domingo, 4 de maio de 2008

Capítulo 2 - A casa Foster

Araçá era um pequeno bairro residencial de Anomatí, uma cidade no interior do sul do Brasil. No interior do bairro, a Rua Guaçuí se estendia de uma pequena praça com brinquedos até um sobrado que tinha em seu quintal uma lagoa de águas esverdeadas. As casas tinham formas e tamanhos variados, algumas com apenas o andar térreo e outras que chegavam até o terceiro andar. Todos os dias de manhã, os moradores da levantavam-se bem cedo, abriam suas portas e janelas, colocavam seus carros modernos para fora, levantando uma massa cinzenta de fumaça que empestava toda a rua. Depois de feito este ritual diário, eles enfurnavam-se em ternos ou vestidos longos, enfiavam-se nos carros e saiam para o trabalho no centro da cidade.

Em quase todas as casas esta era a rotina. Mas não na casa número vinte e dois.

Os moradores da Rua Guaçuí ainda tentavam se acostumar com o estilo de vida dos novos vizinhos. As três crianças raramente saiam do quintal da casa que era cercado com um muro alto e bem gradeado. A mãe delas não trocava palavras com os vizinhos, eles nem ao menos sabiam exatamente o seu nome e porque haviam se mudado para aquele bairro tão isolado.

No dia da mudança, alguns deles se ofereceram para ajudar a carregar umas caixas pesadas, já que seria impossível três crianças e uma mulher levantá-las sozinhas, mesmo assim, relutante, a mulher agradeceu e dispensou toda a ajuda.

- Mal educada. – disseram eles.

Após um dia inteiro de entra e sai de caixas, a nova família trancou a porta da frente e fechou as cortinas dos dois andares da casa, que não era tão grande, mas suficiente para abrigar as quatro pessoas. O jardim havia sido decorado com pequenos anões, que segundo souberam os vizinhos, haviam sido um presente de uma amiga da região do Amazonas, e algumas margaridas e tulipas que estranhamente os moradores da casa queixavam-se porque elas não estavam se movendo. Sem dúvida alguma era a família mais esquisita que já residira em Araçá.

Talvez, a única casa que pudesse se igualar aos vizinhos do número vinte e dois fosse a da velha senhora que residia no número dezessete. Enquanto todos os moradores de Rua Guaçuí expunham-se em público para conversar, a senhora de cabelos brancos e de pele flácida, fazia de sua casa sua grande fortaleza anti-social.

No segundo dia da mudança, os Almeida, moradores do número vinte e um, levaram um bolo de boas vindas aos novos vizinhos, um menino de cabelos e olhos castanhos colocou o rosto para fora do portão, estendeu um dos braços para receber o presente, agradeceu rapidamente e em seguida trancou o portão sem nem mais uma palavra.

- Que gente esquisita. – disseram.

No terceiro fim de semana desde a chegada da família ao bairro, eles receberam sua primeira visita. Um velho senhor de olhos bem azuis, com a cabeça quase careca, porém com algumas tranças desalinhadas que lhe batiam abaixo dos ombros e uma barba quase tão longa que seria possível amarra-la ao cinto que segurava sua calça marrom lama.

- Bom dia. – cumprimentava ele aos moradores que lhe encaravam curiosos.

Certamente se poderia haver tipo mais esquisito de pessoa que os moradores do número vinte e dois, com toda certeza seria este estranho senhor.

- Bom... bom dia... – responderam alguns somente por educação.

O velhote seguiu rua acima até chegar ao portão, então chamou pela dona da casa.

- Sra. Foster!

Como se estivesse esperando pela visita, a mulher, imediatamente, colocou o rosto na janela e disse:

- Oh, bom dia Prof. Cacius. Queira entrar, por favor.

A trava elétrica do portão estalou e este imediatamente se abriu para receber o visitante. O homem sorriu e deu bom dia para os anões de jardins enquanto caminhava em direção à pequena varanda de entrada. No meio do caminho, Cacius foi surpreendido por um gato de pelo laranja e estranhamente o homem respondeu.

- Bom dia, Fred.

Os moradores olharam-se curiosos e então sacudiram a cabeça e foram para seus lares certos de que já haviam visto de tudo.

Alexia Almeida pegou sua vassoura de piaçava e saiu sacudindo até a porta de entrada de sua casa para espantar os pombos que se alimentavam de migalhas de pão caídas pela calçada.

- Malditas aves! Malditas aves! – resmungou.

- Esta rua está parecendo um zoológico! – resmungou junto seu marido.

Era verdade. Após a mudança da família Foster, a Rua Guaçuí recebeu um considerável contingente de animais que passaram a perturbar toda a vizinhança. Eram pombos em todas as calçadas, cachorros latindo e uivando, gatos que andavam pelos telhados à noite e ratos que percorriam todas as casas, atravessando cozinhas e salas a qualquer hora do dia como se nada os incomodasse.

Os únicos simpatizantes da família Foster eram, ironicamente, seus vizinhos mais distantes, os Chiabai. O casal Mara e Alexandre e sua filha de treze anos, Sara, haviam indicado aos Foster onde era a sua nova casa assim que chegaram ao bairro. Naquele mesmo dia, Amanda havia feito um convite para que, num sábado, eles fossem almoçar em sua recém inaugurada casa. Passaram-se dois finais de semana e os Chiabai ainda não tinham se apresentado para o tal almoço, mas, ao que parecia, os próprios Foster também haviam esquecido, ou não se importado.

Ao término do primeiro mês, os vizinhos começaram a reclamar que as lâmpadas dos postes não duravam mais do que uma noite sem queimarem. E a companhia de luz passou a ter que trocá-las quase que diariamente. Certa vez, um vigia foi contratado para descobrir quem estava queimando as lâmpadas, ele passou a noite inteira perambulando pela rua para apanhar o vândalo, mas ao invés disto, surpreendeu-se ao ver que a casa dos Foster parecia abrigar uma boate. Luzes coloridas piscavam por todos os cômodos da casa e barulhos estranhos como chicotadas e tambores ruíam pelo jardim. O vigia estava estático olhando aquela cena, pensou em tocar a campainha e perguntar se estava tudo bem por lá.

No momento em que se decidiu por fazer isso, as luzes da rua começaram a piscar freneticamente atraindo a atenção do homem que deixou os braços caírem sobre as pernas e a boca abriu-se quase que automaticamente. Foi um piscar incessante até que finalmente todas as luzes se apagaram de uma só vez, deixando a Rua Guaçuí completamente mergulhada em sombras.

Na manhã seguinte, mais uma vez, a companhia de luz e energia veio fazer a troca das lâmpadas, no momento em que o velho homem de tranças atravessava a rua, a pé, para visitar mais uma vez a família Foster.

- Bom dia, senhor. – cumprimentou Alexia Almeida que já se acostumara com a figura do visitante.

- Bom dia, senhora. – disse gentilmente – Sabe me dizer se a sra. Foster está em casa hoje?

- Com certeza sim. – respondeu a mulher – Ninguém sai daquela casa, senhor.

- Eles sofreram muito nestes últimos meses...

- Como assim? – perguntou a mulher debruçando-se sobre o seu muro.

- Outra hora, talvez. – falou ele sorrindo.

- Tenha um bom dia.

- Igualmente.

Cacius atravessou a rua em direção ao número vinte dois que, para sua surpresa, encontrou o portão destrancado.

- Estou entrando. – anunciou – Bom dia! – disse para os anões, como era de costume fazer.

- Oh, estávamos esperando pelo senhor, Prof. Cacius. – disse Amanda, que surgira em uma das janelas da frente – Fiz uns bolinhos.

- Fico grato. E os meninos? Como estão?

- Superando, eu diria. Kalevi sentiu mais com a perda, mas acho que ele consegue.

- Tenho certeza. Tenho certeza. Você tem filhos muito corajosos.

Amanda permitiu-se um pequeno sorriso de orgulho, mas ainda assim não parecia muito contente.

- Professor, o que está acontecendo no mundo... no mundo...

- No mundo mágico? – completou Cacius olhando em volta – Acho que ninguém pode nos ouvir aí dentro.

- Certo. – concordou ela acompanhando o professor até a entrada da casa através da pequena varanda – Mas o que está havendo lá? Os guardas sumiram. Não há mais pombos, gatos, cachorros ou ratos. Ninguém está vigiando a rua. Estou com medo.

- Não há com o que se preocupar. – falou Cacius já fora do alcance de ouvidos curiosos – Bem, eu posso oferecer proteção em quanto eles não voltam.

- Mas por que eles foram embora então? O Governo desistiu de nos proteger?

- Não exatamente sra. Foster...

- Mamãe quem est...

- Olá, Kal. Há quanto tempo. – saudou Cacius.

- Olá, professor. – cumprimentou secamente – Desculpe, agora tenho que ir.

O garoto saiu pela porta da frente correndo em direção à rua, sua mãe em seus calcanhares.

- Não vá longe, Kalevi Foster!

- Deixe-o. Tenho certeza de que estará seguro...

Esta foi a última frase de Cacius que Kal pôde ouvir. O garoto vazou pelo portão de entrada e desceu a rua em direção à praça, sem destino exato. A companhia de luz ainda estava fazendo o serviço de troca das lâmpadas e alguns moradores estavam acompanhando o trabalho dos operários e conversando.

Kal passou por eles sem ao menos notá-los, mas eles repararam bem o menino. Era a primeira vez que um dos Foster colocava os pés fora de casa, e este parecia estar afoito para fazer isto, porque correu loucamente como se tivesse ganhado a liberdade de uma prisão. Kal Foster estava com um jeans desbotado e uma camisa de manga cumprida um pouco mais larga do que deveria ser. Aparentemente sua mãe havia se distraído na compra e escolhera uma um número maior.

- Você ouviu a sua mãe! Não vá muito longe! – disse Alexia quase que correndo atrás dele como uma dama de companhia que fora largada para trás.

- Não use a varinha, não use a varinha... – falou entre os dentes de modo que ninguém pudesse ouvi-lo.

Kal não estava se acostumando muito bem ao novo estilo de vida que lhe fora imposto. Não usar a varinha durante o dia, não poder brincar de duelo com Daimon e Guinevere, enfim, não fazer nada para chamar a atenção dos outros moradores. Nestas horas, Kal sentia saudades dos resmungos e implicâncias dos moradores de Vila da Cachoeira, pelo menos, lá, ele poderia agir de maneira natural.

Em Avalon, a escola de magia que Kal estudara no ano anterior, ele havia aprendido diversos feitiços, os quais planejava colocar em prática assim que retornasse para casa. Mas isto agora parecia impraticável. Sua nova casa estava cercada de guardas de Warren muito bem disfarçados de animais e sua mãe não abria uma brecha para diversão. Mas naquela manhã, Kal Foster havia planejado tudo muito bem. Assim que ouvisse Cacius chegar em sua casa para conversar com Amanda, ele passaria pelos dois em disparada e sairia, finalmente, do número vinte e dois.

A praça no final da rua não tinha muito mais que alguns canteiros de flores, algumas gramíneas e um pequeno playground com escorregador e balanço. O lugar estava deserto àquela hora do dia, ao que parecia, não havia muitas crianças na Rua Guaçuí e os adultos que não estavam trabalhando estavam observando o interessante trocar de lâmpadas.

Kal aproximou-se de um dos balanços e sentou-se. Ficou a olhar para a praça à procura de algo móvel com que pudesse se distrair, mas não encontrou nem mesmo uma formiga. Mas para sua surpresa ele ouviu atrás de si uma voz feminina e aveludada que desconcertou seus pensamentos.

- Olá.

Kal virou-se para examinar quem seria e contemplou aquele rosto de pele clara e cabelos bem enegrecidos e alisados, lábios rosados, nariz fino e olhos verde vivo. Ele sentiu que conhecia a garota, mas em sua mente ela o lembrava uma garota por quem se apaixonara em Avalon, Emanuela Goldemberg, no entanto Emanuela era loira e tinha os olhos bem azuis.

- Olá... – respondeu ele timidamente.

- Posso me sentar? – perguntou ela segurando um balanço ao lado de Kal.

- Claro.

- O que está fazendo aqui?

Ele olhou para as pessoas da companhia de luz, deu uma pequena risada e voltou à garota.

- Não acho um passatempo divertido assistir a troca de lâmpadas. – comentou.

A garota deu sorrisinho e então disse.

- Qual o seu nome?

- Kalevi Foster. – a garota eriçou as sobrancelhas, talvez assustada com a espontaneidade que ele demonstrara ao dizer o nome por completo – E o seu? – perguntou tentando se redimir.

- Sara. Sara Chiabai, já que você gosta assim.

Agora era a vez de Kal levantar às sobrancelhas incomodado com alguma coisa.

- Vocês nos mostraram nossa casa assim que chegamos na rua, não foi?

- Exatamente. Mas só não entendemos como não sabiam onde era a própria casa. Quero dizer... as pessoas olham as casas antes de comprá-las, não é?

- É que... é que... foi uma herança.

- Ah... e vocês moravam onde?

- Morávamos no Centro-Oeste do país.

- Goiás, Mato Grosso...?

- Pode ser... – disse Kal sem saber na verdade qual era o estado em que morava. Os bruxos não ligavam muito para a geografia dos humanos não mágicos.

Sara permaneceu curiosa, mas decidiu não perguntar mais nada sobre a antiga casa de Kal.

- Você mora aqui há muito tempo? – perguntou.

- Sim. Meus pais trabalham no centro da cidade e eu estudo no colégio do bairro. A propósito, você vai se matricular aonde?

- Hã... é...

- Ainda não decidiram?

- Acho que vou permanecer na minha antiga escola.

- Na Região Centro-Oeste?

- Não. Ela fica no Amazonas. No meio da... – Kal ponderou sobre o que ia dizer, estava se expondo demais, por um triz ele não dissera que sua escola ficava no meio da Floresta Amazônica, sobre uma nuvem, acima de uma cidade cheia de elfos, fadas e outras criaturas mágicas – No meio da capital.

- Oh sim... – disse ela achando que Kal tinha algum tipo de problema – Você tem irmãos não tem?

- Sim. Na verdade apenas o Daimon é meu irmão. Guinevere mora com a gente desde que os pais dela morreram, já faz um bom tempo isto.

- Vocês não gostam muito de se expor, não é?

- Aconteceram muitas coisas...

- Que coisas?

- Coisas difíceis de explicar... perdas, na verdade.

- Desculpe. – falou ela percebendo que estava entrando em um assunto delicado.

- Ainda estamos superando...

Sara permaneceu em silêncio, seu estoque de perguntas pareceu ter acabado após descobrir que os Foster estavam passando por um problema familiar um pouco mais grave do que as pessoas da rua comentavam.

- Coisas estranhas têm acontecido, não é? – disse ele.

- Defina estranho.

- Lâmpadas queimando, animais por toda à parte... a rua é sempre tão animada? – fingiu.

- Na verdade. – falou ela, pausadamente – Essas coisas começaram a acontecer depois que vocês se mudaram.

- Sério? – perguntou ele quase que convencido de que não sabia de nada a respeito.

- É o que as pessoas comentam.

- Incluindo você e seus pais?

- Não. Não nos intrometemos na vida das pessoas. Mas existem algumas pessoas por aqui que gostam de se preocupar com os outros. Bom dia, dona Alexia! – cumprimentou à mulher que disfarçadamente varria a calçada da esquina da rua – A frente já foi varrida hoje senhora!

- O que ela está fazendo ali? Aquela não é a sua casa? – perguntou Kal.

- Exatamente. Dona Alexia tem o péssimo hábito de ouvir a conversa alheia.

- Acho que entendo. – falou ele.

Neste momento Kal observou que Cacius saia de sua casa e começava a caminhar pela rua. Ele não sabia ao certo como o diretor chegava à Anomatí.

Talvez ele esfumace em um beco ou banheiro público. Pensou.

Kal observou Cacius descer a rua, pensou que talvez o professor iria até ele assim que passasse pela praça e imediatamente Kal planejou continuar a conversa com Sara para que pudesse disfarçar e fingir que não o notara. Kal Foster não estava com raiva ou rancor de Cacius. Os dois deram-se muito bem no ano anterior, na verdade. Cacius agira mais como um bom amigo do que como um professor, em Avalon, ele aconselhou e apoiou o garoto em situações difíceis e após a morte de seu pai, Adonis Foster, Cacius contara a Kal alguns segredos sobre Kricolas e o Livro de Merlin. Tornara-o seu confidente. Mesmo assim ele ainda sentia-se magoado porque Cacius aparecera minutos depois de Kricolas ter matado Adonis. Ele imaginava que se o professor tivesse aparecido mais cedo, talvez, os Foster ainda estivessem juntos em Vila da Cachoeira e não tivessem que se esconder tanto das forças malignas do meio-vampiro.

- Desculpe-me por eu estar fazendo outra pergunta, não quero que pense que sou como a Alexia. Mas quem é aquele senhor que vai até a sua casa todos os fins de semana?

- Um amigo da família. – respondeu Kal sorrindo.

- Ele parece ser uma boa pessoa. Parece ser um senhor calmo.

- Às vezes até demais. – falou Kal lembrando-se do ar sereno que Cacius mantinha em todas as ocasiões, por mais sérias e desesperadoras que sejam.

- Olhe, ele está conversando com os moradores.

Kal olhou para Cacius de imediato. Sara estava correta. O bruxo mais respeitado do Brasil, e provavelmente o melhor, estava parado diante um poste de luz a observar o serviço dos operários, como faziam os demais ao redor. Kal percebeu que se quisesse evitar Cacius aquela era a melhor hora de voltar para casa. Passaria despercebido pelo professor, que aparentava estar muito distraído e interessado pela curiosa técnica de se trocar lâmpadas de poste.

- Desculpe, Sara. – falou Kal olhando fixamente para a garota – Tenho que ir para casa.

- Tudo bem. – respondeu satisfeita – Vejo você depois?

- Ah... ah claro. – falou ele embaralhado – Você e seus pais ainda nos devem uma visita.

- Apareceremos em breve. – falou ela sem muita confiança no que dizia.

- Por que não vão jantar lá hoje? – sugeriu Kal sem nem ao menos pensar. Ele só percebera o que disse depois de as palavras já terem escapulido de sua língua.

- Sua mãe sabe deste convite? – perguntou ela.

- Oh, claro. Claro que sim. Na verdade eu vim justamente fazer o convite a vocês, mas vi que não tinha ninguém em casa e resolvi esperar aqui. – mentiu. Percebendo estar ficando bom em fazer isto.

- Tudo bem então. Vou dizer aos meus pais assim que eles chegarem do almoço.

- Se quiser... Pode levar alguém que seja especial para você também... – falou ele investigando.

- Oh, acho que... acho que não tenho ninguém em especial...

- Ok. Vejo você mais tarde então. É... então é isso. Até mais.

Kal virou o rosto antes mesmo que começasse a ficar vermelho, tinha certeza de que ela o acharia um idiota se isto acontecesse. Ele quis correr, mas também achou que os garotos não correm quando se despedem de uma garota. Ainda mais uma garota por quem se está desenvolvendo uma amizade.

Amizade, decididamente é isto. Disse Kal mentalmente.

Ele seguiu caminho com passos apertados, em certos momentos achou que iria tropeçar, mas, finalmente, conseguiu sair da praça e passar por Cacius, que estava tão entretido com o processo de troca das lâmpadas que nem ao menos o notou, ou pelo menos fingiu não ter notado.

Em casa, Amanda estava na cozinha sendo ajudada por Guinevere a fazer o almoço, uma das duas, Kal não distinguiu qual – a voz delas eram muito parecidas –, queixou-se de que não usar magia atrasava muito o serviço. Daimon estava na sala tentando ligar a televisão, que por vezes dera problema, assim como todos os eletrodomésticos da casa. Em sua primeira visita aos Foster, Cacius dissera que eles sofreriam com um problema chamado de radioestesia, que era causado quando há muita magia em determinado ambiente, tudo que utiliza energia elétrica sofre forte interferência mágica e entra em curto circuito. Este era o motivo real para as lâmpadas dos postes estarem queimando todas as noites. A magia irradiada pela casa deles gerava uma forte interferência nos postes que piscavam até que finalmente queimassem. Cacius explicou os eletrodomésticos funcionavam como copos de água cheios até a borda. E que utilizar magia perto destes objetos seria o equivalente a colocar mais água no copo. Quando ele transborda significa que o aparelho entrou em curto.

A nova casa dos Foster não era nem um pouco parecida com a mansão em que estavam acostumados a morar, onde Kal nasceu, literalmente dizendo, e onde passou sua turbulenta infância. Ao entrar na sala pela varanda da frente, chegava-se à sala, virando para a esquerda estavam a cozinha e copa, de onde Amanda e Guinevere estavam, e atravessando a sala passando ao lado da escada para o segundo andar estava um confortável banheiro. No segundo andar havia três quartos e um corredor. A casa era pintada de branca e o piso de alvenaria da mesma cor, que Amanda fazia questão de manter sempre limpo, mesmo que nunca ninguém o sujasse, ela insistia em limpá-lo, talvez para passar o tempo.

- Mamãe, temos visita para o jantar. – disse Kal enquanto subia as escadas para o segundo andar.

- Como assim? – perguntou ela vindo com um pano de prato enxugando as mãos.

Kal olhou para os lados, Daimon levantara-se do sofá e parou para fixar o olhar em Kal, assim como Guinevere fez em seguida.

- Os Chiabai, lembra?

- Kalevi, você deveria ter me consultado primeiro. Não sei se podemos recebê-los agora...

- Eu acho uma ótima idéia. – disse Cacius que acabara de abrir a porta.

- Professor... o senhor tem... certeza?

- Sim, por que não sra. Foster?

- Não sei, talvez não seja prudente... acho que não nos acostumamos muito bem com a situação...

- Pois eu acho que vocês já estão bem acostumados. – opinou.

- As lâmpadas da casa vivem piscando por causa da radioestesia, se ainda fosse de dia... não sei se vai ser uma boa idéia...

- Não se preocupe. Vamos dar um ótimo jantar.

- Obrigada, professor.

- O senhor está se convidando? – perguntou Kal indiscretamente.

- Kalevi Foster, não seja indelicado.

- Não faz mal Amanda. Não faz mal. Nós realmente não explicamos aos garotos a situação.

- Certo, professor. Meninos, venham até a cozinha aqui comigo.

- Amanda, se me permite, poderia eu mesmo dizer isto ao Kal?

Ela deu de ombros e então seguiu para a cozinha com Daimon e Guinevere. Cacius acompanhou com o olhar os três até que finalmente haviam desaparecido de sua vista, então se voltou a Kal.

- É algo difícil de se resumir. É muito mais significante do que podemos imaginar.

- Desculpe, mas eu vou subir.

- Eu lhe acompanho. – insistiu o professor.

Kal terminou de subir os degraus até o segundo andar e seguiu caminho pelo pequeno corredor até o seu quarto, no fundo estava curioso para saber o que Cacius queria dizer-lhe. Sentia vontade de abraçá-lo e chorar a morte de seu pai, contudo ainda assim queria culpá-lo por tudo aquilo estar acontecendo. Queria dizer que ele deveria ter detido Kricolas assim que chegou na Cidade dos Elfos disfarçado de Nicolas Weny, que deveria ter protegido melhor o Livro de Merlin, que deveria ter encontrado a Página Perdia antes de Kricolas e que deveria ter feito tantas outras coisas para impedir que Adonis morresse.

- Não adianta me culpar, Kal. – falou Cacius e Kal percebeu que o professor estava lendo seus pensamentos, porque os grandes bruxos têm habilidades para fazer isto.

- É costume seu espiar o que as pessoas estão pensando? – perguntou ele deitando em sua cama e passou a jogar uma bolinha de tênis para cima.

- Não preciso ler seus pensamentos para saber que você está me condenando aí dentro. – retrucou o professor com sutileza – Eu gostava tanto de Adonis quanto você, Kal.

- Mas não sente tanto a falta dele como eu. – disse, parando de brincar com a bola e olhando para o professor com um olhar cortante e gélido, cheio de rancor.

- Você ainda tem sua mãe, seu irmão, seus amigos. Várias pessoas já passaram pelo que você está passando agora. E todas elas cometeram o mesmo erro que você está cometendo. Culpar alguém inocente.

Kal sentou-se em sua cama e ele olhou para fora, viu o reflexo do lago em toda a sua serenidade. Se existisse algo mais calmo, com certeza este era Cacius.

- As pessoas que sofrem perdas graves procuram uma válvula de escape para que possam drenar todo o seu rancor. E acho que infelizmente eu sou a sua válvula.

Kal desviava do olhar do professor fingindo estar intrigado com algo em cima do guarda roupas de quatro portas a sua frente.

- Isto não vai adiantar. – insistiu o professor.

O garoto mantinha-se concentrado na difícil tarefa de ignorá-lo. Cacius não era o tipo de pessoa que abria a boca a todo instante e quando fazia isto, merecia toda a atenção possível.

- Me culpar não trará seu pai de volta, Kal.

- E o que trará? – perguntou ele virando-se para frente da cama de Daimon onde o professor estava parado, de pé.

- Não há como... sinto muito...

- Sempre há uma maneira.

- Bem que eu queria, Kal. Não só por Adonis. Esta semana Kricolas matou outro amigo.

Kal olhou curioso para o professor, não ouvira nada sobre o assunto. Geralmente os guardas de Warren que os protegiam informavam-lhes o que estava acontecendo pelo país, alguns deles conseguiam edições do Folha Mágica, o jornal mais popular entre os bruxos, mas talvez esta nova morte estivesse relacionada com o fato dos guardas terem subitamente desaparecido da Rua Guaçuí.

- O que houve, afinal? – perguntou Kal olhando fixamente para Cacius.

- Algo trágico aconteceu com Mardo.

- Kricolas matou o Ministro da Defesa e Segurança Mágica? – espantou-se o garoto.

- Não sei se matar é exatamente a palavra, talvez com mais calma eu pudesse lhe usar outro verbo, – Cacius tinha uma voz pesada quase como se ela estivesse sendo empurrada garganta acima – mas sim, Mardo está morto.

- Por que ele fez isto?

- Não saberia responder a esta pergunta. Há mais coisas na mente de Kricolas do que poderíamos entender.

- Professor. – chamou Kal e Cacius sentiu-se aliviado ao perceber que a raiva do garoto estava se esvaindo – No ano passado eu perguntei ao senhor quanto tempo Kricolas demoraria em traduzir todo o Livro de Merlin.

- E eu lhe disse que era impossível fazer esta previsão.

Kal assentiu.

- Continuo tendo a mesma opinião, se quer saber.

- O senhor já leu o livro? – perguntou Kal, com interesse.

- Algumas partes. A complexidade do livro não é verdadeira.

- Como assim?

- Isto depende de quem o lê.

- Quer dizer que...

- Quero dizer que o Livro de Merlin arma um labirinto para aquele que não têm boas intenções. Isto acontece com a maioria dos objetos criados por magia do bem.

Kal achou este detalhe de magia do bem algo bobo, mas no fundo agradecia por ela existir e ser precavida o suficiente para que os segredos mágicos mais poderosos do mundo não caiam em mãos erradas.

- Isto impedirá Kricolas?

- Esta é outra previsão impossível. Para um bruxo comum, o fato de a magia do bem estar contida no livro é o suficiente para que ele não entenda nem mesmo o significado da existência do referido objeto. Contudo, tratando-se de Kricolas, bem, ele é o bruxo mais velho do mundo, certamente, e tem muita experiência. É como eu já havia lhe dito, nós não sabemos quais os limites de seu conhecimento. Encontrar o Livro de Merlin sozinho foi uma verdadeira prova de sabedoria. A magia que protegia o livro também era magia do bem, e ele conseguiu burlá-la.

- Entendo... então os guardas de Warren foram prestar uma última homenagem ao seu ministro? É isso?

- Não teria explicado melhor. – falou Cacius simploriamente.

- Professor Cacius, tia Amanda pediu para chamá-lo para almoçar. – disse Guinevere ao colocar a cabeça para dentro do quarto.

- Oh, sim, minha querida. Creio que eu e Kal já tenhamos conversado bastante.

Quando Cacius preparava-se para sumir no corredor ele foi interrompido pelo som da voz de Kal.

- Professor, desculpe-me e... obrigado também.

Cacius sorriu para o garoto e deu uma piscadela com um de seus brilhantes olhos azuis, como se dissesse “sem ressentimentos”.

- Senti pena do ministro... – comentou Guinevere sentando-se na cama de Daimon.

- Eu também. É sempre uma pena. – falou Kal.

Guinevere era uma garota muito bonita e que se assemelhava muito à Amanda em alguns aspectos, mas a mãe de Kal tinha os cabelos negros e olhos azuis, enquanto Guinevere tinha os cabelos castanhos e olhos esverdeados, porém o jeito, a maneira de falar e a meiguice eram idênticas. Ela fora morar com os Foster quando ainda tinha seis anos, logo após a perda dos pais, que também haviam sido mortos por Kricolas em sua fuga de Warren.

- É doloroso, não é? – indagou a garota – Perder uma pessoa tão importante.

- Sim... – disse ele sabendo que Guinevere referia-se a Adonis agora.

- Eu perdi meus pais, e agora o tio Adonis...

- Pelo mesmo assassino.

- Ele vai pagar.

- Isso eu te garanto. Ele vai pagar sim.

Durante o almoço eles retornaram o assunto sobre o jantar com os Chiabai. Cacius convencera Amanda de que aquela era uma boa oportunidade para eles se entrosarem com a nova vizinhança, e que seria importante para ela fazer algumas amizades, de forma que tivesse com quem conversar quando Kal, Daimon e Guinevere retornassem à Avalon.

Já convencida, Amanda pediu algumas sugestões de pratos para impressionar os Chiabai com uma boa comida, Kal, Daimon e Guinevere sugeriram pizza, haviam viciado desde que comeram uma de presunto no dia da mudança, mas Amanda não achou que seria muito prudente. No final do almoço ela já estava muito empolgada com os visitantes, e ordenou que os meninos arrumassem a casa enquanto ela e Guinevere se viravam na cozinha para preparar o jantar.

Cacius despediu-se de Amanda, Kal, Daimon e Guinevere logo após o almoço dizendo que deveria se encontrar com alguns outros bruxos do governo, porém antes disso providenciaria um outro grupo de guardas para protegê-los, já que não poderia fazer este serviço por muito tempo. Amanda perguntou se ele estaria para o jantar, mas ele não foi muito preciso em sua resposta, ainda assim os quatro ficaram esperançosos de que o professor pudesse voltar a tempo para ajudá-los com a recepção.

Aquela seria a primeira visita não mágica que a família Foster receberia e eles não estavam muito certos de como agir, do que preparar ou dos assuntos que deveriam ser desenvolvidos durante a noite. Cacius sugeriu então que um deles fosse a uma banca de revistas próxima e comprasse alguns exemplares para que eles pudessem conhecer melhor o universo não mágico. Amanda apenas levantou o dedo num estalo e apenas disse:

- Ótima idéia.