sábado, 1 de agosto de 2009

Capítulo 4 - A Mulher, a cidade e o Conselho

Kal imaginou por alguns poucos segundos o que de tão importante Cacius tinha para lhe dizer, sendo que no dia anterior eles já haviam conversado bastante sobre Kricolas, o Livro de Merlin e Donnovan. Por sua mente não passou nada que poderia ser mais relevante do que esses três assuntos. A menos, é claro, que Kricolas milagrosamente já houvesse ressuscitado Donnovan da noite para o dia.

- Qual o problema, professor? –perguntou Kal, decidido.

- Você tem uma visão privilegiada da janela de seu quarto. – comentou o ele distraído – Este é sem dúvida um dos lagos mais belos do país. Embora duvide que possa ser tão bonito quanto o de Avalon, não é verdade?

- Sim. – disse Kal, entrando no jogo do professor.

- Deve ser muito bonito ver o reflexo da lua. – prosseguiu, lançando olhares cada vez mais nostálgicos para o lago.

- Ontem, o brilho parecia ser tão especial que todos os guardas de Warren estavam olhando para ele. – disparou Kal, sem rodeios.

- É certo. E você sabe por quê?

- Não, senhor. Mas o brilho não parecia vir apenas da lua. Era como se o lago estivesse aceso por dentro também.

- Até mesmo as coisas mais bonitas têm os seus segredos, não acha?

- O que quer dizer?

- Eu, pessoalmente, escolhi esta casa para vocês morarem. Eu a considero um dos lugares mais seguros para vocês, neste momento tão delicado.

- E por quê? Não seria melhor morarmos na Cidade dos Elfos? Próximo de vários outros bruxos. Próximo de você... do senhor. – acrescentou Kal. Cacius virou-se para ele lançando-lhe um conhecido olhar que dizia “obrigado pela consideração”, mesmo não parecendo dizer nada disto.

- A Cidade dos Elfos não é mais a mesma de antes.

- Com assim?

- Na hora certa você entenderá.

Kal resolveu ouvir o professor sem fazer mais perguntas. Aquele era o momento certo para perceber que não era a toa que os humanos possuem dois ouvidos e uma boca.

- Eu considero este lugar o mais seguro porque aqui vocês estão sob a guarda dos maiores bruxos do país. E não apenas estou falando dos guardas de Warren, mas por este lago ser um manto de poder e tranqüilidade. Ele tem um poder tamanho que ontem pôde conter nossa maior ameaça.

Ele não podia agüentar todos aqueles enigmas de Cacius. Seu cérebro fervilhava tentando decifrar o que seria aquele “manto de poder”. O garoto imaginou que o lago poderia ser um tipo estranho de cemitério para bruxos poderosos de várias gerações, mas isto seria estúpido. Todos os bruxos mortos estão enterrados no Cemitério Nacional para Bruxos, muito longe dali. Kal estava enlouquecendo com tudo aquilo e achou que se Cacius não explicasse tudo logo ele mesmo mergulharia no lago em busca de algumas respostas.

- Você sabe nadar? – perguntou o professor saltando de um assunto para o outro com pouca sutileza.

- Como?

- Perguntei se você sabe nadar.

- Sim, mas...

- Talvez seja necessário. Venha comigo.

Cacius guiou Kal até o mais próximo da margem do lago, a água era soprada pelo vento até os seus pés. O professor parou por um instante e admirou a superfície, com delicadeza tocou a pele d’água com a ponta de sua varinha.

- Professor, aonde vamos? – perguntou Kal, aproximando-se mais do lago.

- Bem, espero que não tenha enjôo por andar de barco.

Assim que Cacius selou os lábios, uma densa névoa emergiu, como se toda a água estivesse evaporando-se e do horizonte surgiu uma gôndola sem remos ou motor, guiada apenas por uma estranha figura encapuzada com um manto branco. Ela ressoava um cântico hipnotizante e Kal, embalado em seu ritmo, ficou sonolento e fechou os olhos para acompanhar melhor a melodia. Ele distinguiu o barulho de uma gaita e uma flauta, os sons misturaram-se à voz doce de uma mulher e sem nenhum aviso ele foi acordado por Cacius que o puxou pelo ombro.

- Vamos. – disse o professor subindo na embarcação.

Kal olhou para aquela cena por um instante. A gôndola de madeira flutuava no lago bem ali a sua frente, Cacius com sua mão estendida e logo atrás uma mulher de cabelos compridos tão loiros que pareciam misturar-se à névoa, formando um único corpo.

- Bom dia, Cacius. – cumprimentou a mulher com uma voz triste, mas doce.

- Bom dia, Viviane.

- Bom dia para você também, Kalevi Foster.

- Você me conhece?

- Sua história é triste. É claro que te conheço.

Kal ponderou se deveria dizer mais alguma coisa. Olhou para a mulher a sua frente que, virando-se para o interior do lago e abrindo os braços, fez a gôndola começar a se mexer suavemente.

- Não queremos ser vistos hoje, Viviane.

- Naturalmente.

A guia apontou os braços para o céu fazendo sair uma intensa luz da palma de suas mãos unidas. Esta luz envolveu todo o barco e dissipou a névoa e assim Kal percebeu que já estavam muito longe da margem.

- Viviane é a protetora deste lago e de tudo o que há nele, Kal. – informou Cacius.

- Há quanto tempo está aqui? – perguntou.

- Muito antes dos homens. – falou ela olhando para as ruas cheias de carros ao redor das margens do lago – Eles invadiram o espaço, meu lar. Mas não pude fazer nada. Os humanos são os únicos donos do mundo.

- É uma pena que a maioria deles não dê valor ao que têm. – disse Cacius concordando com o pensamento de Viviane.

- Aprenderão a dar quando o perderem.

- Até lá ainda veremos muita coisa, minha amiga.

- Eles não podem nos ver, professor? – perguntou Kal ao passarem ao lado de dois homens pescando.

- Os humanos não vêem muita coisa. – disse Viviane, num ar conformado.

- O feitiço está nos protegendo de olhares curiosos. – falou Cacius apontando para a luz que envolvia o barco.

- Chegamos, meu amigo.

- Onde estamos exatamente?

- Logo você verá.

Após Cacius dizer isto, a gôndola de Viviane começou girar lentamente e depois mais rápido, Kal ficava zonzo apenas em olhar o mundo ao seu redor dar voltas tão rápido. No entanto, nem Cacius nem Viviane pareciam sentir-se incomodados com isto. Para sua sorte aquele momento foi extinto no segundo seguinte em que o barco foi sugado para o fundo do lago. Da superfície, Kal apenas ouviu os dois homens dizerem:

- Como os peixes estão pulando hoje!

Cacius sorriu ao ver aquelas paredes brancas de marfim reluzirem sobre a luz da lamparina que surgira na dianteira da gôndola de Viviane, o barco estava flutuando no ar e lentamente descendo até um outro pequeno lago mais abaixo. Aquele lugar poderia ser Atlântida, a cidade submersa. Havia pessoas andando de um lado para o outro em sua única rua e entrando e saindo de suas quatro lojas.

- Bem vindo, Kal, bem vindo a Celacanto! – disse Cacius.

- É tão bonito. – comentou, admirado pelas oliveiras que cresciam entre as altas pilastras gregas e a margem do lago feita com degraus de pedra.

- Obrigado, Viviane. – agradeceu Cacius e a mulher inclinou a cabeça com gentileza.

- O que viemos fazer aqui? – perguntou Kal olhando de um lado para o outro observando os transeuntes.

- Viemos assistir a uma decisão do Conselho de Magia.

- E por que estou aqui?

- Ora, porque você mais do que ninguém precisa saber a verdade.

- Que verdade?

- Que Kricolas esteve em Celacanto ontem à noite.

- O quê? – espantou-se Kal, cada pêlo de seu corpo se eriçando – Como? E por qual propósito?

- O mesmo de sempre. Ele quer respostas sobre o Livro de Merlin.

- Como ele pôde ser tão cara-de-pau! – irritou-se.

- Kricolas está dominando a situação, por isso precisamos escolher logo nosso Ministro da Defesa e Segurança Mágica.

- O senhor foi indicado. – disse Kal lembrando-se da notícia do dia anterior no Folha Mágica.

- Sim, mas não posso aceitar. Além do mais outros bons nomes foram indicados.

- Como o pai do Ralph.

- Sim, por certo ele seria um bom ministro. Dormiria mais tranqüilo se soubesse que alguém tão responsável está por conta da segurança nacional. Porém, tem que compreender que nem sempre é assim. Quando disse que em Celacanto estão os maiores bruxos do país, não menti. Porém, talvez fosse preciso fazer uma importante observação de que aqui não estão os mais honestos. – Cacius lançou um olhar muito desconfiado ao fim da rua, onde uma imponente porta dupla, branca, se mantinha fechada – Os interesses políticos nem sempre coincidem com os interesses reais do país e decisões muito errôneas são tomadas sem o menor cuidado. Sem o menor escrúpulo, para desabafar de uma vez.

- Eles colocam o interesse pessoal na frente do país?

- Eles colocam qualquer coisa na frente dos interesses do país. Infelizmente eles sãos os mais poderosos e mais antigos na política... alguns jovens como Uric me dão esperanças... mas o Conselho da Magia é quase todo contaminado... lamentavelmente.

Tirando o fato da primeira má impressão, Celacanto tinha um brilho muito especial de magia. Parecia ser uma cidade recente, fato que Cacius confirmara logo em seguida dizendo que fora construída há apenas cinco anos. Toda a rua era de marfim e as quatro lojas também possuíam tonalidades claras. As colunas gregas sustentavam um teto de pedra rústica, a pequena cidade estava localizada em uma espécie de caverna submersa. O som dos sapatos nas ruas e o barulho das conversas na pequena esquina formada entre a rua e a margem do lago davam um ar vivo à cidadezinha. No meio de tantos sons confusos, um foi se aproximando de Cacius e Kal, que não resistiu ao impulso de virar-se.

- Bom dia, senhores. – falou um homem esquelético e de nariz exageradamente grande.

- Olá, Dorian. – saudou Cacius sem entusiasmo – Kal, este é Dorian Gulemarc, Secretário de Defesa e Estratégia do Estado Mágico.

- Olá, senhor.

- Trouxe o garoto para a reunião, Cacius? Pensei ter ouvido que era uma reunião apenas para bruxos de alta importância.

- Kal revelou a identidade de Kricolas, perseguiu-o e quase conseguiu impedi-lo de roubar o Livro de Merlin, se ele não for considerado um bruxo de alta importância, não sei quem mais poderia ser, Dorian. – falou Cacius em alto tom de voz.

- Esqueceu de dizer que o jovem Foster é guardião do Enid de Donnovan. Quem sabe de que lado ele realmente está.

Dorian estava claramente incitando Cacius a reagir, apesar de ser verdade o que ele dissera, que Kal tinha o espírito de Donnovan na forma de Enid em seu corpo, isto não era motivos para ter dúvidas da lealdade de um autêntico Foster.

- Uma vez herói, sempre herói, e uma vez Foster, sempre Foster. – disse uma outra voz saindo de um pub ao lado dos três.

- Bom dia, Uric. – cumprimentou Cacius a Uric Scheiffer, o pai de Ralph, um homem alto e robusto com os cabelos loiros e partidos ao meio.

- Bem, acho que eu sou o único que não se curva diante à auréola colocada sobre a família Foster. – prosseguiu Dorian – Quero que saibam que apenas desejo o melhor para o meu povo, e vou trabalhar para que eles possam viver em tranqüilidade e sem medo.

- Pelo menos concordamos nesse ponto. – reagiu Uric, posicionando-se ao lado de Kal.

- Os outros membros do conselho nos esperam. – disse Dorian, antes que saísse com os pés de banda e muito apressado.

- É um prazer revê-lo, Kalevi. – cumprimentou Uric, sorrindo.

- Como está o Ralph?

- Ele está bem, em casa. Está ajudando a Aline em algumas tarefas. – explicou – E então, Cacius, ficaria feliz se o Ministério da Defesa e Segurança Mágica tivesse você como maior representante.

- Oh, não tenho esses planos, Uric. O conselho sempre soube que nunca quis fazer parte deste governo. Também sabem os fatores e que a ordem deles não altera a minha decisão.

- Não adianta tentar escapar, professor. Em dois anos teremos eleições para presidente e o senhor novamente será indicado para o cargo.

- E mais uma vez terei que recusar.

- Muitos homens dariam a vida para ter os seus privilégios.

- É uma pena que nenhum deles a coloca em verdadeiro risco para alcançar os seus próprios.

- Realmente.

- E os guardas, Kalevi, têm feito uma boa vigília?

- Sim. – respondeu da forma mais simples – Tê-los por perto ajuda a tranqüilizar minha mãe.

- Soube que eles fizeram um bom trabalho ontem à noite também. – falou Uric.

- Sim, sim. – concordou Cacius – Kricolas chegou ao extremo invadindo Celacanto.

- Professor, como Kricolas pôde invadir este lugar. Parece tão... seguro.

- Sim, este é um lugar muito seguro, Kal, não há chances de acontecer nenhum tipo de incidente, como não ocorreu ontem. Igualmente a todas as outras cidades mágicas, esta não tem acesso restrito, não há um controle das pessoas que entram aqui. Os bruxos esfumaçam aos montes. – falou Cacius mostrando a pequena rua onde vários bruxos sumiam deixando um rastro de fumaça e outros tantos que apareciam da mesma forma.

- “Isto atrapalhará o desenvolvimento da cidade”. Foi exatamente o que Mardo disse. – comentou Uric – É uma pena que ele não possa mais ver no que isto está se transformando.

- Bem, agora temos que ir, Kal. Tenho certeza de que este assunto será muito comentado na reunião do conselho. – finalizou Cacius.

Os três seguiram pelo único caminho da cidade até uma escadaria de pedra que dava acesso as duas portas de madeira branca, que Cacius encarara a poucos. Ela se abriu assim que eles subiram o último degrau da escada e pararam a trinta centímetros da entrada. O local de reuniões do Conselho de Magia era nada menos do que um prédio de sete andares construído dentro da parede de pedra que limitava a cidade. Exatamente como a fábrica de vassouras da família Foster em Vila da Cachoeira.

Kal examinou o lugar com extrema curiosidade. O saguão de entrada tinha um caminho feito com tapete vermelho e estátuas de bruxos por toda à parte. Guardas uniformizados de Warren conversavam secretamente pelos corredores e assim que avistavam Uric batiam continência em sinal de respeito ao superior.

- Sempre achei a continência algo muito esquisito. – comentou Cacius.

- Eu também não gosto muito, mas tenho medo de perder o emprego se abandonar este costume. Velhos hábitos não devem ser abandonados e et cetera...– falou Uric.

- Bom dia, senhores. – saudou um homem magricelo ao lado do elevador. Por um momento Kal achou estar vendo Dorian pela segunda vez, mas logo se deu conta de que não.

- Bom dia, Jonas. Como vai a família?

- Bem, obrigado professor.

Por onde fossem, Cacius era sempre reconhecido e admirado, e talvez o mais estranho era que o professor também conhecia e saudava a todos como se fossem enormes amigos. Era uma característica que o lembrava muito seu pai, Adonis. Ele sabia ser gentil com qualquer pessoa, e em qualquer ocasião.

Por que teve que ser assim? Perguntou-se Kal.

- Segure o elevador! Segure o elevador! – berrou uma voz da entrada do saguão.

Jonas esticou o braço e impediu que a porta se fechasse e logo depois o dono da voz entrou no pequeno espaço quadrado com um largo sorriso.

- Olá, professor! Quanto tempo! Senhor Uric. Vejam só, se não é Kalevi Foster.

- Olá, Escritor da Terra. – cumprimentou Kal, contente por estar vendo alguém um pouco mais novo naquele ambiente tão novo e tão exclusivo.

- Apenas Bernardo agora. Deixei de usar este nome.

O rapaz à frente deles era Bernardo Mecflex, antigo aluno de Avalon, com quem Kal batalhara no ano anterior em um teste para jogar no time de Quizard da equipe de Tadewi. Quizard era uma competição realizada entre as três repúblicas da Cidade dos Elfos e coordenada pelos professores de Avalon. Escritor da Terra era o nome mágico que Bernardo adotara, mas agora, por algum motivo ele achou que era inapropriado.

- Como anda o seu projeto, Mecflex? – perguntou Uric, com um sorriso de simpatia.

- Está concluído, senhor. – falou ele apertando o botão SS do elevador.

- Resolveu aquele problema? – perguntou Cacius curioso.

- Não, senhor. Foi como disse, não há como resolver aquilo. – completou desapontado – Mas vou apresentá-lo ao conselho assim mesmo. Talvez o novo ministro se interesse.

Kal ouviu os três conversarem entre si como se ele nem ao menos estivesse ali. Ele não sabia qual era o projeto de Bernardo Mecflex, não sabia qual era o problema apresentado por ele e muito menos o que Cacius havia comentado sobre o projeto. Enfim, nada parecia fazer o menor sentido. No entanto pressentiu que todas as suas dúvidas seriam caladas na reunião do Conselho de Magia.

- Chegamos. Subsolo. – comentou Uric abrindo a porta do elevador.

Saindo do elevador, os quatro alcançaram um átrio pequeno que tinha como único propósito anteceder o imenso salão de reuniões dos bruxos mais poderosos do Brasil. Ele era como um pequeno estádio com capacidade para mais ou menos umas trezentas pessoas. O salão circular tinha em seu extremo um palanque de pedra com uma varinha pronta para ser usada como microfone e ao redor deste palanque, estavam dispostos os trezentos lugares entre as mesas semicirculares feitas com uma pedra fosca. O teto abobadado aparentava produzir uma acústica ideal para o lugar. Várias cadeiras com poltronas macias estavam dispersas entre as mesas, e outras com lugares para a platéia estavam bem no alto, próximos ao teto.

- Onde estão todos os outros membros do conselho, professor? – perguntou Kal inclinando a cabeça para que apenas Cacius pudesse ouvi-lo.

- Atrasados, como sempre. – respondeu – Vamos, suba – falou indicando uma escada que os levaria aos primeiros assentos.

Em alguns minutos, vários bruxos entraram pela porta de acesso ao átrio, outros tantos esfumaçaram diretamente em seus respectivos lugares dispostos entre as mesas... alguns portavam pilhas e mais pilhas de pergaminhos, outros distraíam-se com os feitiços cruzados, um passatempo do Folha Mágica. Um bruxa de chapéu cônico rosa lançava uma fragrância adocicada da ponta de sua varinha para amenizar o mal cheiro do seu colega ao lado que parecia ter dormido em alguma sarjeta bem suja acompanhado de uma forte garrafa de hidromel.

- Bom dia a todos. – falou um homem franzino e de sobrancelhas grossas no palanque de pedra – Estamos aqui, hoje, porque as circunstâncias revelaram-se desfavoráveis ontem à noite.

- Quem é ele? – perguntou Kal a Cacius.

- Timas Havany, Ministro da Comunicação Mágica.

- Senhoras e senhores, ontem Kricolas invadiu nossa cidade exigindo que entregássemos o menino chamado Kalevi Foster...

Kal sentiu seu sangue congelar, olhou para Cacius, mas este parecia não ter se alterado em nada. O professor não o dissera patavina sobre esta exigência do meio-vampiro. “De repente” ele não estava mais se sentindo tão confortável e seguro ali.

- Não podemos entregá-lo! – berrou um homem que ele jamais vira.

- Seria o mesmo que aceitar a soberania de Kricolas. – replicou a mulher de chapéu rosa.

- Mas temos que entender as condições impostas por ele. – prosseguiu uma mulher de cabelos ruivos – Ele disse que se não entregássemos o menino Foster nossas famílias sofreriam perdas maiores.

- Pense nos nossos filhos! É um por todos! – berrou uma voz masculina, alterada.

- Temos que pensar bem no assunto. – falou Dorian, que estava sentado em uma cadeira no terceiro andar.

Pensar bem no assunto? Indignou-se, Kal, os bruxos daquele conselho estavam tratando-o como um pedaço de carne, um simples chamariz, e Cacius continuava de boca calada!

- Vocês só podem estar loucos. – falou um homem encapuzado bem a frente de Kal – Pensar na possibilidade de entregar o garoto apenas comprova que este conselho está chegando ao fim.

- Ora cale-se, Saguior. – bufou Dorian – Nem ao menos bruxo você é.

- Saguior provou ser de grande valor para este conselho no passado. O levantamento de Dorian Gulemarc é inválido! – protestou Cacius de pé.

- Obrigado, velho amigo. – falou Saguior retirando o capuz e revelando um rosto barbudo e com orelhas alongadas.

- O que ele é, professor? – continuou Kal com o seu questionário.

- Um fauno. É metade homem, metade bode. Criaturas muito inteligentes, principalmente este aí.

- Tudo bem então, se é da vontade deste conselho ouvir o que este bode velho tem a dizer, que prossiga. – falou Dorian, num ar autoritário.

- Primeiro, devemos analisar a situação. Todos devem lembrar-se da reunião na Mansão Foster, quando impedimos que o Enid de Donnovan pudesse invadir o corpo de um recém nascido. E devem lembrar também que uma semana depois os jornais de todo o país noticiaram o chamado Milagre Foster.

Os bruxos assentiram em suas cadeiras ao ouvirem o fauno falar.

- O que nós nunca desconfiamos é que o Enid de Kalevi Foster é o Enid que nós tentamos aprisionar.

Os bruxos soltaram alguns sussurros inaudíveis e Kal fez outra pergunta a Cacius.

- Eles não sabem que eu... que eu tenho o Enid de Donnovan?

- Apenas uma minoria. No ano passado o Folha Mágica não recebeu a notícia como sendo um segredo e então não deram muito destaque. Uma nota de rodapé, se me lembro bem.

- Kalevi Foster, fique de pé para o conselho. – falou Saguior, olhando fixamente para o garoto ao lado do velho de barbas brancas.

- Levante-se. – repetiu Cacius e Kal levantou-se com um pouco de relutância.

Ele ouviu alguns urros de surpresa, talvez não tivesse sido totalmente notado.

- Creio que tenha aprendido a mostrar seu Enid, senhor Foster. – disse o fauno cordialmente – Poderia fazer a gentileza?

Kal estava um pouco embaralhado com a situação, mas ainda assim teve forças para levantar a varinha e dizer em alto tom de voz:

- Revelarbus! – o feitiço de revelação de Enid saiu da ponta da varinha de Kal como um raio de luz negro, subiu ao ponto mais alto do salão e mergulhou no chão formando a figura apavorante de Donnovan, um homem pálido de cabelos negros e olhos tão escuros quanto besouros em uma aparência rude e altamente cruel.

- Este é o nosso inimigo. – falou Saguior de um salto e caindo ao lado do Enid – Por isto Kricolas tem interesse em Kalevi Foster. Ele quer este Enid de volta.

- Sabemos muito bem que só se pode separar um bruxo de seu Enid através da morte. – disse Bernardo Mecflex, que estava sentado ao lado de Kal, tentando compreender tudo aquilo.

- Correto. – disse Saguior – E esta é, sem dúvidas, a intenção de Kricolas no momento. E ainda acredito que todos os bruxos deste conselho tenham a maturidade para entender quais os propósitos deste maldito meio-vampiro com o Enid de seu mestre.

- O que propõe que façamos, então? – perguntou Dorian, forçando um sarcasmo que não cabia na frase.

- É exatamente isto que este conselho veio decidir hoje. O que fazer para se proteger contra Kricolas, pois entregar um dos nossos está fora de cogitação.

Kal sentiu uma pontada de alegria em seu coração ao ouvir aquele fauno bem a sua frente defendendo-o. Pelos menos alguém ali não pretendia usá-lo como bode expiatório.

Bode expiatório... metade homem, metade bode... Kal não pôde resistir a comparação e rir da “piada”.

- Lócus Amenus! – disse Saguior e a imagem do Enid de Kal desapareceu.

Alguns minutos se seguiram em cochichos, o fauno retornara ao seu lugar, dando espaço para que outros pudessem tomar a atenção. Em especial, um que não a merecia tanto assim.

- Senhores. – chamou Dorian – Nas últimas semanas meu pessoal andou preparando alguns experimentos para serem usados contra Kricolas, a maioria ainda está em fase de testes, no entanto temos, hoje, aqui um protótipo totalmente desenvolvido. O pó de bobetônia. Mecflex, por favor.

- É claro, senhor. – falou ele descendo as escadas e se dirigindo ao centro do salão.

- E o que exatamente este pó faz? – perguntou Timas, o Ministro da Comunicação.

- Ele pode transportar qualquer coisa para qualquer lugar do mundo instantaneamente. – explicou Bernardo.

Os membros do conselho riram do jovem bruxo em alto tom e em seguida um deles disse:

- Nós podemos esfumaçar rapaz, para que precisamos comprar isso?

- Porque seus filhos não podem esfumaçar! – grunhiu Bernardo achando aquela reação do conselho estúpida.

- Eu aprovo o produto. – falou Uric Scheiffer – Nós que temos filhos sabemos como pode ser perigoso andar desprotegido. E ter em mãos este tipo de produto torna tudo mais seguro.

- Pode nos dar uma demonstração? – perguntou Timas.

Bernardo enfiou a mão dentro de um pote parecido com um de biscoito e retirou um punhado de uma areia brilhante e azulada, sem seguida disse:

- Cidade dos Elfos! – falando isto ele bateu a mão cheia de pó no próprio peito e uma chama azulada envolveu-o com ferocidade.

Alguns membros do conselho levantaram-se de suas cadeiras para olhar o que acontecera. Assim, deram-se conta de que ele realmente não estava mais ali. Um minuto se passou e os bruxos continuavam discutindo alguns assuntos que pareciam ser imediatos e então mais uma vez uma chama azulada se acendeu no centro do salão do conselho e Bernardo surgiu segurando uma maçã muito vermelha.

- Retirada do pomar da cidade. – falou ele exibindo o fruto em sua mão.

- Muito bem, Dorian. - prosseguiu Timas – Sua equipe desenvolveu um produto que pode ser útil, mas como não acredito em contos de fadas, qual o preço da patente?

- Cem milhões de flandres. – anunciou Dorian.

Flandres era a moeda circulante entre os bruxos, como o real no Brasil.

- Cem milhões! – exclamou Timas perplexo – Pelas barbas de Merlin! Isto é exorbitante! Não pagaremos este preço por um produto que faz as pessoas esfumaçarem! Sairia mais barato ensinar um cachorro a voar!

- É o nosso preço, senhores. – falou Dorian decisivo.

Os bruxos do conselho remexeram-se em suas mesas, pensativos. Apesar de cem milhões ser muito dinheiro para se gastar com uma única patente, eles precisavam daquele produto para acalmar os ânimos incontidos da população.

- Senhor, Ministro. – falou o fauno Saguior a Timas – Talvez não tenhamos outra escolha. Nossa gente precisa de proteção, e se não podemos produzi-la, necessitamos de comprá-la.

- Veja só como ele fala, nossa gente, já está achando que é um bruxo. – caçoou Dorian.

Bernardo Mecflex estava perdido naquela cena. Olhou para Cacius que estava cabisbaixo e então se aproximou da mesa de Dorian chamando-o em particular, mas isto não impediu que Kal pudesse ouvi-los.

- Senhor, o pó de bobetônia foi desenvolvido graças ao investimento do governo. Não podemos cobrar por algo que eles financiaram.

- Ora, Mecflex! Não seja ingênuo! Esta gente não sabe que os gastos foram pagos por eles. Aproveite esta oportunidade e terá uma vida melhor, rapaz.

- É que não me parece certo.

- O certo e o errado estão no ponto de vista de quem vê. Agora, cale-se ou não sairá com nada! – ordenou Dorian – Volte para o seu lugar e fique de bico calado!

- Mas senhor...

- Não me faça perder a paciência com você, Mecflex.

- Sim, senhor.

Kal pensou em comunicar a Cacius o que acabara de ouvir, mas não parecia necessário. O professor olhava fixamente para Dorian e seu rosto reproduzia claramente uma expressão angustiante e encharcada de repugnância.

- Conselho! – chamou Cacius de pé e mãos erguidas – Proponho que esta decisão seja tomada pelo novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica.

- Quer fazer o plebiscito neste momento? – duvidou Timas.

- Sim.

- Talvez devêssemos passar esta responsabilidade para o presidente, afinal ele é a autoridade máxima deste estado. – disse o Ministro da Comunicação Mágica em protesto.

- Onde ele está agora, lacaio? – questionou Saguior olhando com desprezo para o homenzinho – Viajando, imagino. A negligência do presidente o torna incapaz de tomar qualquer decisão neste momento.

Encurralado, Timas Havany coçou a nuca e posicionou sua boca em frente à varinha usada como microfone e disse:

- Entremos em recesso por meia hora e em seguida faremos a votação que escolherá o novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica.

Os bruxos do conselho levantaram-se de suas cadeiras e alguns ficaram parados no meio do salão conversando, eram vários os tipos diferentes de bruxos que estavam ali. Homens, mulheres, altos, baixos, bruxos bem vestidos e outros nem tanto, mas todos discutiam o mesmo assunto. Quem seria o novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica. Ao que Kal sabia, Uric, Cacius e Dorian foram recomendados para o cargo, porém ele não tinha como saber os nomes dos demais indicados. Não parecia haver favoritismo, já que todos os integrantes do Conselho eram bruxos de importância na comunidade mágica. Altamente influentes e poderosos, qualquer um possuía os quesitos mínimos para exercer o cargo máximo da segurança do país.

- Maldito Dorian! – bravejou Uric que se juntara a eles durante o recesso – Ele quer enriquecer as custas do governo! Que atitude mais covarde, até mesmo para uma barata fina, como ele.

- Como assim? – indagou Kal.

- Dorian Gulemarc não tem o melhor histórico de honestidade dentro do governo. Mas ninguém se importa com isto por aqui. O fato é que ele foi subindo de posto à medida que ia derrubando todos a sua volta. – respondeu Uric sem vacilar nas palavras de efeito.

- Um estrategista miserável! – concordou Bernardo saindo furioso de dentro do salão – Maldito filho da mãe! Cem milhões! Cem milhões! O pó de bobetônia deveria ajudar as pessoas, e não fazer furos nos cofres do governo!

- Lamento que tenha que ser assim Bernardo. – disse Cacius recostando a mão no ombro do rapaz.

- Urgh! – bufou.

- Você inventa algo que pode salvar vidas, mas uma pedra cai bem em seu caminho. – prosseguiu Cacius sem ter se importado com a interrupção – No meio do caminho tinha uma pedra... li isso em um livro dos não mágicos. Eles sabem das coisas, às vezes.

- Sim, uma pedra magra e esquisita chamada Dorian Gulemarc! – ralhou Bernardo, cuspindo de tanta raiva.

- Falando de mim? – Dorian surgira entre as fileiras de mesas e carregava um irritante ar vitorioso – Fizemos a descoberta do século, não foi garoto?

- Pena que as pessoas não vão poder usufruí-la.

- Não fique tão desmotivado, garoto, tenho certeza absoluta de que o Conselho votará por um resultado favorável a nós. Vamos ganhar muito dinheiro!

- Mas esta não era a intenção! – retrucou Bernardo – Além do mais fomos pagos para desenvolver o pó de bobetônia!

- Escute, garoto – Dorian puxou Bernardo pela gola da camisa como se ninguém estivesse ali e então disse – nesta vida você precisa aprender a tirar os obstáculos do caminho, se continuar a me atrapalhar deste jeito significa que está no meu caminho, e isso não é bom! Prestou atenção?

Bernardo virou o rosto de cara amarrada e então concordou acenando levemente com a cabeça e com isso Dorian largou-o.

- Agora, preciso conversar com Timas. – cacarejou, enquanto se retirava.

- Porco imundo! Farte-se no seu dinheiro e poder! – amaldiçoou Bernardo quando ele já estava fora de vista .

- Algumas pessoas costumam se enforcar sozinhas, Bernardo. – disse Cacius sorrindo-lhe – Basta ganhar um pouco de corda e despretensão para subir a alturas que não os compete.

Alguns minutos de reflexão e puro silêncio se passaram entre os quatro, na entrada da sala de reuniões. Durante este tempo, Kal continuou a observar amiúde os membros do Conselho de Magia. Uma mulher de rosa que aspergira aromas durante a reunião estava a conversar com uma mulher coberta por um véu negro preso a seu chapéu pontiagudo. Elas pereciam excitadas de algum modo, sorrindo satisfeitas e trocando tapinhas nos ombros. Próximo ao elevador estava Saguior, recostado sobre a parede, cabeça baixa e fumando um longo cachimbo, que lançava ao ar uma fumaça azul prateada. Por uma fração de segundos os olhos escuros do fauno se encontraram com os de Kal, que rapidamente desviou a atenção, mas, com uma exultação percebeu um mexer de músculos no canto da boca do fauno, indicando um sorriso simpático.

Dentro do salão, praticamente vazio naquele momento, atrás do palanque onde o ministro da Comunicação Mágica discursara a pouco, estava Dorian Gulemarc e o próprio Timas Havany, discutindo em baixo tom de voz, com uma clara cumplicidade. Assim que Dorian se afastou do ministro, este retomou seu lugar de destaque e usou a varinha do palanque como microfone, mais uma vez.

- Atenção, atenção! – chamou – Por determinado motivo o plebiscito será antecipado. Por favor, quem não tem poder de voto se ausente da sala.

- Professor... – indagou Kal.

- Sim, Kal, infelizmente terá que sair.

Passos de casco em pedra puderam ser ouvidos e quando Kal, instintivamente olhou para a sua esquerda deparou-se com a figura barbuda de Saguior.

- Vamos, garoto, eu também não posso votar. – disse o fauno puxando-o pelo braço.

Os dois seguiram pelo átrio, os cascos do fauno fazendo barulho nas pedras à medida que dava um novo passo.

- Por que você não tem poder de voto, Saguior?

- Senhor. Refira-se a mim como senhor, gosto da formalidade.

- Tudo bem... senhor. – acrescentou.

- Não voto porque não sou um bruxo. Se não fosse por Cacius eu nem mesmo poderia opinar nas reuniões do Conselho. – disse de cabeça baixa, parando à frente do elevador – Quer saber, não ligo a mínima.

- Conheceu meu pai também? – perguntou Kal somente para puxar assunto enquanto os dois entravam no elevador.

- Era um bom homem, muito digno. Deve sentir saudades.

- Sim. – falou Kal achando que relembrar seu pai não fora uma boa idéia.

- Você não pôde fazer nada para ajudá-lo, não é mesmo?

Kal consentiu, pesadamente.

- Estava despreparado, mas a verdade é que não conheço muitos garotos que enfrentaram Kricolas e não saíram mortos. Bem, apenas você e aquele outro garoto no ano passado. Como é mesmo o nome dele?

- Thalis.

- Exato. Cacius me disse que o moleque esfumaçou bem no meio da floresta! Realmente um feito louvável. – disse Saguior apertando o botão número oitenta e cinco do elevador – Mas aquilo foi apenas sorte. Ele não se levantou e partiu para cima do homem que matou o seus pais.

Saguior estava revivendo na mente de Kal todo o doloroso momento da morte de seu pai por Kricolas, na Cidade dos Elfos.

- Nos tempos dourados de Donnovan e Kricolas, muitos tentaram, muitos mesmo. Alguns com experiência muito superior a de alunos de Avalon, e eles não tiveram a menor chance. Mortos no primeiro momento do combate. Corajosos, sim eram, porém uns tolos. É, garoto, teve muita sorte, muita sorte. Sorte somada à coragem é sempre um potencial. Vejo muito disso em você.

- Como assim? – perguntou Kal.

- Ora, você sabe duelar, não sabe?

- Um pouco, acho, mas...

- Não seja modesto, soube como você quase matou seu rival na Sala das Diferenças. – disse Saguior relembrando de outro momento do ano anterior de Kal, o que ele acidentalmente quase assassinara Rick Wosky, um garoto de Avalon a quem Kal odiara desde o primeiro instante.

- Como sabe disto tudo? – perguntou Kal achando que em qualquer banca de jornais havia um almanaque revelando tudo sobre sua vida.

- Cacius me disse. – falou o fauno abrindo a porta do elevador – Chegamos.

- Que lugar é este?

- O andar oitenta e cinco da sede do Conselho de Magia.

- Quantos andares ainda tem?

- Não sei. Não tenho tempo para ficar visitando. – respondeu secamente.

- O que viemos fazer aqui?

- Treinar.

- Han?

- Vamos, garoto, me ataque.

- Senhor, eu não...

- Eu disse para me atacar! – berrou.

Prontamente, Kal sacou a varinha da veste e apontou para o homenzinho a sua frente.

- Vamos lá, com o seu melhor!

- Escaparta! – berrou Kal e um lampejo azul partiu de sua varinha explodindo no peito peludo de Saguior.

- Nada mau, nada mau.

- Obrigado. – disse Kal encolhendo o corpo.

- Não baixe a guarda! Não baixe a guarda! – berrou o fauno mais uma vez – Quero que se defenda agora. Tudo bem para você?

Kal concordou com a cabeça, mesmo estando incerto.

- No três – começou o fauno – Um... dois... três... – Saguior lançou sobre Kal uma bola de luz amarela que atravessou o ar produzindo um zunido irritante, contudo, Kal defendeu-se bem.

- Réplica! – uma parede verde transparente surgiu na frente dele protegendo-o do feitiço e fazendo com que a bola de luz amarela retornasse em direção a Saguior, que facilmente desviou do próprio golpe.

- Hahahaha! – gargalhou – Muito bom, muito bom, garoto! Veja se consegue com este!

Saguior posicionou três dedos de sua mão de modo que formassem um triângulo do qual saiu um raio roxo e continuo.

- Réplica! – disse Kal mais uma vez formando a barreira de luz verde.

- Não desta vez! – Saguior manteve o feitiço que destruiu a proteção de Kal e o atingiu no ombro.

- Garoto, você está bem? – perguntou Saguior aproximando-se rapidamente de Kal que estava caído no chão.

- Acho que sim... por que, por que não pude me defender?

- Porque o seu feitiço protege apenas um ataque de cada vez. Um ataque contínuo pode facilmente atingi-lo. – explicou Saguior – Se pretende desafiar Kricolas precisa primeiro aprender a se defender.

- Como sabe que quero desafiá-lo, senhor? – perguntou Kal confuso.

- Vi em sua mente.

- Leu minha mente? – questionou indignado, mas não surpreso, pois sabia que era possível fazer este tipo de coisa.

- É a mente mais transparente que já conheci! Qualquer um pode ver quais pensamentos estão rondando por aí. – disse o fauno girando o indicador por cima da cabeça de Kal.

- Ok, mas não pedi a sua ajuda. – retrucou ainda indignado por ele ter lido a sua mente.

- Só porque não pediu não quer dizer que não precise.

Saguior estava sendo bem sincero em suas colocações, e um tanto grosseiro também. Zero de evasão e zero de delicadeza, todavia Kal ficara impressionado com a autenticidade que os faunos apresentavam.

- Posso te ajudar. Espere um momento aqui. – dizendo isto Saguior esfumaçou deixando um rastro marrom de fumaça.

Apenas meio segundo depois Saguior esfumaçara de volta bem no mesmo lugar.

- Tome. – falou ele segurando um livro com capa de couro.

- O que é?

- Um livro, oras.

- E para quê?

- Será que você não tem bom senso? – perguntou Saguior embravecido – Leia-o!

- As cinco maneiras de se defender dos bruxos das trevas.

- Isso. Agora que estão apresentados vamos ver se você aprende alguma coisa.

- Existem outras maneiras de se defender, além do Réplica?

- Por certo. São todas muito difíceis e complicadas, mas muito úteis. Vamos, garoto, temos pouco tempo para você aprender pelo menos um dos mais úteis.

Saguior afastou-se de Kal mantendo uma distância fixa de uns dez metros, ordenou que ele abrisse o livro na página trezentos e doze e que lesse o feitiço da página para se defender.

- Acha que está pronto para aprender a maior lição da sua vida?

Kal não sabia como proceder dali em diante. Todos os feitiços que ele sabia usar exigiram-lhe um bom tempo de prática e, agora, Saguior estava querendo que ele simplesmente se defendesse usando um feitiço completamente desconhecido! Talvez os métodos didáticos de Saguior não fossem os melhores, mas ele parecia saber o que estava fazendo, então, Kal confiou.

- Vamos lá, garoto! – exclamou o fauno segundos antes de disparar o mesmo raio contínuo de antes.

Kal agilmente abaixou a cabeça para ler o nome do feitiço e então levantou a varinha e disse com força:

- Égide Silver! – ela brilhou intensamente e logo se extinguiu como fogo, mas nada mais pareceu ter ocorrido. Nada de barreiras coloridas ou qualquer outra coisa, desesperado, Kal repetiu – Égide Silver! – outra vez a varinha brilhou e novamente se apagou, o golpe de Saguior estava cada vez mais próximo – Égide Silver! – por sua têmpora escorria uma gota de suor – Égide Silver! Égide Silver! – não ia ser derrubado sem se defender. Sentiu alguma coisa na região da sua nuca se remexer loucamente, um arrepio percorrendo-lhe os corpo até o umbigo, descendo seu dorso como água gelada, espremendo cada centímetro quadrado do seu corpo. Suas células pareciam estar agitadíssimas, como que submetidas a uma grande atividade física. Desanuviando os pensamentos de todas aquelas estranhas e novas sensações, ele encheu os pulmões para gritar – ÉGIDE SILVER!!!!

Desta última vez, uma bola de luz prateada cobriu todo o corpo de Kal como uma grande e poderosa bolha de sabão. O feitiço do fauno acertou a bolha, que começou a ondular em sinal de fraqueza, de segundo em segundo a ela piscava ameaçando extinguir-se, mas não podia... Saguior continuava a dez metros dali disparando o feitiço...

- Vamos ver até onde você agüenta! – desafiou o fauno.

Kal sabia que não duraria muita mais do que alguns segundos ali. Sua bolha protetora estava cada vez mais fraca e o golpe de Saguior estava perfurando-a. Ele não tinha muito mais tempo. Olhou para os lados procurando um esconderijo, porém o lugar era um completo vazio. Uma sala inutilizada. Kal Foster decidiu uma última manobra, sacudiu a varinha desfazendo a bolha que o protegia e abaixou-se para desviar do golpe direto, mirou em Saguior e disparou:

- Farfalha! – estilhaços vermelhos como vidro irromperam no ar de uma só vez e acertaram o rosto do fauno rasgando superficialmente sua pele.

- Por mil moedas de dragões! Que raio de feitiço foi esse? – murmurou o fauno levando uma das mãos ao rosto – Que droga foi essa? Era para se defender! Este feitiço me atingiu em cheio, mas Kricolas estará mais preparado! Precisa controlar o Égide Silver. Quero que pratique isto, me ouviu?

- Mas, senhor, achei que meu objetivo era derrotá-lo...

- Seu objetivo era apenas bloquear o meu golpe! Se não pode entender isto é melhor se virar sozinho!

- Desculpe se fiz algo de errado, mas...

- Sem mas ou meio mas, Foster! Você tem que aprender a ouvir os outros, se é isto que quer saber! Eu disse que era apenas se defender, e por Merlin, quase perco meu nariz! Estas coisas podem fazer estragos, sabia? – bravejou ele apontando para a varinha na mão de Kal – Agora, vamos! Devem ter acabado aquela maldita votação.

Kal nunca vira alguém tão sério e nervoso. Nem mesmo Amadeus Wosky, seu professor de Maldições em Avalon, um homem atormentado e exageradamente mal humorado. Saguior havia ultrapassado qualquer limite que ele conhecia e o que Kal achou pior fora o motivo pelo qual se irritara. Talvez o fauno tenha se irritado por ter sido facilmente derrotado por um garoto com pouco menos que quatorze anos. Ainda assim, alguma coisa em Kal dizia que Saguior tinha muito mais força do que demonstrara ali no andar oitenta e cinco da sede do Conselho de Magia.

domingo, 26 de julho de 2009

Capítulo 3 - Um Jantar a sete

Olá pessoal, decidi publicar o livro dois, Kal Foster e o Mestre das Sombras, por inteiro. Quero que vocês conheçam mais a história do Milagre Foster e o desenrolar dela ao longo do segundo ano de Kal Foster em Avalon. Desculpem-me pelo atraso com esta publicação, esperava que o livro fosse publicado antes disso. Mas nós não desistimos, não é? Quem sabe o segundo livro nos dê visibilidade para chegarmos a este sonho.
O capítulo abaixo é o capítulo 3 do livro, lembrando que o capítulo 1 e 2 já foram publicados há algum tempo. Abaixo seguem os links dos dois primeiros capítulos, assim você não perde nada da história.

Kal Foster e o Mestre das Sombras
Capítulo 1 - Boa noite, Ministro
Capítulo 2 - A casa Foster


Agora, com vocês:

Capítulo 3 - Um jantar a sete

Kal Foster desceu a rua novamente logo depois de Cacius, ele iria procurar revistas, jornais e até mesmo parar nas esquinas para capturar uma conversa entre as pessoas do bairro. Quando se entra em um novo ciclo de pessoas, todos sempre querem passar uma boa imagem de si, e os Foster queriam fazer isto.

Naquela manhã, Kal tivera sua primeira conversa com uma garota deste novo ciclo, mas, na verdade, ele sentiu-se em um interrogatório como os que ele vira nos filmes de bandidos e policiais que passavam à noite na televisão. Sara parecia estar segurando um questionário social, e cada resposta que Kal lhe dava virava uma nova pergunta.

Passando pela praça da rua, Kalevi procurou por Sara, porém não a encontrou.

Provavelmente ela deve estar em casa. Pensou, satisfeito.

Ele não sabia ao certo porque o interesse repentino na nova vizinha. Em sua cabeça ele remoeu a aveludada voz da garota e o seu sorriso honesto de tranqüilidade, um sorriso que até mesmo lembrava o de Cacius com o seu ar pacato. Talvez suas emoções estivessem sensíveis e se misturando a imagens de pessoas por quem ele possuía uma empatia avantajada.

Pelo caminho, já longe da Rua Guaçuí, Kal percebeu que estava sendo observado por diversas pessoas, e não eram pessoas disfarçadas de gatos, cachorros ou pombos, eram pessoas não mágicas que o encaravam de modo curioso, como se a frente deles estivesse um espécime raro de animal selvagem pronto para atacar. Todos o encaravam realmente muito curiosos. Kal pensou que talvez as pessoas soubessem que ele e o restante de sua família ficavam sempre reclusos na própria casa e estavam imaginando o que aquele menino de treze anos estaria fazendo rondado as ruas do bairro.

Ele parou por um instante e lembrou-se de que não sabia para onde estava indo, não sabia onde era a banca de jornal mais próxima, afinal, mal saíra de casa. Kal parou na esquina da Rua Chinchila onde uma placa indicava que à esquerda ficava a Rua das Gaivotas e à direita a dos Tormentos, ele ficou estático. Não sabia para onde ir, e antes que tivesse qualquer outra idéia teve seus pensamentos interrompidos por uma voz logo atrás de si:

- Está perdido, garoto? – perguntou um homem alto e robusto – Posso ajudar em alguma coisa?

Em seu mundo mágico, Kal sabia que poderia contar com a ajuda de qualquer pessoa que aparece, pois fazia parte da natureza dos bruxos o companheirismo, mas pelo que ouvira de alguns colegas que moram entre os não mágicos, ele não poderia confiar em qualquer um que lhe oferecesse ajuda. Lembrando-se disso, respondeu em prontidão:

- Não, senhor, estou exatamente onde quero estar. Muito obrigado.

Kal sentou-se no meio fio e esperou até que o homem tivesse sumido de vista. Levantou-se limpando a roupa e então percebeu a varinha no bolso de trás do jeans.

Foi bom ter trazido a varinha.

Para todos os bruxos havia uma só regra quanto à utilização da magia fora dos domínios do Governo Mágico; apenas em caso de perigo extremo – e mesmo assim escondido o máximo possível dos olhos humanos. Ao que constava a Kal, esta regra ainda tinha um parágrafo que dizia ser ilegal o uso de magia para fazer qualquer tipo de mal aos humanos, principalmente as maldições e os diversos tipos de transfiguração corpórea.

O sol estava brilhando forte no céu. Sem nuvens para bloquear alguns raios ou vento para refrescar, Kal começou a suar e arrependeu-se de estar usando jeans e blusa de frio, mesmo dobrando as mangas do moletom ele ainda sentia-se incomodado com a roupa e então desejou poder usar a varinha para fazer uma brisa de ar gelado como a que seu professor de feitiços, Tirso, fizera no ano anterior em uma de suas aulas.

Tirso era, de longe, o professor favorito de Kal em Avalon, não só pela matéria que ensinava, mas também pela sua simpatia e compreensão. Ele havia ajudado Kal com algumas questões que o rondavam, como o livro sobre projeção astral que comprara no início do ano anterior, com alguns mistérios a respeito Livro de Merlin e principalmente sobre Nicolas Weny, que no final das contas mostrou-se sendo na verdade Kricolas, o maior assassino de todos os tempos.

A projeção astral era um tipo de viagem que se fazia por um plano paralelo ao plano físico, um plano em que se podia voar e atravessar paredes como um fantasma e viajar na velocidade do pensamento. Nas férias de meio de ano, Kal fora para sua casa em Vila da Cachoeira com seu irmão Daimon, Guinevere e seu amigo Ralph, de lá eles viajavam todas as noites em projeção astral até a Cidade dos Elfos, a vários quilômetros de distância de onde seus corpos físicos estavam localizados.

Ralph Scheiffer tornara-se o melhor amigo de Kal no ano anterior, eles se conheceram no dia em que voaram em uma carruagem puxada por bruxos montados em vassouras voadoras até a Cidade dos Elfos. No início, os dois não entenderam-se muito bem, mas Guinevere fez o possível para que os dois pudessem desenvolver uma amizade. Ralph era filho dos Guardiões Chefes de Warren, a penitenciária para bruxos, e tinha um falcão de nome Osíris, o qual mandou, junto com Kal, uma carta para seus pais pedindo que lhes enviassem um retrato falado de Kricolas e alguns dias depois eles receberam uma resposta com a figura mais horrenda que já haviam visto.

Ralph era o amigo com quem Kal compartilhava alguns de seus segredos mais particulares, apesar de ainda não ter assumido oficialmente que estava interessado em Emanuela Goldemberg, isto era quase desnecessário de ser feito, pois o rosto dele brilhava com a simples menção do nome da garota. Emanuela foi a causa de Kal ter aceitado um convite para tornar-se guardião mirim dos terrenos de Avalon no Conselho Estudantil da escola. O presidente do Conselho, Rômulo Martins, o convidara na primeira semana de aula, no entanto ele não aceitara o convite de imediato, e quando o fez foi bravamente repreendido por Guinevere e Ralph, alegando que ele apenas aceitara o convite por causa de Emanuela. O que não era nenhuma mentira. Aquela fora a primeira e única briga a qual eles tiveram no ano inteiro.

Em Avalon, Kal também conheceu outras pessoas que o cativaram com a amizade, como Jonathan Mc’Oz, melhor amigo de Daimon, e Thalis Kinguest, um garoto também vítimas de Kricolas; seus pais foram brutalmente assassinados pelo meio-vampiro.

Um estranho mistério pairava sobre Thalis quando se conheceram, pois bruxos menores de dezesseis anos não conseguem esfumaçar, mas surpreendentemente, Thalis esfumaçou momentos antes de Kricolas conseguir estrangulá-lo. Após isto ele ficou perdido na Floresta Amazônica e foi atacado por Griphons, criaturas amarelas originárias do plano astral, com a capacidade de se materializar no plano físico. Encurralado e com medo, Thalis gritou por socorro, sendo localizado por Kal e Ralph. Enquanto Ralph buscava ajuda, Kal embrenhou-se floresta adentro e livrou-se dos Griphons. A partir daquele dia, Thalis começou uma nova vida como bruxo. No final do ano, ele soube que sua mãe era de uma família de bruxos e que ela havia se desligado da magia após ter perdido seus pais pelas mãos de ninguém menos do que Kricolas.

O meio-vampiro fazia inimigos por onde passava, nos últimos anos ele matara mais pessoas do que se pode contar com os dedos, deixando crianças órfãs e mulheres viúvas, a última de suas vítimas, pelo menos que se tem notícia, fora o Ministro da Defesa e Segurança Mágica, Mardo Runifer, e Kal não sabia ao certo o que aconteceria ao Governo com esta perda tão significativa. A morte de Mardo, para Kal, tinha um valor muito mais simbólico do que simplesmente psicopata. Agora, todos sabiam que as forças do mal não estavam para brincadeiras, e que com o Livro de Merlin em mãos, Donnovan estaria de volta à vida em pouco tempo.

Há exatos novecentos e noventa e nove anos, Donnovan, ou, Cavaleiro Negro, foi o maior bruxo das trevas em toda a terra. Ele liderou massacres contra os humanos, acreditando que por não possuírem dons mágicos, eles deviam ser considerados criaturas inferiores, meros erros da evolução das espécies, e que ele tinha a missão de aniquilar esta raça de humanos imperfeitos. Donnovan conseguiu reunir um vasto exército de bruxos das trevas e outras criaturas mágicas que comungavam da mesma idéia.

Felizmente, havia Merlin e seu discípulo Foster, o primeiro antepassado de Kal, juntos eles inauguraram a Escola de Magia de Avalon. Uma escola onde bruxos, ou não, qualquer interessado em magia poderia aprender a arte. Para livrar-se das perseguições do exército das trevas e de alguns humanos que passaram a temer os bruxos pelo seu poder, Merlin e Foster ergueram o castelo acima das nuvens, onde logo abaixo formou-se a maior cidade encantada do país, a Cidade dos Elfos.

Avalon tinha um aspecto de castelo medieval, no entanto era tão novo e tão conservado, de longe diria-se que o castelo possui mais de novecentos anos. São vários os encantos que protegem os segredos do castelo, a começar com as nuvens que o cercam, formando uma densa muralha natural, onde qualquer viajante não convidado poderia ficar perdido eternamente.

Tão perdido quanto estava Kal naquele momento. Ele já dera a volta em três quarteirões quando percebeu que estava completamente desnorteado. Estava em seu ponto de partida, na mesma esquina em que um homem robusto lhe oferecera ajuda. As pessoas dentro das lojas continuavam a olhá-lo atenciosas, porém agora elas tinham um motivo. Kal havia circulado os quarteirões da redondeza e todos estavam curiosos para saber o que aquele garoto de família tão estranha estava fazendo ao circular pelo bairro?

Ele decidiu que era hora, então, de perguntar. Perguntar ao primeiro que passasse em sua frente, fosse quem fosse. Afinal, ele estava com sua varinha e não iria se importar em usar caso corresse perigo.

Logo a sua frente vinha uma mulher, uma senhora já de idade, tinha o cabelo curto, um vestido comprido que lembrava um tipo de camisola e calçava um sapatinho de couro. Kal já estava separando os lábios para perguntar onde ficava a banca de revistas mais próxima, quando um cão de porte médio e pelos amarelos pulou a sua frente tirando-lhe um pequeno grito de espanto. Ele colocou a mão direita na calça e tocou a varinha, ele sabia que aquele não era um cão, era um bruxo transformado.

Cães não saltam na frente das pessoas desse jeito.

- Hei, garoto! Espere. – falou o cão de cabeça baixa.

- Quem é você?

- Katrini Likiniki. – respondeu – Guarda de Warren. Sua mãe me disse que você havia saído e estava demorando.

- Oi.

- Está perdido, não é?

- Preciso ir até uma banca de revistas. Sabe onde tem uma?

- Vem comigo.

Era a situação mais inusitada que já acontecera na Rua Chinchila, um garoto após ficar completamente perdido parecia ter conversado com um cachorro e agora o estava seguindo. Ninguém parecia querer acreditar naquilo, então resolveram se dedicar cem por cento ao que estavam fazendo e esquecer as sandices do novo morador do Araçá.

Alguns mais curiosos continuavam a observar Kal das janelas dos prédios no segundo andar, e ele lembrando-se do que Cacius fizera quando fora até sua casa e todos os moradores o encararam intrigados, começou a distribuir “boa tarde” a todos que o observavam.

- Fique quieto! – ordenou Katrini – Não chame a atenção.

- Conversar e seguir um cão chama muito mais.

- Certo, da próxima vez arrumamos uma coleira...

Katrini conduziu Kal por várias ruas, fazendo curvas e desvios, no fim, a Guarda de Warren deixou o garoto em uma banca de revista chamada Tulipa. Kal lembrou-se imediatamente da floricultura da Cidade dos Elfos, a Flor-de-Lis. Ela era a mais antiga de todas as floriculturas do país e fora fundada pelo Governo mágico após a construção de Warren. A floricultura carregaria a marca com que os prisioneiros de Warren recebiam ao serem presos, a Flor-de-Lis. Algo parecido com uma espada com pétalas nas bordas. No ano anterior, Kal visitara a floricultura com Ralph, Guinevere e Daimon, onde cada um comprou um tipo de planta. Kal escolhera sem querer a planta mais difícil de se cuidar, a Herviana gornóide, um tipo de planta subterrânea sensível à luz.

- Bom dia, senhor! – cumprimentou Kal a um homem gorducho e muito sujo.

- Bom dia. – respondeu o homem enquanto limpava a mão suja de doce na camiseta branca.

- Tem revistas e jornais?

- Isto aqui é uma banca de revistas e jornais.

- Certo. Certo. – disse Kal sem entender direito o que o homem havia dito – Eu quero o jornal de hoje.

- Qual? – perguntou o homem exibindo na prateleira alguns exemplares.

- Ah... este! – apontou Kal para um em que havia um anúncio de cereal.

- Um real.

- Ok. – disse separando o dinheiro sem muita dificuldade.

- Mais alguma coisa?

- Vou olhar as revistas.

- Tudo bem. – falou o homem enfiando mais um pouco do doce enquanto pegava um jornal para ler.

Kal leu alguns títulos, mas não sabia ao certo o que eles queriam dizer. As pessoas daquele mundo tratavam de diversos assuntos ao mesmo tempo, uma única revista podia abordar os mais variados temas e Kal não sabia qual escolher.

Ele olhou mais uma vez e decidiu por pegar uma em que havia um casal em pose de meditação. Ele achou que falar sobre guerras e desastres naturais em um jantar não seria muito amistoso.

- Eu quero esta.

- Então compre. – respondeu o homem impaciente – Você não é daqui, é garoto?

- Sou é... sou do norte.

- Sei... – disse o homem com uma expressão estranha – São sete e cinqüenta.

- Tome. – disse Kal estendendo uma nota de dez.

- Obrigado. – agradeceu enquanto entregava o troco ao garoto e ainda assim olhando de esguelha para ele.

Kal enfiou o restante do dinheiro no bolso e olhou para Katrini que estava se coçando logo mais à frente. Ele saiu de dentro da banca de jornais e seguiu até a bruxa disfarçada. Ela o esperava impaciente e assim que se aproximou ela parou de se coçar e o seguiu dizendo:

- É cada humilhação que temos que passar para manter o emprego...

- Você podia se transformar num pássaro, não?

- Não tenho permissão para isto?

- Como assim?

- Warren ordenou-me assumir a forma de um cão.

- É assim que funciona, então?

- Não é tão ruim.

- O que pode ser pior? – perguntou Kal imaginando algumas possibilidades estranhas.

- Certa vez, tive que me transformar em vaca. Nestas horas, o que mais sinto falta são dos polegares!

- Imagino.

Ao chegar na praça da Rua Guaçuí, Katrini Likiniki seguiu por outro caminho, mas Kal já estava em segurança. Alguns dos guardas de Warren perambulavam pela rua em sua tarefa de proteger os Foster contra qualquer perigo. Kal estava curioso para saber o que havia acontecido no Governo após a morte de Mardo, mas não quis entrar em detalhes com Katrini no meio de várias pessoas. Certamente elas estranhariam o tipo de conversa e também o ouvinte. Ele subiu a rua folheando as páginas do jornal à procura de uma manchete interessante e que pudesse render um bom assunto...

Antes que Kal pudesse chegar em casa, seu irmão, Daimon, veio correndo ao seu encontro com o rosto pálido e suando frio. Daimon estava com uma camisa de botões, que estava aberta até quase a metade do peito. O garoto parecia estar muito ofegante e Kal parou no meio da rua para que ele pudesse se explicar melhor.

- Vem... comigo... mamãe... depressa!

Kal dobrou os joelhos para pegar um melhor impulso e saiu rua acima puxando o irmão pelo braço. Daimon quase não tocava o chão, tamanha a força que Kal fizera para arrastá-lo. Os dois chegaram em casa quase que expulsando os pulmões. Amanda estava sentada na sala praticamente desmaiada, Guinevere ao seu lado abanando.

- O que aconteceu? – perguntou Kal ao entrar.

- Graças a Deus, meu filho, que você chegou. Estava ficando preocupada...

- Não precisava. Katrini estava comigo.

- Sim eu sei, mas... mas aconteceu algo terrível. Cacius não tinha o direito de nos ter escondido isto... não tinha.

- Do que ela está falando? – perguntou Kal a Daimon sem entender a que Amanda se referia.

- Olhe isto. – disse Daimon pegando uma folha de pergaminho em cima da televisão – É o jornal de hoje.

Kal segurou a folha em frente aos olhos e leu em voz alta.

Falhas da segurança, morre um ministro

Morreu na semana passada o Ministro da Defesa Mágica, Mardo Runifer. O ministro, que ocupava o cargo há pouco menos de dez anos, foi brutalmente assassinado pelo meio-vampiro Kricolas, que segundo dados do próprio ministério, já assassinou mais de quinze pessoas só neste ano. O caso havia sido abafado pelo governo na tentativa de conter os ânimos da comunidade mágica. Mesmo com tanta precaução, a notícia vazou e informantes que gozam de nossa inteira confiança, nos afirmaram que o assassinato ocorreu por volta de nove da noite do dia sete de janeiro.

Hoje, o ministério ainda não se pronunciou quanto o caso. Soubemos que ontem foi realizada uma reunião com os Guardas de Warren para determinar que todos permaneçam em seu posto até um novo ministro ser nomeado.

Alguns nomes foram indicados durante a reunião, e entre a lista, os três mais importantes são: O diretor da escola de Magia de Avalon, Cacius Henrique Emrys; o até então Guardião Chefe de Warren, Uric Scheiffer e o atual Secretário de Defesa e Estratégia do Estado Mágico, Dorian Gulemarc. Não conseguimos depoimentos a respeito dos dois primeiros bruxos, mas sabemos que, no passado, Cacius Henrique ocupou o cargo de vice-presidente por alguns meses e após esta experiência foi indicado para outros cargos de importância dentro do Governo, mas recusara a todos os convites em nome de sua escola. Uric Scheiffer é um personagem em ascensão no país, e não se sabe muito mais do que a sua função em Warren.

No entanto, o transparente Dorian Gulemarc visitou nossa redação e disse que caso ele seja escolhido pelo Conselho de Magia, do qual os três candidatos fazem parte, para assumir o papel de Ministro da Defesa e Segurança Mágica, sua primeira meta será colocar guardas a paisana por todo o país “em busca do sanguinário Kricolas”, como mesmo frisou. Ele disse não entender porque o governo quer esconder uma calamidade como esta. “Temos um monstro perigoso à solta e devemos contar com o máximo de ajuda possível. As pessoas precisam saber!”.

Quando inquirido se Kricolas vasculhara alguns departamentos do prédio sede do Governo, o Secretário apenas disse que Kricolas roubou os relatórios do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas, que ficavam no mesmo andar da sala de Mardo Runifer.

Kal parou perplexo. Não acreditara no que lera. Aquilo definitivamente não poderia ser verdade. O Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas do Ministério da Defesa e Segurança Mágica, era o programa em que os Foster estavam inscritos. Se Kricolas estava com os relatórios era certo que ele também sabia onde estavam morando.

- Você acha possível que... – perguntou Daimon, a Kal, olhando para sua mãe que continuava a ser abanada por Guinevere.

- Que ele venha atrás de nós? – completou Kal.

- Não há como afirmar nada. Por hora é melhor esquecermos isto.

- O que disse, meu filho?

- Que estamos seguros, mamãe. Têm mais de trinta guardas lá fora prontos para se transformarem e atacarem qualquer pessoa que tente nos ferir. – falou Kal num tom de voz confiante.

- É isto mesmo senhora. Enquanto estivermos aqui não há com o que se preocupar. – falou um gato laranja e pouco peludo que estava na janela ao lado de um segundo gato. Ele era persa e tinha os pêlos acinzentados.

- Olá. – cumprimentou Amanda.

- Estaremos atentos a qualquer coisa. – disse o persa.

- Ih! Olha um novelo!

O gato laranja pulou da janela e caiu de pé sobre um novelo de lã que usou como brinquedo.

- Adoro ser gato.

- Cale a boca, Fred! – cortou o persa enquanto saltava da janela e assumia a forma humana, um homem alto com o uniforme branco e cinza de Warren combinando com seus cabelos longos, lisos e grisalhos – Senhora Foster, meninos, senhorita. Eu sou Stuart, e este é Fred – o gato laranja pareceu não se incomodar com a apresentação e continuou brincando com o novelo de lã – Nós montamos um esquema de segurança para que possam ficar tranqüilos. Sempre que quiserem ir além da praça nos informem que enviaremos alguma escolta.

- É, mas também pedimos para que não saiam de casa à noite porque queremos descansar também.

- Fred, você quer perder o emprego não quer? – perguntou Stuart, secamente.

- De forma alguma. – falou ele, também voltando à forma humana, a de um rapaz de vinte anos, magrelo e de cabelos ruivos – Eu ainda vou ser Ministro da Defesa e Segurança.

- Torça para a noite chegar logo que isto acontece, com certeza. – falou Stuart tirando risadinhas de Kal, Daimon e Guinevere – Muito bem então, acho que agora temos que ir. Não queremos incomodar vocês.

- Obrigada, Stuart e... Fred. – falou Amanda percebendo que esse continuava a brincar com o novelo de lã mesmo depois de ter se transformado – Agradecemos por tudo que vocês têm feito por nós, e vamos contribuir para não dificultarmos muito as coisas.

- Tenham uma boa tarde, então. Vamos Fred, e por Merlin largue este novelo. – grunhiu Stuart antes que os dois se transformassem novamente em gatos e saltassem pela janela.

- Viu só mamãe. Estamos seguros. – disse Daimon.

- Sim, estamos, mas Cacius não poderia ter nos escondido o fato de Kricolas saber onde moramos...

- Ele não sabe. – disse o professor que acabara de esfumaçar ao lado da janela – Desculpe-me por chegar assim, sem avisar, mas é que estou num pequeno intervalo de uma reunião e precisava vir o mais rápido possível.

- Já sabemos de Kricolas, professor. – falou Daimon.

- Sim. Era exatamente isto que vim avisar. Podem ficar tranqüilos. Kricolas não tem o endereço de vocês. – afirmou ele com toda segurança.

- Mas aqui diz que os relatórios... – argumentou Amanda segurando o jornal.

- Sim, o Folha Mágica gosta de acrescentar muitas informações nos seus textos. Contudo nem todas são verídicas. Os relatórios que Kricolas roubou não continham qualquer informação sobre o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas. Na verdade ele roubou apenas um dossiê explicativo esclarecendo as metas do programa.

- Então ele não sabe onde estamos? – quis assegurar-se Amanda.

- Não.

- E onde estão os relatórios? – perguntou Kal curioso.

- Em um lugar onde ele nunca poderia entrar.

- Avalon? – sugeriu Kal.

Cacius sorriu, como se estivesse contente com a resposta de Kal, porém corrigiu-o logo em seguida.

- Warren. Todos os relatórios estão lá. Em segurança.

- Isto me alivia muito, professor... – confessou Amanda.

- Eu imagino como se sente. – disse Cacius retirando um relógio prateado de dentro do bolso das vestes – Desculpe, preciso ir agora. Está na hora da reunião. Sinto muito, só que não poderei ficar para jantar, senhora Foster. A reunião vai se prolongar. Vejo vocês outra hora. Até mais.

Mal terminara de dizer as últimas palavras, o bruxo já estava esfumaçando outra vez, deixando apenas um colorido esfumaçado que rapidamente sumiu com a ajuda do vento. Kal estava a meio segundo de perguntar ao professor o que era o Conselho de Magia que o Folha Mágica enfatizara, então deduziu que devia ser uma espécie de assembléia, onde os grandes bruxos do país votavam leis entre outras decisões.

- Bem, agora que estamos certos de nossa segurança acho que podemos nos preparar para receber nossos visitantes. – falou Amanda.

Os quatro sentaram-se no chão da sala e distribuíram os cadernos de notícias do jornal. Leram sobre economia, turismo, ciência, tecnologia, esportes e algumas outras novidades internacionais. A revista que Kal comprara não fora tão útil, pois em sua maior parte era composta por anúncios, sobrando poucas páginas de matérias bobas e outras cheias de fotos de pessoas em festas. No geral, os Foster e Guinevere conseguiram ter uma mínima noção a respeito do mundo não mágico, pelo menos o suficiente para cogitar um breve assunto.

Por volta das seis horas, Amanda e Guine entraram na cozinha com um caderno de receitas, enquanto Kal e Daimon limpavam a sala e a copa. Os dois trancaram toda a casa e fecharam as cortinas, a fim de poderem usar magia para facilitar o serviço de limpeza. Após isto, os dois começaram a trocar as lâmpadas, queimadas graças à radioestesia, sintonizaram a televisão, que insistia em não pegar, estenderam um tapete verde no chão da sala e acenderam alguns abajures pela casa para que não passassem vergonha caso uma lâmpada deixasse de funcionar. Depois de arrumarem a casa, os quatro vestiram roupas bem sociais, como as que viram nas fotos da revista que Kal comprara.

- Acho que acabamos. – falou Daimon largando-se no sofá.

- Já são sete e meia. Os Chiabai podem chegar a qualquer momento.

Eles sentaram-se em frente à tv e passaram a assistir o noticiário das sete. Naquele dia as notícias não eram tão boas. Quatro acidentes de carro e cinco mortes, Kal prestou bem atenção para ver se relacionava os ocorridos à Kricolas, no entanto parecia improvável que o meio-vampiro tivesse suicidado três pessoas e atirado em outras duas.

Às oito da noite, a campainha do interfone dos Foster tocou e de um salto os quatro levantaram-se do sofá com os corações acelerados. Daimon retirou o interfone do gancho e disse:

- Chiabai?

- Oh, sim! – falou o senhor Alexandre Chiabai, através do interfone.

- Podem entrar. Não temos cachorro. – disse Daimon desligando o aparelho – Estão vindo.

Kal e Guinevere ficaram ao lado de Amanda, na porta de entrada, prontos para recebê-los enquanto Daimon se certificava de que a lasanha que sua mãe e Guine fizeram não estava queimando dentro do forno.

- Está ok. – falou ele ao se juntar aos três.

- Olá! – disseram Alexandre e Mara Chiabai ao entrarem e cumprimentarem todos.

- E sua filha? Não pôde vir? – perguntou Amanda.

- Oh, ela virá. Estava com umas amigas em casa e por isso se atrasou. Em instantes ela chega.

- Por favor, entrem... – falou Amanda conduzindo-os até a cozinha.

- Será que ela vem mesmo? – perguntou Guinevere a Daimon e Kal e os dois deram de ombros.

Amanda, o senhor e a senhora Chiabai sentaram-se na mesa da cozinha e conversaram tranqüilamente, Amanda prestava atenção no que os dois falavam entre si, e logo percebeu que humanos e bruxos não eram nada diferentes. Aqueles dois estranhos despertaram nela uma alegria que há tempos não sentia. Amanda e seu marido Adonis conversavam longamente durante o dia, e ela sentia falta disso. Ter alguém para partilhar idéias e sugestões. Era certo que Cacius sempre a visitava, mas em geral não havia muito o que conversarem, nem ela queria fazer o professor perder seu valioso tempo discutindo sandices. Os guardas de Warren passavam a maior parte do tempo na forma de animais e eles precisavam estar sempre concentrados, então ela não os incomodava. Desde que se mudaram de Vila da Cachoeira, portanto, seus únicos parceiros de conversa eram três adolescentes. Mas Amanda ainda achava que suas conversas não eram tão atraentes para os três. E agora, ali, olhando para aquele casal sentiu-se finalmente contente por ter com quem trocar idéias, mesmo que não fosse sobre o seu verdadeiro mundo.

É uma pena que eles não possam saber de nós, talvez se interessariam... Pensou, em um leve entusiasmo.

Entediados, Kal, Guine e Daimon saíram pela porta da frente e caminharam pelo jardim até o portão de entrada. Quando tentaram abri-lo deram-se conta de que os Chiabai o haviam trancado e que eles estupidamente esqueceram as chaves.

- Vocês acham que tem alguém espiando? – perguntou Kal.

Os dois espreitaram os olhos pela vizinhança, primeiro na casa de Alexia Almeida, a fofoqueira de plantão, se ela não estivesse olhando ninguém mais estaria.

- Acho que não tem ninguém espiando. – falou Daimon.

- Opandor! – disse Kal com a varinha apontada para a tranca do portão.

- Posso saber aonde os três estão indo? – perguntou uma voz familiar vinda de cima de uma árvore ao lado do portão dos Almeida.

- Quem está aí? – perguntou Kal escondendo a varinha.

- Por Merlin, vocês são uns teimosos! – falou novamente a voz de cima da árvore – Sabem que têm que nos avisar quando tiverem intenção de sair.

- Só vamos dar uma volta.

Um gato laranja e de pelos curtos saltou da árvore com a verdadeira destreza de um felino. Era Fred.

- Eu os acompanho. – disse o guarda de Warren.

- Tudo bem, mas de longe. – impôs Guinevere.

- Será que um de vocês poderia me carregar no colo? Acho que machuquei a pata quando saltei da árvore...

Os três entreolharam-se com as sobrancelhas erguidas e bufaram.

- A menos que prefiram ficar em casa...

Daimon puxou o gato pela nuca e segurou-o como se fosse um bebê.

- Obrigado. Vocês são muito gentis. – agradeceu Fred enquanto lambia sua pata dianteira.

Os quatro seguiram rua abaixo até a pequena praça, onde na manhã daquele mesmo dia Kal conversara com Sara Chiabai. A vizinhança estava silenciosa, algumas poucas luzes acesas dentro das casas e nada mais, apenas dois postes estavam com as luzes queimadas e alguns outros passaram a piscar quando eles passaram por baixo.

- Estranha essa tal de radioestesia, não? – comentou Fred.

- Tão estranho quanto gatos falantes. – disparou Guinevere.

- Estive pensando em comprar botas, soube de um famoso que usa botas.

- Quieto! – advertiu Kal.

Ao se aproximarem da casa de Sara, ele pôde ouvir barulhos de conversa e sentiu uma imensa vontade de tirar a varinha do bolso e usar o Captus, feitiço que dá ao bruxo uma super audição capaz de ouvir qualquer coisa com perfeição num raio de um quilômetro.

- Ela é legal? – perguntou Guinevere, desconcentrado Kal de seu pensamento.

- Sim. – respondeu ele rapidamente.

- O que vocês vieram fazer aqui? – perguntou Fred.

- Nada. – disseram os três.

- Pelas grades de Warren! Eu estava dormindo como um bebê e vocês vêm aqui por nada! – resmungou o gato.

- Ninguém te convidou... – disse Daimon que já estava cansado de carregá-lo no colo.

Os três sentaram-se nos mal cuidados balanços e Kal ficou a olhar para a casa de Sara, quase que hipnotizado. Ele nunca sentira algo parecido. Talvez nem mesmo por Emanuela Goldemberg, por quem era apaixonado, nem isto ele tinha mais tanta certeza. Mas sabia que naquela manhã, algo acontecera entre ele e Sara Chiabai. Algo estranho e talvez bonito. Mas ainda assim não sabia se era exatamente amor.

Nas últimas semanas, ele assistira a vários filmes, e em diversos deles os personagens falaram em amora à primeira vista. Porém ele achou que aquilo era uma técnica de cinema, uma que construir um verdadeiro amor em menos de duas horas era impraticável, então, inventou-se o “amor à primeira vista”. E ele não queria ser influenciado por uma corrente amorosa de cinema. Definitivamente não.

- Está pensando nela? – perguntou Daimon de supetão.

- Sara. – completou Guine.

- Acho... acho que sim. – respondeu com toda sinceridade, coisa que não era muito comum, Kal sempre achara que os seus sentimentos não deviam ser compartilhados.

- Temos alguém apaixonado por aqui? – perguntou Fred.

- Disse para ficar quieto! – repreendeu Kal.

- Cara, você está caidinho pela não mágica! – gargalhou Fred balançando as patas no colo de Daimon.

- Fica quieto. – disse Daimon, que se esforçava para conter o gato.

- Não mágicos e bruxos são como água e óleo, seu burro. Não dá para misturar.

- Saia daqui! – trovejou Guine com o guarda que começava a agir impertinentemente.

- Não posso abandonar meu posto.

- Que pena. – disse Kal, o mais calmo entre eles. Não se importava em nada com as opiniões de Fred ou do conceito de que não mágicos e bruxos são criaturas muito distintas. Dificilmente ele se abatia com o julgamento alheio.

Eles ficaram sentados ainda um bom tempo conversando, sobre qualquer outro assunto que não fosse a vida amorosa de Kal, até que Sara Chiabai saísse de casa com suas três amigas por volta de nove horas. Kal admirou a vizinha em sua saia até um pouco acima dos joelhos e sua camisa de manga comprida verde, àquela noite fazia frio, mesmo estando no verão.

- Boa noite. – disse a garota aos três.

- Boa noite. – responderam.

- Bonito gato. – falou ela olhando para Fred que se espreguiçava no colo de Daimon.

- Não é meu. – falou ele jogando o gato para frente – Só estava... só estava com ele.

- Entendo.

Fred aproveitou que Sara estava de costas para ele e fez língua para Daimon em protesto.

- Estavam me esperando? – perguntou a garota – Desculpe-me fazê-los esperar.

- Não. Tudo bem. Só estávamos... aqui. Só isso... – disse Kal, meio que gaguejando.

- Eu sou Guinevere. – disse apresentando-se para Sara.

- Oi! Kal me falou sobre você hoje de manhã. – respondeu ela.

- Acho que... acho que estão... estão nos esperando. – disse Kal cabisbaixo e se odiando por estar gaguejando tanto.

Ele adiantou o passo e saiu na frente dos três, no entanto ao atravessar a rua até a esquina da casa de Sara ele sentiu um arrepio gelado em seu estômago como se tivesse engolido uma pedra de gelo naquele momento e um frio cortante alisou sua nuca. Aparentemente, apenas ele sentira aquilo. Guinevere, Daimon e Sara continuaram o caminho passando por ele, Fred seguia-os logo atrás.

Kal concluiu que era apenas um vento, um vento como qualquer outro e que não era motivo para pânico. Ainda mais na presença de Sara.

- Algum problema, Kal? – perguntou ela ao reparar que o garoto estava muito atrás deles.

- Oh! Não, não. Tudo ok. – disse meio que sem confiança e correu para acompanhá-los.

- Se isso te ajuda rapaz, eu também percebi. – disse Fred de cabeça baixa quando Kal passou por ele – Vão para casa! Depressa!

Kal acenou com a cabeça e se apressou mais ainda fazendo com que os outros três acompanhassem seu passo acelerado.

- O jantar deve estar pronto, não é?

Amanda e Guinevere fizeram um excelente trabalho na cozinha. A lasanha estava no ponto de cozimento exato e não houve falhas no tempero, até mesmo o paladar mais exigente se renderia àquela comida. Quando os garotos chegaram em casa, Amanda acabara de pôr os pratos na mesa com a ajuda de Mara, que apanhara uma jarra de suco de laranja dentro da geladeira e servira nos copos de vidro, cada um com três cubos de gelo.

- Parabéns às cozinheiras! – disse Mara.

- Obrigada. – responderam Amanda e Guinevere em coro.

Os assuntos da mesa divergiram sobre tudo o que os Foster leram. Naturalmente eles incitaram o assunto que tinham decorado na ponta da língua, para ganhar uma certa vantagem, e de forma que não se perdessem com as notícias recém adquiridas. Os Chiabai foram agradáveis em suas respostas e tinham uma visão bem politizada dos assuntos. Sara, apesar de parecer o tipo de garota que não entende muito além de maquiagem e shopping, mostrou-se bastante franca e confiante em suas afirmações. A cada palavra que a moça soltava, Kal sentia seu pelo eriçar de entusiasmo e alegria de ter, supostamente, se apaixonado por alguém tão encantadora.

Em dada hora da noite, os Chiabai perguntaram se eles não gostariam de sair todos juntos para um passeio entre amigos. Mesmo indecisa sobre a idéia, Amanda perguntou aos visitantes:

- Têm alguma sugestão?

- Chegou um parque na cidade. – falou Sara – Todos os meus amigos já foram lá.

- Parece uma boa idéia. – disse Kal olhando timidamente para a garota a sua frente.

- Dentro do parque tem um circo também. – prosseguiu Sara.

- Ótima idéia! – disse Alexandre – Faz tempo que não vamos a um circo, querida.

- Acho que a Sara era uma criança. – completou Mara.

- E vocês? – perguntou Sara a Kal, Daimon e Guine – Já foram a um circo?

Os três entreolharam-se e dirigiram o olhar a Amanda, que respondeu:

- Sim. Fomos. Mas eles eram tão pequenos, duvido que lembrem de muita coisa. – mentiu. Os Foster nunca se quer chegaram próximo a um circo, muito menos um parque de diversões.

- É uma boa idéia, então? – perguntou Daimon à mãe.

- Sim, claro. – respondeu ela, temerosa.

- Quando vamos? – perguntou Guine entusiasmada.

- Por que não vamos logo amanhã. – sugeriu Alexandre.

- Ótimo. O parque abre às dezoito horas. – disse Sara.

- Legal então. Combinado. – respondeu Kal e assim que terminou de falar sentiu novamente um arrepio na barriga e o vento na nuca.

Novamente nenhum dos presentes pareceu sentir a mesma sensação, porém ele agora tinha certeza de que não era apenas um vento. Olhou para sua mãe na ponta da mesa e ela parecia estar nervosa com alguma coisa. Os talheres em suas mãos estavam tremendo e Kal viu uma pequena gota de suor descer pela testa de Amanda.

Kal voltou ao seu prato para dar mais uma garfada no pedaço de lasanha que acabara de cortar e assim que o colocou na boca engoliu-o em seco ao ouvir um som rouco, quase como um agouro vindo da janela. O menino olhou para fora e viu o lago refletir calmamente a luz da lua por um breve instante, mas no segundo seguinte a água agitou-se provocando um movimento de ondas, como se uma pedra bem grande tivesse sido jogada no lago, no entanto, naquela ocasião, ele sabia que não fora uma simples pedra.

Olhando mais fixamente para fora, percebeu uma pequena agitação entre os guardas de Warren que corriam de um lado para o outro do lago. Era um movimento sincronizado como se estivessem isolando-o, verdadeiramente fazendo uma muralha. Kal suspirou profundamente quando um guarda inicialmente transfigurado em pombo sobrevoou o lago e transformou-se em peixe, mergulhando de cabeça. Fora uma sorte os três Chiabai estarem posicionados de costas para a janela.

- Algum problema, Kal? – perguntou Mara percebendo que o garoto estava catatônico e olhando fixamente para fora.

- Não. Não há problema nenhum. Só os peixes que estão pulando muito hoje. – respondeu nervosamente.

Amanda percebendo a situação pronunciou-se antes que um dos visitantes também se interessasse pelos peixes que Kal mencionara e olhasse para trás.

- Kal, está frio aqui não está? Por que não fecha a janela, querido. – sugeriu.

Kal balançou a cabeça positivamente, talvez ele mesmo tivesse aquela idéia um minuto mais tarde. Antes de fechá-la, enfiou a cabeça para o lado de fora e procurou pelos guardas. Todos tinham sumido.

- Feche logo, querido. – disse mais uma vez Amanda, em claro tom de nervosismo.

Ele puxou as vidraças e desceu a persiana, de forma que nada que acontecesse do lado de fora pudesse ser visto ou percebido por nenhum deles ali da cozinha.

Quando o relógio na parede marcou dez e meia, os Chiabai levantaram-se agradecendo pelo jantar e recombinaram o encontro do dia seguinte.

- Que jantar agradável. – disse Mara – Ficamos felizes em tê-los em nossa vizinhança.

- Às dezoito horas, na pracinha, combinado? – sugeriu Alexandre.

- Está bem, então. – respondeu Amanda.

- Até mais, Kal. – disse Sara ao atravessar a porta de entrada.

- Até...

No momento em que os Chiabai chegavam ao portão um gato peludo passou a poucos centímetros de suas pernas e Mara tomou um pequeno susto.

- Apenas um gato. – disse ela virando-se para os Foster.

Assim que Mara Chiabai selou os lábios todos os postes da rua começaram a piscar e se apagaram ao mesmo tempo, deixando a rua sob uma névoa de escuridão.

- Tudo bem não há perigo. – disse Alexandre não muito convencido.

Kal correu para dentro de casa e foi direto para a cozinha abrir a janela com vista para o lago. Ele admirou a cena. Eram mais de cinqüenta gatos e cachorros, todos olhando para o centro do lago em expectativa. Kal reconheceu o gato mais próximo como sendo Stuart. Ele chamou a atenção do gato e disse baixinho:

- Stuart! Você pode seguir os Chiabai até em casa? Por algum motivo todos os postes se apagaram!

- Precisa ser agora? – perguntou o guarda, claramente exautado.

- Por favor. Pode ser perigoso para eles.

- Não posso abandonar meu posto. – teimou.

- O que está acontecendo afinal de contas? – quis saber Kal.

- Tudo bem garoto. Eu vou acompanhá-los. Vá dormir. – disse Stuart esquivando-se da pergunta de Kal.

O garoto pôs-se para dentro da cozinha novamente e trancou a janela, correu então para a janela do seu quarto de onde teria uma visão mais aérea da cena. Havia um brilho estranho dentro das águas esverdeadas do lago, e não era apenas o brilho da lua. A luz parecia sair do fundo do lago. Os guardas de Warren continuavam espalhados à margem muitos em posição de ataque.

- Algum problema, Kal? – perguntou Daimon curioso da porta do quarto.

- Não! – respondeu fechando a janela subitamente – Só estava olhando a lua...

- Parece estar bonita hoje. – disse Daimon se aproximando da janela.

- É uma pena que tenha muitas nuvens. – falou Kal e o irmão se afastou.

- A tudo bem. Eu vou dormir então. Boa noite.

- Boa noite.

Kal encostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos, contudo assim que o fez, seu cérebro mostrou-lhe as imagens do lado de fora da casa. Ele continuava vendo os guardas ao redor do lago, e então viu os Chiabai indo para casa, seguidos de perto por Stuart. Era apenas imaginação. E foi neste ritmo que Kal mergulhou em um sono atormentado por pesadelos e sonhos confusos. Como o em que ele corria por uma linha de trem e ao passar por uma estação ele viu Sara sentada em um banco, mas quando quis parar não conseguiu. Seus pés não o estavam obedecendo e ele continuou correndo até a próxima estação onde a mesma Sara continuava sentada em um banco a sua espera, no entanto ele não podia parar, não, não podia...

- Kal... Kal... Kal acorda... – ouviu ao longe.

- Kal, o professor Cacius quer ver você.

- Guine... o que...

- Bom dia. Acho que estava sonhando. – falou Daimon.

- Você estava dizendo que queria parar. – disse Guinevere logo em seguida.

- Cacius está aí?

- Sim. – confirmou a garota.

Kal levantou da cama, ainda estava com a roupa que usara no jantar, e correu rápido até as escadas descendo dois degraus por vez. Ao chegar à cozinha, deparou-se com Cacius que bebericava uma xícara de café enquanto Amanda contava como fora agradável a noite anterior com a visita dos Chiabai.

- ...e eles adoraram a lasanha.

- Bom dia, professor. – cumprimentou Kal.

- Bom dia, Kal.

- Dormiu bem, querido? – perguntou Amanda.

- É. – disse Kal não querendo contar seus sonhos a ninguém.

- Kal, gostaria de falar com você. Se possível.

- Claro. – disse, esperando exatamente por isso.

O professor agradeceu a Amanda pela xícara de café e levantou-se, abriu a porta da frente e saiu acompanhado de Kal. Os dois saíram da varanda e deram a volta na casa até chegarem próximo às margens do lago, que parecia mais quieto naquela manhã do que estivera na noite anterior. Cacius contemplou o horizonte a frente por instantes sem parecer ter vontade de falar qualquer coisa, mas algo parecia obrigá-lo a fazer aquilo.

- Quero lhe contar algo muito importante agora, Kal Foster.