segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Desejos e a fumaça

Era mais um dia entediante como qualquer outro. As mesmas pessoas na sala de aula, a mesma ladainha sobre cadeias de carbono, mitose e meiose, sujeito e predicado, trigonometria e mais blá, blá, blá...

Os minutos agradáveis conseguidos no intervalo já estavam longe do pensamento naqueles dez últimos minutos de aula em que os professores gostavam de tornar mortificantes o suficiente para derrubar o ânimo juvenil de qualquer estudante.

Os ponteiros do relógio na parede pareciam estar colados. Simplesmente não se moviam. Mas os ouvidos do garoto estavam bem atentos ao sinal da escola. Logo, logo ele tocará. Pensou, ansioso.

Era a última semana de aula antes das férias de julho, e logo, ele e os pais viajariam para o litoral. Nada como uma boa praia e uma água de coco para fazer esquecer todas aquelas regras e raízes quadradas que ele absorvera nos últimos meses.

Sete minutos...

O professor andava de um lado para o outro, esforçando-se para manter a atenção dos alunos, que já guardavam seus materiais escolares.

- Ainda temos mais alguns minutos. – alertou o professor, ao consultar o relógio na parede.

O garoto batia o pé embaixo da mesa. Os olhos já não conseguiam focar um único ponto e giravam nas órbitas como se fosse um prisioneiro desesperado por uma oportunidade de fuga. Mas ele sabia que a fuga logo chegaria... apenas mais cinco minutos.

Debruçando-se sobre a cadeira, o garoto decidiu fechar os olhos e pensar nos momentos agradáveis que estariam por vir. Assim, talvez, a ansiedade não fosse mais desesperadora e os cinco minuto finais da aula, conseqüentemente, menos mortificantes.

Não demorou mais do que o tempo de se abaixar. Após não obter da turma a resposta para o valor de π, o professor viu-se derrotado pela proximidade das férias e liberou os alunos.

A animosidade se viu refletida no barulho de carteiras se arrastando e no espreme-espreme provocado na hora de passar da sala para o corredor. Os alunos se acotovelavam nas escadas e corriam até o portão de saída. Ele, no entanto, estava mais tranqüilo depois de livre da sala de aula. Suas férias já se iniciavam do jeito que planejara. Tudo o que precisava agora era chegar em casa com tranqüilidade, almoçar, colocar seus últimos pertences na mala e cair na estrada com os pais...

Despediu-se dos colegas com um aceno, desejou-lhes boas férias e seguiu caminho assoviando uma música que passava em sua cabeça. Tinha um ritmo bem baiano; descontraído e risonho. Provavelmente era algum axé que ele ouvira numa rádio qualquer e já não se lembrava.

Sua escola ficava bem próxima a sua casa, apenas quatro quadras de distância. Era muito rápido o trajeto e durante ele, sempre via as mesmas pessoas. A sra. Salestiana, dona da padaria em que, costumeiramente, ele passava para comprar alguns doces antes da aula; o sr. Ronaldo, um caminhoneiro conhecido da região que passava o dia a revisar seu instrumento de trabalho e Pedrinho Tião, um pinguço que vivia a tropear pelo bairro cantando bossa nova e recitando versinhos românticos para as mulheres que por ali transitavam.

Apesar de ser totalmente inofensivo, o garoto não gostava de topar com Pedrinho Tião. Havia nele um quê de derrota que o incomodava, mas não sabia por que se sentia assim. Apenas sentia.

Naquele dia, porém, a padaria estava fechada e tanto o caminhão quanto o sr. Ronaldo não estavam na rua. Porém, ao longe, o garoto viu os pés caídos de Pedrinho Tião entre latas de lixo tombadas, bem em frente ao destino final.

Por que ele tinha que cair logo aí? Perguntou-se o garoto, muito enraivecido.

Meio que de soslaio, ele tentou dar a volta no bêbado para chegar até o portão e entrar sem ser notado, pois sabia que Pedrinho Tião faria um pequeno escândalo se fosse acordado.

Mas que droga! Bravejou o  garoto ao perceber que o homem estava escorado justamente no portão.

- Ei. Ei... – chamou – Acorda.

O bêbado, porém, não se mexeu. Ele não tinha muito mais que trinta anos, cabelos lisos, sujos e compridos até a altura do queixo, pele queimada pelo sol e enrugada pelos hábitos pouco saudáveis, trajava uma calça de brim bege que exalava um azedume de urina e fezes misturadas e uma camisa de botões que um dia fora branca.

A cabeça estava caída, quase encostando na própria barriga e não havia em nenhuma de suas duas mãos uma única garrafa de cerveja ou cachaça. O que era, de fato, estranho.

- Vou chamar a polícia. – ameaçou o garoto, cutucando o bêbado com o pé direito, mas, como da primeira vez, não obteve resposta.

Ele olhou pela rua buscando por alguma ajuda. Não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Não naquele dia.

O garoto estendeu um braço até o interfone da casa e apertou o botão na esperança de que seus pais já estivessem em casa para acudi-lo. Quando fez-se o barulho do interfone saindo do gancho, produzindo os sons de dentro da casa, não houve uma voz, nem sussurro, ainda assim, o garoto respondeu.

- Cheguei!

A trinca estalou várias vezes quando alguém, dentro da casa, abriu o portão. Automaticamente, o peso de Pedrinho Tião empurrou o portão para dentro e, por conseguinte, o deixou estirado no chão, a cabeça virada de lado.

Dessa vez ele acorda. Pressupôs o garoto. Cedo demais.

Vendo que o bêbado não reagia, ele entrou em casa e foi espiar mais uma vez o homem. Uma onda de choque tomou-lhe por inteiro ao ver de perto, e pela primeira vez, o rosto de Pedrinho Tião. A garrafa que lhe faltava à mão estava enterrada em seu crânio, fora enfiada por baixo da mandíbula até o cérebro, mas, estranhamente não lhe escorria sangue.

- MÃE! – gritou o garoto em desespero, correndo para dentro da própria casa.

Tal seu desespero que somente notou que a porta da entrada fora explodida quando já estava saindo a caminho do segundo cômodo. Observou os demais móveis em volta e pareciam intactos. Saindo da sala e partindo para a cozinha, deparou-se com gavetas reviradas, pratos quebrados e a geladeira caída sobre a porta numa tentativa inútil de bloquear a passagem até a sala de jantar.

Seu bom senso parecia ter sido anestesiado assim que pisou dentro da casa. Em qualquer outra situação ele teria saído à rua gritando desesperadamente por socorro, mas aquela era a sua casa. A casa dos seus pais. Não havia o que temer.

Na sala de jantar, mais rastros de luta. Uma mesa de vidro quebrada, garrafas de vinho estilhaçadas, paredes queimadas e no alto da escada de acesso ao segundo andar um tremendo choque.

O garoto procurou evitar aquela visão pavorosa e angustiante. Seu pequeno poodle fora preso à parede com uma fava atravessada na garganta, manchando toda a área com seu sangue canino, que fora derramado numa tentativa valente de proteger o lar de seus donos.

- Ahhhh! – gritou uma mulher, no segundo andar.

Mais que depressa, o garoto rumou até a origem do grito, passando pelo cadáver do animal sem nem ao menos lhe dedicar atenção. Aquela era sua mãe e ela precisava de ajuda. Ao pé do segundo andar, ele localizou uma faca caída e a empunhou com valentia. Seu coração pulsando mais rápido do que jamais pulsara antes. O pensamento de férias calmas e tranqüilas no litoral já inexistentes e uma incrível saudade de trigonometria.

A porta do quarto de seus pais estava entreaberta e sombras indistintas eram projetadas pela luz que incidia pela janela e iluminava o quarto. Ele não soube se fora por valentia ou burrice, mas segundos depois estava escancarando a porta para dar de cara com a cena que marcaria para sempre a sua vida. Havia três ocupantes no quarto. Todos amontoados em cima da cama de casal ensangüentada. Um dos ocupantes estava caído de barriga para cima, os braços escapulindo pelas beiradas, os dedos ainda se mexiam por espasmo, mas o restante do corpo estava visivelmente morto. As vísceras expostas e rosto manchado de vermelho traziam a expressão de quem sofrera terrivelmente até chegar àquele estado.

O Segundo ocupante era monstruoso. Grande, forte, amarelado e nodoso. Um estranho par de asas rasgadas se armara ao ver o garoto. Ainda assim, essa súbita invasão não o impediu de dar um último mergulho no sangue que escorria do pescoço da mulher que ele segurava com tanta sede. Ela ainda estava viva quando viu o garoto entrar no quarto, mochila nas costas, faca na mão e a pior representação do medo.

- Cor-rre... – disse ela num último esforço, antes de se entregar com prazer à morte e cair por cima do corpo frio do marido.

Apavorado, o garoto deixou a faca cair no chão, por pouco ela não o perfura o pé. Descendo as escadas três ou quatro lances por vez, ele tropeçou na metade do caminho e bateu de cara com a parede, a testa latejou de dor após o contato, mas a adrenalina anestesiara aquele ferimento muito rapidamente.

Outra vez no primeiro andar, ele correu até a saída, saltando pela geladeira que obstruía o caminho. Quando pensou estar a salvo na sala de estar. O assassino de seus pais surgiu como fumaça em seu caminho. Só agora sua atenção pudera entrar em detalhes da criatura.

Ele possuía um focinho achatado como o de morcego, olhos injetados e uma fúria que transpirava de cada poro.

O garoto tornou a correr para dentro, desesperado por ajuda. Saltou uma terceira vez sobre a geladeira planejando pegar o telefone sem fio, retornar ao segundo andar e trancar-se no banheiro para fazer uma ligação.

Ele não soube explicar como, mas assim que se aproximou da mesa com o telefone, ela simplesmente explodiu à ordem do assassino.

Encurralado, o garoto olhou para a enorme janela de vidro que servia como fonte de iluminação de toda o ambiente e decidiu que aquela seria sua única salvação. Retirou a mochila das costas, colocou-a diante da cabeça para se proteger e se atirou contra o vidro.

Com a astúcia improvisada, ele se equilibrou e já quase alcançava o portão de saída quando o assassino usou de alguma força que ele não conhecia e o fez tropeçar. A mochila ficou de lado quando ele caiu por cima do corpo de Pedrinho Tião. A pressão do impacto fez a garrafa sair de dentro do crânio seguida por litros de sangue...

A estranhíssima criatura puxou o garoto pelo ombro e o encarou por alguns instantes. Aqueles olhos vermelhos vasculhando os olhos castanhos, como se estivessem tentando penetrar a mente e a alma. Mas o garoto já achava que sobrara pouco das duas coisas. Não havia nada em sua mente que não fosse tristeza, angústia, medo – muito medo, pavor, aflição e infelicidade infinita. E sua alma, ele sabia, estava assombrada por cada um desses péssimos sentimentos. Certamente já não era uma alma tranqüila que valesse a pena se roubar.

- O q-ue q-q-quer? – perguntou o garoto, que agora sentia aqueles dedos nodosos abraçarem tão fortemente sua garganta.

A resposta que ele recebeu do assassino foi uma pressão maior sendo exercida por aqueles dedos, as unhas afiadas rasgando-lhe a carne...

Sons sufocados do garoto se confundiam com a respiração ofegante do assassino, que agora sorria e parecia contente ao exibir suas longas presas vampírescas.

Pela mente do jovem Thalis Kinguest passavam as últimas imagens tranqüilas de seu dia. Como seria bom retornar para aquela última aula de sexta-feira antes das férias. Como os números eram amigáveis. Biologia nunca lhe pareceu tão interessante quanto agora. História seria extremamente excitante, se tivesse outra oportunidade.

Seu pavor era tamanho que sua mente estava eliminando qualquer pensamento negativo. Ele tentou relembrar dos pais no andar de cima da casa, mas já não podia. A pressão daqueles dedos repeliam suas memórias e ele só pensava em sua sobrevivência.

Enquanto o ar lhe faltava nos pulmões, ele imaginou-se respirando ar puro, uma outra vez. Sentiu seu corpo livre daquela pressão e longe daquele assassino. Ocorreu-lhe então uma floresta deserta, preenchida por árvores altas e espessas, abrigo de pássaros e outros animais. Queria sentir-se de novo entre pessoas como ele. Queria fazer novas amizades. E tão forte foi o seu querer, que seu corpo quase morto pareceu inflamar-se de desejo. Cada centímetro ardia como brasa, seus órgãos pareciam estar se afastando, e isso nada tinha a ver com o vampiro que ainda o segurava. Então, ele reabriu os olhos a tempo de ver a surpresa na face daquele monstro ao ver sua vítima desaparecer de suas garras deixando para trás apenas um rastro de fumaça.