Quando estavam a poucos metros de distância da entrada surgiu outro guarda, não parecia ser de Warren, mas era um obstáculo.

- Continuem! – ordenou Ralph percebendo que os três já estavam dando meia volta – Bom dia, senhor. – cumprimentou ao guarda já se esgueirando para dentro do prédio.

- Suas credenciais, por favor. – exigiu o guarda.

- Credenciais? – retorquiu Ralph jocosamente em meio a um sorriso cínico – Você sabe quem nós somos?

O guarda analisou a figura dos quatro garotos ali parados em sua frente e levantou as sobrancelhas em sinal negativo.

- Guarda, deixe-nos passar. – disse Ralph outra vez tentando se esgueirar para dentro.

- Ninguém passa por mim sem credenciais. – falou o guarda relutante.

- Deve estar havendo algum engano. – comentou Ralph olhando para os três e depois para o guarda – Escute, recruta, eu sou filho de Uric Scheiffer, Guardião-chefe de Warren e tenho ordens do meu pai para encontrá-lo lá dentro. Se preferir pode você mesmo ir lá dentro e chamá-lo para resolver esta situação vergonhosa. Mas devo adverti-lo que meu pai não é tão paciente quanto eu. – disse em um tom convincente que Kal quase pôde perceber o guarda tremer os joelhos.

- E quanto a eles? – perguntou o guarda apontando a varinha para Kal, Guine e Daimon.

- Nunca-Mais-Faça-Isso! – repreendeu Ralph com a varinha erguida, sua ponta brilhava em um vermelho escarlate – Por acaso você não reconhece as pessoas? Que tipo de guarda é você, homem?

Ralph realmente sabia intimidar uma pessoa quando queria, este era um lado que Kal não conhecia do amigo.

- Estes são os Foster! Entendeu ou quer que eu desenhe? Os Foster! Deve sua vida a eles. Cada um de nós aqui deve. – finalizou dando um longo suspiro de alívio – Agora, se nos permite, temos uma audiência para assistir.

- Sim, senhor.

- Vou fazer vista grossa desta vez, rapaz. – disse Ralph tentando ganhar mais uma vantagem, garantindo que o guarda mantivesse isso em segredo – Meu pai odiaria saber que nós quatro passamos por essa situação, então, se quiser manter o emprego, eu posso ajudar ficando calado.

- Entendi, senhor, desculpe por minha petulância. – falou o guarda covardemente.

Ralph ergueu ainda mais o peito e entrou de rosto empinado quando pisou no tapete vermelho do saguão de entrada. Várias estátuas de bruxos estavam posicionadas ali dentro, alguns outros bruxos de verdade os encararam de modo curioso quando os quatro já estavam a meio caminho do elevador de acesso à sala do Conselho de Magia.

Kal percebeu que Jonas, o bruxo encarregado do elevador não estava ali, o que de certa forma poderia ser um bom sinal. Talvez ele os colocasse em encrencas. Kal aproximou-se mais e puxou a porta com força, mas ela não se mexeu nem um pouco. Impondo um pouco mais de pressão ele obteve o mesmo resultado. Ralph encarou aquela cena com desgosto e num sorriso simples disse.

- É assim, olha. Elevador, abra.

A porta de bronze do elevador cedeu com um clic e facilmente foi empurrada, dando passagem para os quatro.

- Como você sabia o que dizer? – indagou Kal.

- São sempre a mesma coisa, elevadores, portas, tudo isso... – respondeu.

- Este elevador aqui não é igual ao do Hospital Nautilos, é? – questionou Guinevere temerosa quanto ao equipamento assassino que se chamava elevador na pequena cidade de Dunas, próxima a Vila da Cachoeira.

- Não mesmo. – tranqüilizou Kal apertando o botão SS para descerem até a sala do conselho.

A descida foi rápida o bastante para não dar tempo deles iniciarem um diálogo. Assim que a porta se abriu, Ralph saiu agachado ordenando que eles fizessem o mesmo para não serem vistos por seus pais.

- Você não disse que era uma ordem deles você estar aqui? – questionou Kal.

- Acreditou mesmo naquilo que eu disse ao guarda? – riu-se – Não sabia que eu mentia tão bem assim.

- Não acredito que somos penetras... – decepcionou-se Daimon.

Bravamente, os quatro permaneceram agachados lutando contra o esforço de seus joelhos em se manterem naquela posição e contra os olhares indiscretos das pessoas ao redor e em pouco menos de dois minutos haviam entrado na sala do conselho.

Eles vislumbraram o teto abobadado e Ralph apontou para cadeiras lá em cima.

- É lá que devemos ir.

Eles viraram à direita e subiram alguns degraus que os lavariam para um lance de escadas que era o real caminho até os assentos.

Subiram correndo com medo de ainda serem avistados pelos pais de Ralph ou alguma outra pessoa que pudesse tirá-los dali. Lá em cima, eles estariam seguros, pois era onde ficavam as pessoas credenciadas e certamente nenhuma delas iria questioná-las sobre qualquer coisa.

Kal procurou lugares na beirada do para-peito, de forma que pudessem visualizar a reunião de forma privilegiada. Não demorou muito tempo depois que se sentaram e logo todos os membros do conselho estavam ocupando seus assentos, inclusive Cacius que estranhamente piscou para a direção de onde eles estavam.

- Como ele pode saber tudo? – bufou Ralph.

- Boa noite, membros do conselho. – saudou Timas Havany, Ministro da Comunicação Mágica – Esta reunião foi convocada para decidirmos o futuro de um dos nossos membros, o fauno Saguior. A acusação, representada pelo nosso mais novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica, Dorian Gulemarc, o acusa de: – disse puxando uma folhinha para cima do palanque e colocando um óculos de leitura – Omitir do Governo Mágico informações importantes sobre um artefato mágico potencialmente perigoso, portar este objeto em segredo pondo em risco a segurança da comunidade mágica e por facilitar o repasse do devido mencionado ao inimigo mais perigoso de todos os bruxos de bem.

Timas fez uma pequena pausa para respirar e prosseguiu.

- Em sua defesa, apresenta-se o Diretor da Escola de Magia e Feitiçaria de Avalon, senhor Cacius Henrique. – disse apontando para a direção de Cacius com o braço esquerdo – Eu desempenharei papel de juiz mantendo neutralidade no assunto como manda o Código de Leis e Ordens Mágicas, assinado pelos bruxos, elfos, fadas e todas as demais criaturas mágicas no ano mil. Tragam o réu.

Uma porta se abriu bem embaixo das escadas que Kal e os outros subiram e dela saíram dois homens com varinhas empunhadas escoltando Saguior que estava com as mãos protegidas por uma bolha dourada, certamente elas impediam que ele usasse seus poderes de fauno.

- Saguior, - prosseguiu Timas – sabe porquê está aqui e porquê está sendo acusado?

- Sim. – disse com convicção.

- E você se considera...

- Inocente. – disse abertamente.

- Está disposto a se submeter a um julgamento justo neste conselho?

- Eu acho isto uma grande palha...

- Responda apenas, sim ou não. – interrompeu Timas.

- Sim. – bufou, entre dentes.

- Eu e com os poderes de juiz a mim concedidos por este conselho, declaro iniciado o julgamento.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Capítulo 5 - Circo dos horrores

Entrando no elevador e apertando o botão que os levaria até a Sala de Reuniões do Conselho de Magia, Saguior ainda parecia levemente irritado. Já usara um feitiço de cura para conter o sangramento do nariz, mas, aparentemente, nada poderia curar seu orgulho ferido.

- Senhor Saguior.

- Sim. – falou o fauno.

- Acha mesmo que os bruxos do conselho me entregariam a Kricolas?

- Não duvido. Aqueles homens e mulheres estão mais preocupados em proteger seus traseiros do que as pessoas que representam. Mas tenha uma certeza, Cacius lutará por você, se preciso.

- Não tenho dúvidas quanto a isso. O professor Cacius sempre me apoiou, em tudo, sabe.

- Típico do velho. Este comportamento patrono.

- Você parece que também tem muito a agradecer a ele.

- Certamente. Cacius sempre esteve ao meu lado quando precisei, e até mesmo quando não era necessário, um pouco intrometido ele é.

Neste mesmo momento a porta do elevador se abriu e os dois depararam-se com uma explosão de aplausos no Salão do Conselho de Magia.

- Parece que realmente terminaram. – comentou Saguior – Vamos lá.

Os bruxos no salão estavam de pé para aplaudir o novo Ministro da Defesa Mágica, Dorian Gulemarc. O empossado subiu ao palanque para fazer seu primeiro pronunciamento como ministro e, obviamente, aprovar a compra do pó de bobetônia pelo governo.

- Senhoras e senhores, é com muita satisfação que assumo este cargo. Ainda mais sabendo que estou substituindo um homem tão competente como foi Mardo, que sua alma descanse em paz. Mas o período é crítico! E não quero ser alvo de chacota dos jornais do nosso país. Vou ser enérgico e altamente eficaz na busca pela ameaça Kricolas. Vamos caçá-lo tão fortemente como fez o jovem Garner Foster, quando fundou Warren há nove séculos. Quero enfatizar, também neste discurso, que estou satisfeito com o trabalho da GAW, liderada por Uric Scheiffer, para manter a ordem no país e a segurança dos protegidos pelo Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas. Bem, para finalizar, gostaria de formalizar meu total apoio ao jovem Mecflex e a sua invenção, o pó de bobetônia. Uma fórmula já será enviada a um de nossos laboratórios para a produção em série. Não se preocupe Mecflex, você receberá os cem milhões de flandres que pediu, mas na minha opinião é um preço abusivo a se pagar. Está na cara que o nosso jovem bruxo é um explorador capitalista.

Mesmo estando longe, Kal pode ver o rosto de Bernardo pintar-se de roxo tamanha a sua fúria com o comentário maldoso de Dorian. Sem mais se conter, Mecflex levantou-se de sua cadeira e gritou para todo o conselho:

- Ladrão, porco miserável! Você bem sabe que foi com o dinheiro do próprio governo que eu produzi o pó de bobetônia! Você quer rou...

Antes de Bernardo conseguir terminar a frase, Dorian empunhou a varinha que usava como microfone e usando um feitiço emudeceu o rapaz.

- Quer dizer que o tempo todo esteve querendo nos enganar, Mecflex? – perguntou fingidamente o novo ministro – Você queria nos vender um projeto que nós mesmos investimos? Onde está sua moral? Respeite este Conselho! Guardas, prendam este rapaz!

Cacius estava impassível em sua poltrona, pela primeira vez não sabia como agir. Uric, que estava ao seu lado, levantou-se e com destreza disse:

- Você pode ser o Ministro da Defesa Mágica, mas quem manda nos guardas de Warren ainda sou eu. Ninguém sairá preso daqui.

- Como ousa desafiar minha autoridade?

- Vai mandar me prender também, Dorian? Consegue mesmo se virar sem a minha ajuda?

Dorian mordeu os lábios com furor, olhou para o restante do conselho e viu que aquela seria sua primeira grande decisão como ministro. E como toda grande decisão, havia dois pontos de vista a serem considerados. Caso ele não enfrentasse Uric seria taxado como um ministro covarde logo em seus primeiros minutos, mas se ele ordenasse a prisão do Guardião Chefe de Warren, ele sabia que seus dias de glória estariam contados. Não havia homem ou mulher mais eficiente para o cargo do que Uric Scheiffer, sem ele no comando das milícias, qualquer rebelde tomaria o controle da situação. Encurralado decidiu.

- Deixe estar, então. Este conselho não apresentará queixa contra Bernardo Mecflex. – Dorian teve muita dificuldade em pronunciar a próxima frase – Mas não pagará a ele nem um mísero centavo pela fórmula. O Conselho está dispensado.

Gulemarc aproximou-se de Bernardo, ainda emudecido pelo feitiço, e apontou a varinha para o rosto do rapaz com um ódio que lhe consumia os miolos.

- Você sabe que eu seria capaz de matá-lo aqui mesmo, não é? A seu filho da mãe! Por esta você me paga, e pagará um preço altíssimo! Perdi muito dinheiro hoje e pôs em risco o meu cargo. Já tive que derrubar muitos obstáculos para chegar até aqui e deles você é o menor. Não se meta no meu caminho outra vez, entendeu? Talvez não haja tantas pessoas para testemunhar contra mim na próxima ocasião.

Dorian vazou pela porta e adiantou-se até o elevador. Kal ainda pôde ver seu rosto extremamente nervoso antes que as portas do elevador se fechassem.

- Findar Spellis! – disse Cacius se aproximando de Bernardo.

- Obrigado professor. – falou enquanto massageava a garganta.

- Foi muita coragem sua peitar Dorian daquela maneira.

- Eu não podia me calar enquanto aquele miserável enriquecia.

- Meus parabéns, meu jovem. – disse Uric dando um tapinha nas costas de Bernardo.

- Obrigado por me livrar da prisão.

- Eu nunca permitiria isso.

- Dorian é um cara-de-pau! – falou Saguior unindo-se ao grupo – E agora, como ministro sabe-se lá o que ele vai fazer. Sinto vontade de esmagar aquele cabeça miúda. Quebrar o corpo dele ao meio como uma vareta!

- Acalme-se, Saguior, acalme-se.

- Tudo bem, Cacius. Não vou dizer que também sinto vontade de afogá-lo numa privada.

Kal soltou uma pequena gargalhada facilmente abafada por sua mão.

- Gostaria de nos perguntar algo, Kal? – indagou Cacius olhando-o fixamente.

- Sim. E como ficou minha situação? Eles querem me entregar para Kricolas?

- O Conselho votou que não. Após descobrirem que você possui o Enid de Donnovan, o Conselho percebeu que só estaríamos armando o inimigo e não o contrário.

- Entendo. Meu pescoço já se sente mais à vontade sabendo disso.

- Bem, acredito que devemos ir agora. Amanda deve estar nos esperando para o almoço.

- Até mais, professor. Boa sorte em seu segundo ano em Avalon, Kal – despediu-se Bernardo.

- Nos vemos por aí, então, Cacius. – prosseguiu Uric – Ah, Kal, quando você, a Guine e o Daimon quiserem ir lá para casa enviem uma carta para o Ralph que iremos buscá-los. Ele ficará muito contente com a visita de vocês.

- Ok. – disse o garoto.

- Nos vemos em outra ocasião. – disse Cacius acenando gentilmente com a mão direita e com a outra guiando Kal até a saída – Aprendeu algo interessante com Saguior hoje?

- Sim. – respondeu – Ele me ensinou uma maneira de se defender.

- Defender? De quem?

- Kricolas. – disse Kal secamente.

- Como se você estivesse planejando ir atrás dele. – falou Cacius num sorrisinho insinuativo.

- Não, é claro que não. Jamais cometeria essa loucura. – mentiu Kal, mas achou que não convencera o professor.

- Sei. – prosseguiu enquanto já andavam pelas ruas esbranquiçadas de Celacanto – Viviane já está a nos esperar, veja.

A mulher de pele clara e cabelos loiros aproximou-se com a sua gôndola vazia, a luz bruxuleante da lamparina em sua ponta iluminava a superfície da água. Viviane esticou uma das mãos para Cacius, auxiliando-o na subida, logo depois fez, o mesmo com Kal. Após acomodarem-se, a mulher abriu os braços e a gôndola partiu, fez uma curva de cento e oitenta graus e partiu rumo ao topo da cidade. O barco levitou e deixou um rastro de água enquanto subia até o teto da caverna. Antes que ele colidisse, no entanto, a visão de Kal foi ofuscada por uma forte luz e quando deu por si estava sendo iluminado por um brilhante sol acima deles.

- Pode nos levar até à margem, Viviane? – perguntou Cacius docemente.

- Sim, professor. – respondeu.

A gôndola prosseguiu viagem envolta em uma luz branca que os escondia. Estavam sozinhos no lago naquele momento, mas as ruas ao redor estavam lotadas por carros e pedestres. Crianças corriam nas margens do outro lado da casa de Kal e seria traria suspeitas uma gôndola medieval trafegar em um lago de cidade moderna.

- Obrigado pela carona. – agradeceu Kal saltando com entusiasmo para terra firme.

- Espero vê-lo em breve, Cacius. – disse Viviane.

- Espero.

Ao ouvir as vozes em seu quintal, Amanda Foster enfiou a cabeça pela janela da cozinha e se apreçou a sair pela porta dos fundos. Correu em direção aos dois, quando chegou Viviane já havia partido. Aflita, ela abraçou o filho fortemente e disse:

- Estava tão preocupada.

- Não havia com o que. – garantiu Cacius – Tudo correu bem por lá.

- Exceto Dorian ter sido escolhido para ministro.

- Isso foi um detalhe, Kal.

- Mas professor, o senhor não foi escolhido? – indagou Amanda de olhos arregalados.

- Tive que recusar, mais uma vez.

- O senhor foi indicado? – questionou Kal duvidoso.

- Sim, mas Avalon me consome bastante tempo e não pretendo parar de lecionar para assumir um cargo no governo.

- Professor Cacius, o senhor não acha que teria sido mais prudente aceitar? O senhor sabe que Dorian Gulemarc é um inconseqüente e irresponsável. – disse Amanda.

- Sim, mas o Conselho terá que perceber isso sozinho. Como eu disse, não pretendo abandonar Avalon. Sou responsável pela escola.

- Entendo. É uma pena que o senhor não possa. Sentiria-me muito mais segura com você no cargo.

- Agradeço pela sua confiança, Amanda.

- Meu filho, vá almoçar logo. Lembre-se que devem estar prontos para sair à tarde.

- Mãe, vamos sair quando estiver quase anoitecendo.

- Sim, sim. Mas é bom se apreçar. – falou ela não dando bola para o que ouvira do filho – Vamos entrar também, professor. Fiz um prato que o senhor adora.

- Feijão tropeiro? – quis saber.

- Bingo!

Fartos de tanto comer, os cinco ajeitaram seus corpos pesados no sofá da sala enquanto assistiam ao jornal local, que iniciou exibindo imagens do litoral rio grandense. Seguindo-se por uma programação do verão.

- Como é festeira essa gente. – comentou Fred, o guarda de Warren, que só agora fora notado no parapeito da janela.

- Bom dia, Fred. – saudou Cacius – Como andam as coisas?

- Seguindo, sabe?

- Não. – disse o professor.

- Oras, trabalhando, lambendo-se e cuspindo bolas de pêlo.

- Oh sim, que higiênico. – falou Daimon.

- É difícil manter o sigilo. Essa vizinhança me persegue. Ainda ontem, aquela Alexia me enxotou da casa dela com uma vassoura.

- E por quê? – perguntou Kal.

- Porque eu estava bebendo numa vasilha de leite.

- Só por isso? – ironizou o garoto.

- Pois é. – prosseguiu – Mas essa gente é fanfarrona mesmo. Ainda hoje três casas esvaziaram-se. Seus donos viajaram para Salvador, na Bahia.

- Anda cumprindo bem o seu papel de vigilante, Fred. – elogiou Cacius – Onde está Stuart?

- Ontem ele foi até Warren. Parece que prenderam um primo dele por engano, sabe? – respondeu – Aí ele foi livrar a cara do parente. Logo deve estar de volta.

- Compreendo. – disse agora Amanda – Os garotos vão sair hoje à noite com uns vizinhos, então gostaria que um de vocês os acompanhasse.

- Oh, mas aonde eles vão? – perguntou por curiosidade.

- Ao parque. – respondeu Kal.

- Ah sim, você vai com a família da sua namorada, não é?

- Ela não é minha namorada. – retrucou Kal corando.

- Que gracinha. – debochou Fred – Bem, agora tenho que ir. Está na hora da minha ronda.

- Até mais. – disse Amanda.

- Ok, até. Não se preocupe, senhora Foster. Eles estarão bem seguros comigo. Vou chamar a Katrini também.

- Ah, sua namorada. – disse Kal vingando-se.

- Bem garoto, cães e gatos não combinam. – disse o guarda retirando-se com um abanar de cauda.

- Os Chiabai passarão aqui para nos buscar ou iremos até a casa deles? – indagou Daimon.

- Podemos esperá-los na praça. – respondeu Kal.

- Certo. – concordou o irmão – Às dezoito horas, não é?

- Isso.

- Parece que terão uma boa noite de divertimento hoje. – falou Cacius sorrindo – Há anos eu não vou a um parque.

- Por que não os acompanha, professor. – sugeriu Amanda.

- Não, hoje não posso. – respondeu – Tenho sérios compromissos em Avalon. Preciso aprontar a escola para receber os novos alunos em fevereiro.

- Tudo bem, então.

- Não se preocupe tanto, Amanda. Os guardas de Warren são competentes no que fazem. – falou Cacius retirando um relógio prateado do bolso e conferindo as horas disse – Bem, já passou da minha hora para falar a verdade. A Rainha Eva disse que gostaria de me ver depois do almoço, não sei do que se trata, mas conhecendo bem aquela elfa não deve ser nada de muito importante. Contudo, ela é a rainha da cidade onde fica o meu castelo, preciso atender a este pedido.

- Até mais então, professor. – despediu-se Amanda – Quando o veremos novamente?

- Não sei responder isso. Depende de como as coisas andarão na Cidade dos Elfos, mas é provável que só os veja no próximo mês. – disse com os olhos concentrados em Amanda – Até mais garotos.

Após a despedida, Cacius transformou-se em uma fumaça roxa e desapareceu.

- Garotos! Acho que seria prudente vocês dormirem esta tarde para não ficarem como zumbis à noite.

- Mãe! – questionou Kal – Dormir?

- Sim, sim, sim. Durmam, quando estiver chegando a hora eu os acordo e vocês se aprontam.

- Mãe... – suplicou Daimon.

- Já! – disse em tom petulante.

Amanda perambulou pela casa por toda a tarde enquanto Kal, Guine e Daimon descansavam para aproveitarem a noite. Ela andou pelos jardins, assistiu novela e quando os ponteiros do seu relógio de pulso sinalizaram dezessete horas, ela deixou de banhar os pés na água da lagoa e correu até o segundo andar da casa para acordar os três.

- Meninos! Levantem! – disse Amanda cutucando Daimon e Kal no ombro – Depressa! Guinevere já está se aprontando.

Daimon e Kal levantaram-se num salto e pouco mais de meia hora depois os três já esperavam pelos Chiabai na praça, sentados nos balanços. Não demorou até que Alexandre Chiabai saísse da garagem com o seu sedan prateado e buzinasse para os três.

- Boa noite, senhor e senhora Chiabai. – cumprimentaram os três.

- Boa noite.

- Oi, Sara. – disse Kal ao entrar no carro e sentar-se ao lado da garota.

- Oi! Oi, Guinevere, Daimon. – disse acenando alegremente.

Os dois sorriram e entraram sem cerimônias.

Durante o caminho até o parque, Alexandre Chiabai sugeriu que antes de irem ao parque de diversões andarem nos brinquedos eles deveriam primeiro assistir à apresentação do Circo Tombada, anexo do parque.

- Existem ótimos mágicos lá. Gosta de truques, Kalevi? – perguntou o homem.

Kal apertou sua varinha contra o próprio corpo e assentiu com a cabeça, um sorriso estranho moldado no rosto.

- Devem haver palhaços lá também. – disse Mara.

- Palhaços? – perguntou Daimon duvidoso.

- Sim. Aqueles que usam uma muita maquiagem, um nariz vermelho, sapatos grandes e contam piadas. – descreveu Mara Chiabai.

- Não me lembro, é como mamãe disse. Faz tempo que não vamos a um... um... é...

- Circo! – completou Guinevere vendo que o amigo estava embaralhado nas palavras.

- Isso mesmo, circo. – aprovou Daimon sem graça.

Aquele dia o trânsito não estava muito movimentado, Alexandre pisou um pouco fundo no acelerador e em poucos minutos eles chegaram ao parque-circo. Sob a iluminação de um enorme letreiro digital estava a entrada do Parque Vitoriano. Uma montanha russa de aço dava a volta pelo parque com subidas e descidas que embrulharam o estômago de Kal apenas de olhar as pessoas gritando lá do alto.

- Olhem isso! – falou Daimon apontando para uma construção de madeira de dois andares, em estilo casa abandonada, janelas de vidro estilhaçadas e na varanda um trilho com três carrinhos em forma de um crânio humano.

- É um Trem Fantasma? – informou Sara.

- Com fantasmas de verdade? – perguntou Daimon muito intrigado.

- Bobo. – sorriu Sara – Como se existissem.

- O que ela quis dizer? – cochichou com Guine enquanto continuavam andando.

- Vamos ao circo, pessoal? – chamou Alexandre guiando-os por entre a multidão de pessoas que se estendiam da entrada do parque até a extremidade final onde estava a entrada da montanha russa.

Na entrada do Circo Tombada, alguns animais estavam expostos ao lado de seus treinadores. Um que chamou a atenção de Kal foi um elefante com suas presas de marfim bem desenvolvidas, mas ainda assim era facilmente preso por uma fina corda presa a um pedaço de madeira enterrado no chão.

- Isso não é perigoso? – perguntou Guine ao reparar como o elefante era mantido preso.

- Quando os elefantes são pequenos, os treinadores amarram suas patas com correntes e as prendem em grossas estacas de madeira. Mesmo depois de adultos, os elefantes acham que estão fortemente presos, e não tentam escapar com medo de machucarem a pata. – esclareceu Alexandre.

- As pessoas estão entrando! – informou Mara – Vamos antes que não sobrem mais lugares.

Os seis entraram em uma pequena fila que começava a se formar diante da entrada do circo e menos de cinco minutos depois estavam procurando lugares nas arquibancadas. O circo tinha o formato de um pedaço de pizza, com o picadeiro na extremidade e o restante do espaço ocupado por uma arquibancada dividida ao meio pelo corredor de entrada, tudo coberto por uma gigantesca lona vermelha e amarela.

As luzes já se apagavam para dar início ao espetáculo quando Kal, Guine, Daimon e os Chiabai finalmente sentaram-se em lugares tão próximos ao picadeiro que podia ver-se o apresentador com mínimos detalhes.

Um homem alto, encorpado, de olhos gananciosos e que usava um terno preto com sapatos tão lustrados quanto os cabelos grisalhos cuidadosamente penteados para trás, segurava um microfone na altura da boca e após uma rápida olhada pela platéia disse em voz entusiasmática:

- Senhoras e senhores! É com grande orgulho que o Circo Tombada inicia o show de hoje, com as arquibancadas cheias de abelas donzelas e o nosso picadeiro de talentos. – falou em um sorriso cínico – Para iniciar a noite, direto dos pampas, apresentamos os maiores trapezistas do Brasil!

Só agora Kal reparara que enquanto o apresentador falava, uma cama elástica era montado sobre o picadeiro e agora dois trapézios desciam do alto da lona com um casal vestidos em uma roupa colada ao corpo.

O casal realizou feitos realmente incríveis e impensáveis para Kal, como o salto mortal. Prosseguindo, o apresentador chamou um ilusionista que retirou da cartola um coelho, fez uma mulher de vestido levitar, transformou papel em pomba e cortou sua assistente de palco em três pedaços.

- Eles são incríveis, não? – comentou Mara para os garotos – Parece tudo tão real!

- É claro. – concordou Kal rindo-se por dentro imaginando o que a senhora Chiabai não diria caso o visse usando a varinha – Realmente muito real.

- É como se ele também fosse um bruxo. – disse Daimon.

- Também? – questionou Sara.

- Ah, nada. – desvencilhou.

Após reagrupar a cabeça, o tronco e as pernas da assistente em uma grande caixa colorida, o mágico fez soltar de sua varinha uma grande quantidade de fumaça e com isso desapareceu do picadeiro.

- Ótimo truque hoje, amigo! – comentou o apresentador – Agora, eles que são a graça de todo o circo! A paixão das crianças e o amigo dos adultos! Senhoras e senhores, os palhaços!

De trás do picadeiro, um barulho como ronco de motor de carro velho rompeu por todo o circo e segundos mais tarde uma miniatura de fusca surgiu trazendo dentro dele cinco palhaços, todos com roupas e perucas coloridas, sapatos números maiores que os pés, maquiagem exagerada e narizes vermelhos. Os palhaços tinham um andar desengonçado e davam tapas em suas nucas. Kal, Guinevere ou Daimon jamais viram um palhaço e encarar aquelas figuras estranhamente fantasiadas era demasiado desconfortante. Um dos palhaços retornou de onde vieram e dessa vez trouxe consigo o elefante que eles haviam visto na entrada do circo.

- Para que isso, Risadinha? – perguntou o apresentador ao palhaço que conduzia o elefante – Vai chamar alguém da platéia?

O palhaço agitou a cabeça freneticamente enquanto entregava a ponta da corda a qual o elefante estava preso ao apresentador. Dirigiu-se então à platéia e buscou por um voluntário. Alguns levantaram a mão em oferecimento, mas ao que parecia, Risadinha já havia feito a sua escolha. Ele caminhou entre as primeiras fileiras e parou bem em frente a Kal.

- Vai. – disse Alexandre já levantando o garoto sem mesmo que ele aceitasse ou não.

Ele conduziu-o por entre as pessoas e caminhou em direção ao elefante que estava muito bem comportado.

- Sobe. – disse o palhaço apontando para uma cela presa ao dorso do animal.

- Quer que eu suba nele? – perguntou Kal incrédulo.

- Sem cerimônias, anda logo. – disse o palhaço irritando-se e abandonando a máscara de gentileza e bom humor.

Uma pequena escada foi providenciada para auxiliar Kal em sua subida e depois de ajeitar-se na pequena cela ele sentiu o animal se balançar e percebeu que o elefante estava sendo conduzido pelo picadeiro. Como em um desfile, os dois, elefante e garoto, rodearam o lugar e Kal começava a sentir um sacolejo incomodo em seu estômago. Sem mais explicações o elefante parou em frente ao corredor que dava acesso à saída e balançou a tromba inquieto. O palhaço tentou acalmá-lo, mas parecia inútil. O animal estava fora de controle.

Da platéia, Guine e Daimon já estavam de pé temendo algum acidente com Kal que parecia ficar roxo em cima do bicho. O próprio garoto não entendia o que estava acontecendo. Mantivera-se comportando durante a apresentação e tinha toda certeza de que não machucara o elefante. Kal olhou ao redor para tentar entender o motivo daquela agitação e inusitadamente viu uma figura desagradável no alto da lona do circo. Um Griphon.

Ele os vira por várias vezes em seu primeiro ano em Avalon, eram criaturas realmente assustadoras. Tinham uma pele amarela e enrugada encobrindo um corpo esquelético, vários dentes pontiagudos, orelhas pontudas como as de morcegos, garras tão afiadas quanto navalhas e um olhar gelado e penetrante.

O que eles fazem aqui? Indagou-se.

Antes que sua pergunta pudesse ser respondida pelo seu próprio inconsciente ele foi derrubado pelo elefante e quando abriu os olhos reparou que o Griphon não estava mais dentro do circo, mas ainda assim o elefante mantinha-se alterado. Os palhaços que não estavam tentando acalmar o animal orientavam as pessoas a saírem de forma a ficarem em um lugar seguro. Kal levantou-se rapidamente com medo de ser esmagado por uma das poderosas patas do animal, no entanto permaneceu no picadeiro vasculhando o lugar a procura do Griphon. Ele realmente havia desaparecido, assim como toda a platéia. Somente ele estava sob a lona com o elefante descontrolado e os palhaços.

Kal olhou de um lado para o outro temeroso e passou por sua cabeça que algo deveria ser feito para controlar o elefante. Ele sacou a varinha de dentro das vestes mirou no gigantesco alvo percebendo que dali nenhum dos palhaços poderia vê-lo. Dizendo em um tom de voz que não poderia ser facilmente ouvido Kal disse:

- Mórfinus! – o filete roxo iluminou fracamente o picadeiro e acertou o elefante em cheio que tremeu em suas pernas e amoleceu a tromba.

- Kal! – chamou uma voz e o coração do garoto quis sair pela boca. Devagar, ele virou o pescoço para o lado e viu uma assustada Sara encará-lo curiosa.

- Sara... – disse apressando-se em esconder a varinha nas costas – Há quanto tempo voc...

- Está tudo bem com você? – perguntou ela interrompendo o garoto abruptamente – Todos já estão lá fora.

- Sim.

- Que modo estranho para um elefante de circo agir. – disse ela quando já saiam do circo.

- É...

- Mais estranho ainda foi a maneira como ele parou. – ao dizer isso Kal deu um forte soluço.

- Tem certeza de que está bem? – insistiu.

- Tenho sim. Mas, o que você estava fazendo lá dentro ainda?

- Fui te ajudar. – respondeu.

- Mas viu alguma coisa? – perguntou com medo da resposta.

- Vi um elefante parando de repente depois que uma luz roxa se acendeu.

- Ah sim! Luz roxa. Deve ter sido alguém do próprio circo.

- Kal! – disse Guinevere se aproximando do garoto e dando-lhe um forte abraço – Está tudo bem com você?

- Estou. Estou.

Antes que Daimon ou os senhores Chiabai perguntassem também ao garoto se estava, realmente, tudo bem com ele, o palhaço que o colocara no meio de tudo aquilo apareceu correndo para averiguar melhor a situação.

- Não se machucou não é? – perguntou encarando Kal da cabeça aos pés – Temos um ótimo pronto-socorro aqui mesmo. Se precisar procure-me.

- Estou bem, sério. Não tem com que se preocupar.

- Desculpe-nos pelo acidente. Isso nunca aconteceu antes, mas foi nossa culpa.

- Não, não foi. – disse Kal arrependendo-se de ter pronunciado-se – Quero dizer, essas coisas podem acontecer a qualquer um, não?

- Tudo certo então, mas se desejar ajuda pode me chamar. – falou o palhaço convencido de que ainda seria útil e saiu tristonho com seus sapatos vermelhos e de bico largo.

Senhor e senhora Chiabai, Daimon e Guine se juntaram à Sara e Kal segundos depois. Como fizera o palhaço, checaram se eles estavam bem e resolveram que aquele incidente não iria estragar o resto da noite. O parque de diversões estava vazio aquele dia, o que era ideal para aproveitar todos os brinquedos, sem perder tempo em filas desnecessárias.

- Por que não vamos ao Trem Fantasma. – sugeriu Sara apontando para a casa de dois andares que lembrava uma construção abandonada.

- Então vamos. – disse Alexandre.

Os seis seguiram até a bilheteria para comprar os ingressos. Comprados, Daimon e Guinevere foram os primeiros a entrar nos carrinhos em forma de crânio com assento para dois. Alexandre e Mara subiram no próximo. Kal e Sara ainda ficaram do lado de fora alguns minutos até que um terceiro carrinho saísse de dentro da casa.

- Você não tem medo? – perguntou Kal.

- Da casa? – disse incrédula – É tudo de mentirinha. Se tiver medo pode segurar na minha mão. – Kal sentiu seu rosto corar e resolveu não dizer mais nada – Olhe! Chegou o nosso.

Um casal de namorados desceu do carrinho, a garota estava pálida e por alto, Kal escutou ela dizer:

- Você viu aquela criatura amarela? Parecia tão real...

Kal sentiu um forte arrepio na espinha e seus pés fincaram no chão. Agora ele tinha certeza. Havia Griphons ali.

- Sara não podemos entrar. – advertiu.

- Já disse que não precisa ter medo. Vamos logo. – inocentemente ela puxou Kal pelo braço como se nada estivesse acontecendo e forçou-o a sentar-se ao seu lado – Não se preocupe. Não vai nos acontecer nada.

- Não tenho tanta certeza...

O carrinho começou a se movimentar seguindo um trilho de metal, após o primeiro metro ele acelerou tanto que as portas da casa ficaram perigosamente próximas, pois elas não se abriram de imediato. Somente quando estavam há poucos centímetros de distância Kal percebeu que não eram portas, e sim cortinas pintadas. O pano cedeu ao carrinho que entrou com ainda mais velocidade, passando por teias de aranha e por bonecos fantasiados de vampiro. Kal não estava preocupado com a figuração e sim com o perigo real. Griphons no parque não era boa coisa.

- E então? Está com medo? – perguntou Sara.

- Nem um pouco.

O carrinho deu algumas voltas no primeiro andar descendo por um rápido túnel cheio de aranhas mecânicas e gosma verde. Quando embalaram para a subida depararam-se com uma escada de madeira completamente destruída e nem um trilho.

- Vamos bater! – disse Kal.

Sara não pode esconder o rosto pálido, mas logo depois dos trilhos surgirem por baixo da escada ela soltou um pequeno sorrisinho, como se achasse Kal um autêntico medroso.

O segundo andar era ainda pior que o primeiro. Caixões pendiam do teto com seus cadáveres amostra, espantalhos com cabeças de abóbora passaram na frente deles seguros por cabos de aço. Um deles passou tão perto que Sara teve que agarrar a mão de Kal para conter o medo.

- Desculpe. – disse retirando a mão.

O carrinho guiou-os até um quarto em que as luzes dos abajures piscavam incessantemente. Cabeças em miniaturas subiam e desciam como iô-iôs e um grito fantasmagórico reverberava entre as paredes. A janela recebia a fraca luz bruxuleante vinda do parque, mas não era possível ver o que se passava lá fora. Sem mais explicações, o carrinho parou com um rangido metálico.

- O que houve? – indagou Kal.

- Deve ter acabado a energia.

- Todo o parque ainda tem energia. – prosseguiu Kal observando pela janela toda a iluminação do lado de fora – Eu vou descer.

- Kal, espera. Deve fazer parte do brinquedo.

Por um segundo Kal pensou que Sara poderia estar certa, mas se deu conta de que os gritos fantasmagóricos não estavam mais ecoando e que as lâmpadas haviam apagado.

- Alguma coisa está errada. – insistiu Kal.

Um som rouco e extremamente familiar reverberou por entre a sala e a garota reativou seus ânimos de menina aventureira.

- Sara corre! – exclamou Kal vendo que um Griphons havia entrado no quarto.

- Kal! Pára! Fica no carro!

- Eu disse corre!

Neste momento um Griphon saltou para cima de Sara que cobriu o rosto com o braço para se proteger das garras de navalha e dos esbranquiçados dentes de cerrinha. Mais do que depressa, Kal posicionou-se entre os dois encostando com as mãos no peito da criatura e arremessou-o contra a parede.

- Vem comigo. – disse Kal estendendo uma das mãos para Sara.

Assustada, ela aceitou a ajuda sem problemas. Os dois correram até a porta, mas não conseguiram abri-la.

- O que faremos? – perguntou ela atemorizada – O que está acontecendo?

Kal olhou para o alto e agarrou uma das cabeças que estavam penduradas e atirou em direção a janela e quebrou uma parte do vidro.

- Olhe o que está acontecendo lá fora! – disse Kal percebendo que um segundo Griphon estava entrando dentro do cômodo atravessando o teto.

Sara concordou após averiguar se a criatura ainda estava inconsciente no chão. Kal esperou que ela estivesse bem distraída para que ele pudesse usar a varinha. O momento certo chegou quando Sara pegou um pedaço de madeira do chão e usou para quebra o restante do vidro da janela.

- Pelínculo! – falou Kal bem baixinho. O feitiço acertou o Griphon no teto provocando um grande clarão roxo.

- O que foi isso? – perguntou a garota olhando para trás de supetão.

- A... a lâmpada... ela acendeu e apagou. – disse disfarçando.

- Roxa? – disse de forma duvidosa – Venha ver! O todo mundo está correndo.

Kal franziu o cenho e se aproximou rapidamente da garota para observar o que se passava do lado de fora. Pessoas gritavam de um lado para o outro desesperadas, Griphons corriam e saltavam entre os brinquedos causando medo e com certeza muito pânico.

- Olhem meus pais! – disse Sara apontando para Alexandre e Mara Chiabai que estavam encurralados por dois Griphons entre a lona do circo.

Droga! Não posso fazer nada daqui sem que Sara me veja. Praguejou Kal.

Antes mesmo que outro pensamento corresse por seus nervos, um lampejo rosa atravessou o chão empoeirado do parque e acertou os Griphons dos Chiabai, engolindo as criaturas em uma luz fluorescente intensa.

- De novo! – disse – Você viu aquilo?

- Vi. – confirmou, já que não poderia fazer diferente. Só uma pessoa que eu conheço produz uma luz rosa. Guinevere. Pensou – Vamos descer pela janela.

Kal ajudou Sara sentar-se no parapeito da janela e ficar de pé no telhado da varanda da frente, onde embarcaram no carrinho.

Antes que ele se juntasse a Sara, certificou-se de que o Griphon que ele jogara contra a parede não os importunaria mais.

- Pelínculo!

Kal subiu no telhado e viu que o olhar incerto de Sara fitá-lo.

- Acendeu de novo... – falou sem graça.

- Tudo bem, vamos.

Agarrados à parede, os dois se aproximaram da beirada onde desceram por uma escada de madeira convenientemente posicionada.

- Sara! – gritaram Alexandre e Mara em coro agitando os braços para que ela pudesse vê-los.

- Olha lá! – disse a garota.

Os dois correram agilmente, passando por algumas outras pessoas que corriam na direção oposta.

- Vocês estão bem? – indagou Alexandre abraçando a filha.

- Kal, seu braço... – falou Sara apontando para o garoto, que só agora percebia estar com o braço sangrando, provavelmente quando impediu que o Griphon atacasse Sara.

- Não é nada.

- Deixe-me ver isto. – disse Mara já segurando o braço dele – O corte não é tão profundo, mas precisa de um curativo rápido.

Sem aviso, um Griphon rasgou a lona atrás deles e puxou Kal com toda a força para dentro do circo.

- Kal! – berrou Sara quase que aos prantos.

Antes de ser arrastado até o picadeiro, Kal ainda viu que outro Griphon atacou Mara e Alexandre, distraindo-os, mas não foi o suficiente para que Sara segui-se os rastros do primeiro.

Kal fora largado no meio do picadeiro. Todo o lugar estava engolido pela escuridão e pelo som rouco das criaturas. O ar gelado penetrava nas narinas de Kal e estremecia todo o seu corpo, como se fosse navalhar de puro gelo cortando-lhe as veias dos braços e das pernas.

Ele olhou para os lados, mas não viu nada. Apenas ouvia o som rouco dos Griphons e ao longe um grito desesperado de Sara que estava perdida naquela escuridão. Ao longe, onde a lona foi mexida, certamente não pelo vento, mas por alguém. Uma luz fraca foi acesa somente para revelar a Kal um conhecido e gigantesco par de asas de morcego rasgada.

- O que você quer, Kricolas? – perguntou Kal perdendo a noção do perigo que corria estando sozinho ali.

Com um estalo que reverberou pela lona vermelho sangue, um holofote foi aceso em cima do picadeiro, iluminando Kal por completo. Ele olhou para os lados e espantou-se ao ver mais de vinte Griphons em posição de ataque, todos a sua frente com olhares famintos. O inconfundível som rouco estava preso em sua mente, deixando-o tonto e inconsciente. Era isso o que eles faziam. Desnorteavam a presa para poderem derrubá-la com facilidade.

Num misto de alegria e desapontamento, Kal ouviu a voz de Sara se aproximar a largos passos, saltando a proteção que separava o picadeiro da arquibancada e abraçando o garoto rapidamente.

- Quem são eles? – perguntou com a voz trêmula.

- Eu não sei... temos que sair daqui...

- Faz alguma coisa, Kal. Por favor...

- Mas... mas o que eu posso fazer?

-Você pode. Eu sei que pode... eu já vi você fazendo...

- O quê?

- Kal, a luz roxa, usa a luz roxa, como você fez quando caiu do elefante e lá na casa.

O coração de Kal saltou até a garganta ao descobrir que Sara sabia que ele tinha poderes, mas achou que ela não sabia muito mais do que isso. Mesmo assim ponderou se deveria, realmente usar o Pelínculo na frente dela. Mas a situação ficava cada vez mais crítica. Os Griphons já estavam se aproximando e quando três deles saltaram, Sara olhou nos olhos de Kal e implorou pela última vez:

- Por favor...

- Égide Silver! – uma poderosa bola prateada envolveu-os rapidamente e os três Griphons tiveram a sensação de baterem em uma parede de concreto.

Sara abriu os olhos e abraçou Kal mais fortemente, que a envolvia com o braço esquerdo enquanto mantinha o feitiço com a mão direita. Os vinte Griphons insistiram em atacá-los mesmo eles estando protegidos pelo escudo. A insistência das criaturas foi premiada com a primeira rachadura no escudo.

- Kal... – suplicou Sara.

- Não vou agüentar por muito mais tempo. – disse já sentindo os joelhos cederem com o peso do corpo.

- Fechem os olhos! – gritou uma voz vinda da entrada do circo – Pelínculo!

Uma luz azul intensa clareou todo o ambiente provocando também um forte vento que soprou os Griphons para o outro plano, o astral.

Quando a luminosidade voltou ao normal, Kal observou quem usara o feitiço, imaginando que pudesse ter sido Daimon, mas enganou-se completamente. Havia outro bruxo ali com eles. Um que Kal jamais vira como bruxo e sim como palhaço.

Risadinha aproximou-se dos dois ainda com sua maquiagem e roupa de palhaços, porém sem a peruca e os sapatos exageradamente grandes.

- Em nome da Guarda Armada de Warren, vocês estão bem? – perguntou apreensivo.

- Sim, estamos... – disse Kal conferindo Sara, que tremia em seu ombro.

- Vamos sair! Depressa.

- O que está acontecendo afinal? Quem é você? – indagou Kal para o bruxo a sua frente.

- Ataque de Griphons. Ivo Gostuânia, enviado especial de Warren para defender os Foster.

- Você apareceu bem na hora. – falou Sara – Kal, obrigada por me proteger.

- Não vamos fazer agradecimentos ainda. Depressa, para fora. Eu vou verificar se há mais algum Griphon aqui dentro. Vão!

Sara e Kal acataram a ordem do bruxo e correram o mais depressa possível até encontrarem Daimon e Guinevere próximos a um telefone público.

- Por Merlin! Que sufoco! – disse Guinevere ao verem Sara e Kal aproximarem-se apavorados – Vamos sair do parque agora!

- E meus pais? – perguntou Sara.

- Já estão nos esperando no carro. – informou Daimon – A senhora Chiabai teve um desmaio e seu pai a levou imediatamente.

- Ok, então. Vamos!

Antes que eles pudessem correr, o telefone ao lado começou a tocar. Eles encararam uns aos outros sem entender nada. Aquele era um telefone público dentro de um parque de diversões. Ninguém ligaria para ele, muito menos àquela hora e naquela ocasião. Quase nada fazia sentido. Kal tinha apenas uma certeza. Seja lá quem estivesse ligando, pretendia falar com ele.