domingo, 4 de novembro de 2007

Capítulo 7 - O livro de duas faces

No quinto andar, no salão secreto de Tadewi, Ralph e Guine largaram Kal em uma poltrona vazia e cruzaram os braços furiosamente diante dele.

- Que história é essa de Guardião-mirim? – perguntou Guinevere.

- Você não nos contou! – disse Ralph em tom incriminativo.

- E eu deveria? – respondeu Kal dando de ombros – era uma decisão minha.

- Não custava falar com os amigos. – insistiu Guinevere.

- Guine, por favor! Eu precisava decidir isto sozinho. – retraiu Kal.

- Mas não precisava ser tão egoísta a ponto de não compartilhar esta novidade conosco. – disse Ralph continuando o sermão.

- Para mim não era uma coisa boa! Ser membro do conselho não significa nada. – retrucou Kal.

- E por que você aceitou participar então? – insistiu Ralph.

- Para ficar olhando a sebosa da Emanuela Goldemberg. – acusou Guine.

- Guine, não! – disse Kal sem graça – Rômulo falou que na sala do Conselho existem livros que não estão na biblioteca.

- Eu conheço você, Kalevi Foster, e sei muito bem que não se interessa pelos livros. – prosseguiu a garota.

- Vocês não acham que estão exagerando? – falou Kal tentando reverter a situação – É a minha vida e a proposta incluía apenas a mim. – Kal havia se levantado, em seu rosto predominava uma expressão de fúria e amargura – Eu tinha que decidir isto sozinho. Fazer algo por mim mesmo. Cansei de viver sobre a sombra de um nome importante. Cansei de ser O milagre Foster. Quer saber, estou satisfeito e não me arrependo da escolha que fiz!

Kal estava possesso, lembrou-se dos quase treze anos de sua vida. Um filme de muita amargura passou pelos seus olhos, os garotos em Vila da Cachoeira zombando-o, a reunião internacional dos bruxos, e seu desmaio. A partir daquele momento sua vida mudara. Ninguém mais implicava com ele, pelo contrário, tinham medo. O milagre Foster revelara-se um mal para alguns. Sempre Milagre Foster, nunca o Menino Kalevi. Isto o incomodava agora. Qualquer coisa que fizesse seria sempre pelo fato de ser um Foster, não pelo fato de ser ele, Kalevi.

Talvez fosse por isso que ele fora escolhido por Tadewi. É isto que queria mudar. Ele queria mudar sua vida. Para ser lembrado como Kalevi e não apenas como um Foster. Afirmar sua identidade. O pensamento e as lembranças foram brutamente interrompidos pela voz cortante de Guine.

- Fique então com sua decisão e seus novos amigos. Eu também cansei. Não quero ser amiga de quem não está interessado em ouvir minha opinião. – Guine olhou uma última vez para os olhos de Kal e então saiu do salão de Tadewi passando pelas duas estátuas até chegar ao corredor do quinto andar.

Ralph também parou por um instante para contemplar Kal. Olhou por muito tempo como se estivesse procurando uma outra pessoa. Finalmente disse:

- Eu não conheço você.

E saiu.

Kal voltou à poltrona e viu todo o salão vazio, tão vazio quanto estava agora seu coração.

Vários minutos se passaram até que ele finalmente voltou do seu transe de pensamentos. Levantou-se rapidamente e olhou para um relógio de madeira pendurado na parede. Já haviam se passadas duas aulas. Ele agitou a cabeça, abismado com a velocidade com que o tempo passara. Ficou ali sentado durante por quase três horas e nem ao menos se dera conta.

Kal lembrou-se que as duas últimas aulas eram de Geomagia e Maldições. Olhou para seus materiais espalhados na mesa, deu um leve suspiro e os recolheu.

Andou pelo corredor do quinto andar, mais uma vez, completamente imerso em seus pensamentos perdidos. Kal pensava em como seria seu primeiro dia no cargo de Guardião-mirim de Avalon. Pensava em Emanuela Goldemberg e em seguida sentia vergonha ao se lembrar de Guinevere dizendo que era aquela garota o principal motivo para ele aceitar fazer parte do Conselho Estudantil. Kal não admitia, mas sabia que era verdade. Talvez, se Emanuela não fizesse parte do Conselho, ele não teria aceitado a proposta de Rômulo.

Ao chegar na sala de Geomagia, Zélia não o encarou com bons olhos, não foi a única. Ralph e Guine também o estavam encarando com olhares furtivos. Mesmo com tantos olhares a professora Zélia permitiu que Kal assistisse à aula.

Kal retirou o livro “Onde estamos” de dentro da mochila e abriu na página inscrita no quadro. Acompanhou a tediosa leitura sobre as civilizações antigas que habitavam o Brasil e boa parte da América Latina.

Na altura em que falava sobre os povos primitivos argentinos, muitos alunos já dormiam debruçados sobre seus livros. Relutantemente, Kal manteve-se acordado até que Zélia Bússola encerrou sua leitura com os povos mexicanos e fechou seu próprio livro com força, provocando um barulho que foi capaz de acordar a todos.

- Fim da aula! – anunciou.

Os alunos saíram completamente desanimados e demasiados sonolentos da sala, ainda teriam uma aula, antes de finalmente se considerarem livres, foi o que pensou Kal.

Para a sorte deles a sala de Maldições ficava no mesmo andar que a de Geomagia.

A sala tinha forma triangular e era demasiadamente escura. Na extremidade da sala estava sentado o professor de Maldições e também pai de Rick, Amadeu Wosky. Os alunos se acomodaram na sala, Kal sentou-se na segunda cadeira, atrás de Guinevere e Ralph, que logo uniram as cadeiras para formar dupla. Alguns outros alunos também se agruparam, em resposta o professor ordenou:

- Separem os grupos!

Os alunos obedeceram prontamente.

- Maldições não é uma matéria simples, porém, se engolirem cada mínima palavra que eu proferir e decorarem cada vírgula de seus livros, a arte abrirá as portas para vocês, e então desvendaram o oculto. – disse franzindo o rosto com repugnância pelos alunos – Maldições não é arte das trevas, pelo menos não o que vou ensinar-lhes. Este ano vocês aprenderão como fazer truques simples. Não espero grande coisa de vocês, mas quero que pelo menos aprendam que duas maldições não ocupam o mesmo corpo ao mesmo tempo, este é um princípio básico. Se conseguirem acertar alguém com uma maldição e depois amaldiçoar este alguém com uma segunda, a primeira que lançaram será anulada. Compreenderam mentes, insignificantes?

As frases de Amadeus sobre a aula eram sempre seguidas de um leve insulto ou prova definitiva de desprezo pelos primeiranistas.

Ele passou algumas anotações no quadro, a quais Kal copiou rapidamente e passou a lê-las. O professor então, começou a explicar o que havia escrito. Amadeus falou das antigas civilizações e como elas usavam a magia. Passou mais um quadro de anotações, desta vez sobre os povos maias.

- Tragam os exercícios respondidos da página quinze para eu corrigir na próxima aula.

Por simples curiosidade, Kal abriu seu livro na página quinze para ver que tipo de exercício o esperava. Na margem da página havia alguns símbolos egípcios e o enunciado dizia: “Antigas Maldições”.

Amadeus dispensou os alunos minutos antes do fim da aula, se apressou em recolher seus livros e pergaminhos, trancou-os em sua gaveta e atravessou a porta dupla de carvalho, mesmo antes dos alunos esvaziarem a sala.

- Apressadinho... – disse Kal a Ralph e Guine.

Os dois não prestaram atenção, terminaram de reunir seus materiais e saíram sem dizer qualquer palavra. Ainda olhando para os dois amigos, que já andavam a passos largos pelo corredor, Kal enfiou o braço em umas das alças da mochila e caminhou no sentido oposto aos dois amigos, passando por um corredor quase sem janelas.

A noite havia chegado mais cedo. Nuvens densas de chuva cobriam todo o céu e os archotes ainda não estavam acesos. Andou vagarosamente pelo escuro, passo sobre passo, com toda cautela para não tropeçar em uma das pedras soltas do piso de mármore. Um pequeno vaga-lume que passou em sua frente despertou-lhe uma idéia.

- Bolhasradiant! – o feitiço que ele havia visto Ralph fazer quando se conheceram iluminou parte do corredor com pequenas bolhas de luzes que saiam da varinha a todo instante.

Com passos curtos e calmos, Kal continuou pelo corredor com uma das mãos junta a parede e a outra erguendo a varinha para iluminar o caminho. Caminhando mais à frente, ele alcançou o corrimão prolongado da escadaria. Seguindo por ele, desceu os degraus de acesso ao segundo andar, ainda deveria passar pelo primeiro até alcançar o saguão de entrada para jantar antes de retornar com os demais alunos para à Cidade dos Elfos. Ainda na escada do segundo andar, as bolhas produzidas pelo feitiço começaram a desaparecer, sem elas seria impossível enxergar qualquer coisa dali para frente.

Kal desceu os degraus com o dobro cautela, parou por um instante para conjurar novamente o feitiço, mas um vento forte e gelado passou pelo seu corpo como se fosse uma mão gigantesca acertando uma mosca desnorteada.

Com a forte corrente de ar, Kal largou a varinha em um breve descuido. Terminou de descer as escadas sem o feitiço e saiu à procura de sua varinha, encontrando-a sobre a luz fraca da lua que vinha de uma janela. Olhou para o vitral e percebeu um pequeno vulto sentado no para-peito. Aproximou-se pensando ser um aluno perdido, porém o vulto revelou-se pavoroso sobre a luz bruxuleante da lua. Instintivamente, Kal se afastou, dando espaço para a pequena criatura, que se pôs sobre os quatro membros e caminhou meio que de lado em sua direção.

Estavam cara a cara, a luz que atravessava os vitrais mostrava apenas uma figura humanóide que fazia enorme esforço para manter-se de pé. Aparentemente não traria susto a ninguém, a não ser sua pele suja de lodo e muito enrugada, olhos pequenos com pupilas verticais, orelhas tão pontudas quanto a de morcegos e dentes e unhas afiados como a de um poderoso predador. Mas a idéia que menos agradava a Kal era o fato de estarem sozinhos.

Percebendo isso, Kal recuou ainda mais, não seria capaz de lutar contra aquela criatura sozinho, por incapacidade e também por medo, não é todo dia que se vê uma criatura tão monstruosa quanto aquela em uma escola, mesmo em uma de bruxos. Tentou chamar por socorro, mas sua voz estava travada.

Num salto onde mostrou toda a sua desenvoltura e habilidade corporal, a criatura investiu para cima de Kal, mas a menos de dois metros de alcançá-lo, subitamente ela se transformou no professor Cacius, que disse:

- Hora de acordar.

O mesmo vento forte que o atingiu na escada, agora, vinha em direção oposta e como se estivesse sendo erguido por ele, subiu até alcançar o teto. Na tentativa atravessá-lo, como fazem os fantasmas, acordou.

- Você está bem?

O professor Cacius estava olhando com ar de curiosidade para Kal.

- Estou bem. Que lugar é este?

- É minha sala. – respondeu o professor com um sorriso cativante – Eu te encontrei caído perto da escada. Acredito que tenha se perdido e não sei por que, desmaiado. Trouxe você até aqui para que despertasse sozinho. Não vi necessidade de levá-lo até a Srª. Simon.

Kal ergueu-se e logo sentiu uma forte dor de cabeça, como se uma furadeira estivesse perfurando seu cérebro pela parte interna. Imediatamente, pôs a mão no cocuruto procurando pelo motivo de sua dor, abriu melhor os olhos e se deparou com um lugar realmente incrível.

Estava deitado em um sofá de madeira envernizada e um estofado vermelho, bem macio. As paredes da sala de Cacius eram forradas com papel de parede amarela com fracas linhas brancas e um grande quadro de um bruxo a quem Kal reconheceu como sendo Merlin. Era um velho bruxo com uma vestimenta azul-marinho que lhe cobria do pescoço aos pés, encostado em uma velha árvore que deveria ser uma macieira. A expressão no rosto do Merlin pintado era de uma ligeira preocupação.

O chão da sala era de assoalho um pouco envelhecido, mas ainda assim lustroso. Algumas mesas ostentavam estranhos objetos circulares e porta-penas esquisitos, como um em forma de coruja, em que as penas eram guardadas na própria asa da coruja, naquele momento, a coruja estava sem uma de suas penas.

Diversos armários exibiam com aparente orgulho seus livros. Kal notou que em um deles, talvez o menor de todos, tinha um vão entre seus livros que permitiria encaixar perfeitamente outros dois volumes. Outros armários reluziam seus cristais cintilantes, entre outras pedras preciosas.

- Parece que você já está recuperado. – comentou Cacius afastando-se.

- Ah sim... mas o que aconteceu realmente? Lembro-me apenas de um monstro ou sei lá como posso chamá-lo...

Cacius o encarou levemente como se os olhos de Kal fossem portas abertas para sua mente, então disse:

- Eles são forças que habitam o mundo astral. Forças negativas. – disse Cacius admirando alguma coisa no teto de pedra.

- Como o senhor foi parar lá? – perguntou Kal tentando ver o que de tão curioso estava pendurado que chegava a quase hipnotizar o diretor.

- Creio que estamos atrasados para o jantar. – disse Cacius desviando sua atenção até a porta e mudando repentinamente de assunto.

Kal percebeu a esquiva e resolveu não insistir. Apenas agradeceu mentalmente a ajuda do professor, pois sem a intervenção de Cacius, a criatura, certamente, teria atacado-o. Mesmo sem entender o que o diretor havia dito sobre mundo astral, Kal tinha uma única certeza. Aquilo havia de fato acontecido, e não apenas um sonho de desmaio.

No jantar, Kal aproximou-se de Guine e Ralph, então começou a falar da tal criatura. Guine ignorava por completo o que ele dizia, continuando a saborear sua torta de bacalhau com palmito. Já Ralph, mesmo parecendo indiferente aos comentários, Kal o surpreendeu em um suspiro quando mencionou a parte em que o monstro atacou-o.

Na mesa ao lado, Daimon estudava um livro que estava em seu colo enquanto comia uma salada de tomates. Kal decidiu não importuná-lo.

O banquete ainda não havia terminado quando ele resolveu descer até Cidade dos Elfos. Nos portões, encontrou-se com outros dois alunos, que também estavam prestes a descer. Fora eles havia apenas mais outros três balões já a meio caminho. Luís ficara nos portões orientando os alunos.

A República de Tadewi ainda estava vazia quando Kal se acomodou sobre uma das poltronas próxima a lareira, lá fora começara a fazer muito frio com o início de uma leve chuva.

Como Kal havia cabulado a aula de feitiços, resolveu ler o livro para não ficar atrasado em relação ao restante da turma. Vasculhando a mochila, encontrou o livro de Amadeus Wosky, “Maldiçoes, defesas e utilidades”, lembrou-se instantaneamente do dever que o professor deixara para ser feito e correu para o mural onde estava afixado o horário de aulas. Para sua total surpresa o horário não era animador. No próximo dia de aula iniciaria com dois tempos de Maldições, em seguida, também duas de Biomagia, Poções e Clerigologia. Das oito aulas do dia apenas Maldições era uma matéria conhecida, Kal nunca havia ouvido falar em Clerigologia e nunca estudara Poções ou Biomagia, o que quer que fosse isto.

Pensando em anotar o horário, Kal lembrou-se de um fato que ocorrera há alguns dias dentro do Templo na Cidade do Norte. Lembrou-se de um feitiço que viu sendo utilizado pelos repórteres e pensou fazer o mesmo com o horário.

- Fotograph! – três pequenos flashes dispararam da varinha de Kal, em seguida ele pegou um pedaço de pergaminho e disse – Impressor! – um pequeno líquido branco escorreu da ponta da varinha e caiu no papel, espalhou-se e lá estava o horário.

Quando os primeiros alunos de Tadewi começaram a entrar no salão, Kal já estava terminando o exercício de Maldições. Ralph e Guine entraram às pressas e sentaram-se em uma das mesas com os outros alunos do primeiro ano. Todos estavam afoitos para resolver os exercícios, pareciam exaustos e extremamente indispostos. Mal sabiam que teriam pela frente trinta e cinco questões discursivas a serem respondidas. Kal ainda observou que alguns alunos começavam a se descabelar enquanto liam as questões. Alguns deles começaram a praguejar o professor e a largar o material na mesa.

Enquanto os alunos se descabelavam, bufavam e gritavam a má sorte, Kal espreguiçou-se e depois recolheu seu material da mesa, levantou-se e no meio da sala bocejou de forma quase que escandalosa para chamar a atenção dos demais alunos. Que o encararam com profundo desânimo, sabendo que Kal estaria tranqüilamente repousando enquanto passavam a noite em claro.

Lentamente, ele caminhou até as escadas do dormitório com um largo sorriso no rosto. Sem saber por quê, Kal sentiu-se imensamente feliz ao ver a expressão abatida e também muito desesperada de Ralph e Guine.

No dormitório, o garoto atirou-se na cama logo depois do banho. Assim que fechou os olhos, ouviu na janela um pequeno barulho, aproximou-se e viu um pacote através do vidro esfumaçado. Sem saber o que era, Kal puxou o embrulho para dentro.

Era um tipo de correspondência amarrada com cordas de palha seca. Preso nele estava um pequeno cartão que dizia:

Ao senhor Kalevi Foster,

Livros & Boatos

- Chegou!

A alegria que Kal sentiu ao receber aquele pacote não poderia ser maior, estava ele com o livro de Van Feo, “Além da matéria”. Imediatamente pô-se a rasgar todo o embrulho e finalmente pode tocar o objeto. O livro tinha a capa prateada com detalhes em alto relevo e em seu centro havia o rosto de uma estranha pessoa careca, em que o lado esquerdo do rosto parecia adormecido e o outro lado era um misto de euforia e espanto. O pequeno olho direito pestanejava incessantemente.

Kal estava tão eufórico quanto ao livro que agora passava a observar o dormitório com certo desespero.

Sua felicidade era tamanha que até havia esquecido que o conteúdo do livro era muito mais interessante do que a capa viva. Dando-se conta disto, ele depositou o livro em cima de seu travesseiro e deitou-se de bruços para lê-lo.

- Bolhasradiant!

As pequenas bolhas de luz iluminaram adequadamente o local. Kalevi posicionou sua mão na capa e fez força para abri-lo, sem conseguir, imaginou que fosse devido ao peso, pois a capa estava repleta de detalhes. Aplicando uma força ainda maior, ele tentou abrir o livro novamente, apenas conseguiu virar o rosto do livro para a fronha do travesseiro, sufocando a pequena pessoa da capa. Irritado com aquilo, ajustou o livro e se ajoelhou na cama batendo com a ponta da varinha na testa da capa. Esta não deu importância à agressão e fechou o olho direito.

- Já sei. Opandor! – uma pequena quantidade de luz saiu da varinha e se dissipou pelo livro. Kal tentou mais uma vez abri-lo com o feitiço, mas ainda assim não conseguiu.

Na manhã do dia seguinte, Kal Foster levantou antes de qualquer aluno de Tadewi, desceu até o salão às pressas e tomou café da manhã sozinho. Apenas quando saiu da república viu alguns alunos ainda sonolentos. Subiu também sozinho em um dos balões, deixando Luís muito irritado por ter feito isto. Todas as manhãs, um dos Representantes levantava mais cedo para abrir os portões. Àquela hora, certamente, alguém já deveria estar lá em cima.

Kal correu em direção ao castelo e passou direto pelo saguão de entrada e subiu até o segundo andar, em tempo recorde, alcançando rapidamente a sala de Maldições. O professor já estava em sua mesa, aparentemente escrevendo um tipo de relatório. No momento em que Kal irrompeu pela porta, Wosky pareceu ligeiramente alterado. Recompondo-se disse:

- Um pouco cedo não, Foster.

- Ah... é... sim senhor... quero dizer... eu quis chegar mais cedo sim... mas...

- Não tenho muito tempo Foster. – disse Amadeus levantando-se e recolhendo o pedaço de pergaminho em que estava trabalhando – Talvez outra hora.

- Ah... sim... tudo bem então, professor.

Amadeus Wosky apressadamente guardou o restante de suas coisas em uma pequena gaveta de sua mesa e saiu.

Kal sentou-se em uma das mesas e pôs seu novo livro, “Além da matéria”, sobre ela. Parou para olhá-lo cutucou-o novamente com a ponta da varinha e tentou abri-lo novamente.

Sem sucesso, Kal abaixou a cabeça e emudeceu. Pretendia que o professor o ajudasse a abrir o livro. Amadeus Wosky certamente tivera contato com artefatos mágicos antigos e talvez, livros como aquele se encaixassem em uma das especialidades do professor. O garoto permaneceu em um silêncio contínuo que só foi interrompido cinco minutos mais tarde por uma voz vinda da porta.

- Refletindo, Kal?

Ele olhou por cima do ombro e observou Tirso que em seguida aproximou-se do garoto.

- E então? Está mesmo refletindo?

- Um pouco, talvez. Gostaria mesmo de estar lendo.

- Não entendi. – disse o professor puxando uma cadeira para sentar-se.

- Eu comprei um livro, mas não consigo lê-lo.

- Agora entendo. – disse ele finalmente acomodando-se direito – Posso vê-lo? – Kal gentilmente entregou o livro nas mãos do professor que passou a admirá-lo por um breve instante – Van Feo, Além da matéria. Ótima autora.

- Você... é... o senhor conhece?

- Tudo bem. Não precisa me chamar de senhor. Você é meu amigo, Kal ou devo chamá-lo de senhor Foster também? – Tirso soltou um pequeno e não raro sorriso.

- Obrigado professor, mas o livro... – disse Kal voltando-se para o objeto nas mãos do professor.

- Ah claro! Sim, eu conheço os livros dela. Muito boa mesmo.

- Pode ser, talvez. Eu ainda não li.

- Não consegue abri-lo, certo? – disse Tirso forçando o livro a abrir da mesma forma que Kal fizera na noite anterior – Ela é uma escritora bem especial, eu gosto muito dela, mas seus livros são um tanto quanto, hã, geniosos, vamos dizer assim. Alguns livros não gostam de expor seu conhecimento a qualquer um, entende? Eles têm decisões próprias. É um feitiço inquebrável. Realmente inquebrável! – frisou.

- Então como vou lê-lo?

- Bem, ele terá que se habituar a você.

- Aff... – bufou.

- Lamento, Kal, mas é assim que funciona. O livro terá que sentir que pode confiar em você. Traga ele para sua vida, passe com ele momentos agradáveis.

- Vou amarrá-lo numa coleira e vou passear com ele na Cidade dos Elfos. – disse Kal brincando.

- Mais ou menos isto, mas sem a parte da coleira. Passeios e conversas são ótimos para torná-lo seu amigo.

- Então, assim vou conseguir lê-lo?

- É, bem... é o que dizem. Eu comprei um livro, já faz algum tempo, e até hoje não consegui abri-lo. Bom, espero que tenha mais sorte.

O último comentário de Tirso não animou muito Kal que não pode dizer mais nada, pois Wosky havia retornado.

- Matando serviço professor? – perguntou Amadeus sarcasticamente.

- Eu cumpro muito bem o meu horário, diferente de certos amaldiçoados. – a resposta de Tirso foi claramente ofensiva, era verdade que Amadeus havia faltado a algumas aulas nestes primeiros dias letivos – Muito bem, Kal, eu já vou, qualquer coisa pode me procurar.

Tirso saiu pela porta dupla sem mais despedidas. Amadeus parecia encarar Kal de forma curiosa, como se realmente quisesse saber que tipo de ajuda ele estava recebendo de Tirso. Assim que fez menção de perguntá-lo, porém, os alunos de Tadewi entraram com estardalhaço na sala de aula. Afoitos e levemente apavorados, os alunos sentaram-se em cadeiras individuais. Amadeus passou pelas mesas recolhendo os exercícios e deveres, lançava um olhar de desprezo para os alunos que diziam não ter completado toda a tarefa.

- Realmente não esperava encontrar, grandes bruxos nesta sala. – a voz do professor foi subitamente interrompida por protestos dos estudantes – han, han... – pigarreou e assim conseguiu a atenção dos alunos – Espero que da próxima vez esforcem-se mais.

Amadeus suavemente oscilou sua varinha na direção dos pergaminhos que havia acabado de recolher, estes levantaram cerca de trinta centímetros da mesa e aterrissavam delicadamente já com as correções e notas. Em outro movimento de varinha o professor fez com que os pergaminhos voassem até seus respectivos donos. Alguns alunos olhavam desapontados para seus resultados e se afundavam nas mesas. Porém Kal sentiu-se extremamente feliz ao ver um nove em seu pergaminho.

- Espero que vocês reflitam sobre suas notas e pratiquem os exercícios da página vinte e cinco. Quero eles prontos para a aula de amanhã. Estão dispensados.

Por um instante todos os alunos permaneceram estáticos. Completamente espantados pela última frase do professor, estão dispensados. A primeira, das duas aulas de maldições acabara de começar e ele dissera Estão dispensados?

Amadeus Wosky encarou os alunos de maneira curiosa e abanou as mãos de forma a entender que era para eles saírem. Perplexos os alunos permaneceram sentados até que o professor repetiu com mais ênfase.

- Estão dispensados!

Sem mais explicações, os alunos jogaram suas mochilas nas costas e seguiram para fora da sala em fila. Ralph foi o último a recolher seus materiais, ao seu lado estava Guinevere, impaciente com a demora. Kal aguardava os dois na porta para escolherem um lugar aonde ir antes da próxima aula. Assim que os dois deixaram a sala triangular, Wosky selou as portas com um perceptível ar de intolerância.

- O que foi aquilo? Apenas cinco minutos de aula! – disse Kal tentando quebrar o grande iceberg entre os amigos, suas tentativas de reatar a amizade entre eles pareciam inúteis – Aff... – fez ele quando nenhum dos dois respondeu – Já vi que hoje não. Quer saber, cansei deste ciúme bobo.

Nesta hora, Guine e Ralph pararam para ouvir tudo o que Kal dizia, sem mesmo questionar.

- Acho que isto eu já disse, eu não tenho porque tornar minha vida um livro aberto para a curiosidade alheia.

Os dois coraram enquanto se entreolhavam, havia um fundo de verdade no que estavam escutando. Kal permaneceu ali tempo o suficiente para vê-los abaixar a cabeça, e então partiu rumo ao salão de Tadewi.

Chegando ao quinto andar, Kal ouviu a voz de Rômulo. O garoto o chamou tão alto que algumas pessoas que estavam estudando na biblioteca colocaram suas cabeças para fora procurando pelo motivo de tanto barulho.

- Bom dia, Foster! Foster, Foster, Foster... – repetiu debilmente – Meu Guardião-mirim.

- Eu sou guardião da escola Rômulo. – respondeu Kal de forma ríspida.

- Da no mesmo. – disse dando de ombros – Bem, Foster, para onde você iria mesmo? Não interessa. – falou antes que Kal respondesse qualquer coisa – O que nos interessa é para aonde vamos.

- E aonde vamos?

- Para a sala do Conselho Estudantil.

- E onde fica?

- Como onde fica? Você tem muito a aprender meu pequeno Foster. – Rômulo realmente parecia orgulhar-se em dizer o nome Foster. Durante o caminho ele gargalhava alto e pronunciava o tal nome. Kal achou que iria ser pregado a uma base de madeira para Rômulo carregá-lo como um troféu por toda a escola. Ele o guiou até o sexto andar e pararam diante uma cortina vermelha e com alguns buracos pessimamente remendados com linha branca. Com as mãos, Rômulo separou as cortinas revelando uma parede de pedra polida.

- Está vendo? É um cômodo secreto.

- Secreto?

- Aff... eu tenho que explicar tudo... OK! Funciona assim, você põe a ponta da varinha dentro da cortina e diz. Sadauá!

Uma luz fraca escapou pelos buracos da cortina e um leve vento surgiu por trás do tecido que revelou uma pequena porta de madeira.

- Prestou atenção? É só dizer Sadauá. Para fazer a passagem sumir é só bater a porta. OK?

- Dizendo Sadauá a porta aparece e para fazê-la desaparecer é só fechar. – repetiu Kal

Ao entrar na sala, Kal se deparou com uma pequena mesa com espaço para seis cadeiras, embora só houvesse cinco. Estantes de livros, armários dos mais variados tipos e tamanhos, com os mais variados objetos, pontiagudos, esféricos, retangulares... Almofadas e tapetes felpudos, tudo extremamente aconchegante, como se fosse o quarto de um rei, nem mesmo a sala de Cacius parecia tão requintada. Uma lareira gigantesca no fundo da sala estava rodeada pelo conjunto de poltronas vermelhas recém adquiridas pelo conselho que Kal vira no terceiro andar quando conheceu Rômulo. Aos pés das poltronas estava disposto um enorme tapete azul cor do céu, pintado com o brasão da escola, um grande “A” em cima de alguns livros e uma pequena coruja branca repousando sobre a letra. Luminárias pendiam do teto e sua luz bruxuleava pelo quarto como se fossem dançarinas alegres.

- E então, gostou do lugar? – perguntou finalmente Rômulo.

- É maravilhoso.

- Bem, acho que podemos nos acomodar um pouco antes dos outros membros chegarem a darmos início à reunião.

Rômulo atirou-se em cima de uma das gigantescas almofadas enquanto Kal passeava pela sala tentando ver os títulos dos livros dentro das estantes.

- Pode ficar a vontade, pequeno Foster. Esta sala também é sua. Ah! Estava me esquecendo. – falou tirando um pequeno e brilhante broche do bolso. – Isto agora é seu! – Rômulo jogou o objeto nas mãos de Kal.

- Mas o que é E.T.? – perguntou ao ler o broche.

- Apenas um detalhe. – Rômulo aproximou-se de Kal e puxou a varinha, tocou no broche e o E.T. transformou-se em K.F..

- Mas quem era E.T.? – insistiu Kal.

- Não me lembro agora. Veja, chegaram.

A porta se abriu e os outros três membros se juntaram a eles. Marcos Herdam parecia ainda mais raquítico aquela manhã, usava vestes longas e aparentemente pesadas. De tão largas, as roupas pareciam couro de hipopótamo cobrindo uma vassoura, mal se via seu rosto escondido entre as madeixas enegrecidas, era tão magro que no momento em que entrou na sala, Kal pensou estar revendo a mesma criatura que o atacara no dia anterior. Antonio Furtado era completamente o oposto. As pernas compridas e roliças lhe davam certa altura, mas a barriga estufada lhe garantia uma leve semelhança com um barril.

Por outro lado, Emanuela Goldemberg, como sempre, estava estonteante. Os cabelos longos e loiros estavam presos a uma fivela em forma de borboleta com pequenas pedras reluzentes em suas supostas asas. As pedras eram facilmente ofuscadas quando o sol penetrava pela janela e iluminava seus lindíssimos olhos azuis e sua pele quase albina.

Rômulo trancou a porta do conselho e ordenou que todos se sentassem. Propositalmente, Kal se apressou para se sentar ao lado de Emanuela. Estando na extremidade da mesa, sentado em uma cadeira que mais lembrava um trono real, Rômulo iniciou a reunião.

- Estamos aqui, em nossa primeira reunião oficial, para decidirmos o modo que iremos trabalhar este ano e explicar algumas regras aos nossos novos membros. – Rômulo lançou um leve olhar a Kal e Emanuela – Muito bem, vou começar explicando qual a responsabilidade de cada um no conselho. Marcos Herdam, Tesoureiro, encarregado de administrar os recursos oferecidos ao Conselho. Antonio Furtado, Inspetor, supervisiona o castelo regularmente, ninguém sabe o que esses alunos trazem de casa, não é? – comentou – Emanuela Goldemberg, que graciosa, – este último comentário não deixou Kal satisfeito – trabalha com a comunicação entre alunos e Conselho. Kalevi Foster, para nós, Foster, nosso Guardião-mirim dos terrenos de Avalon, ele deverá supervisionar as ações dos alunos e protegê-los, com a vida se preciso! Não se preocupe Foster, os últimos anos têm sido tranqüilos por aqui. Por fim, eu, presidente do Conselho Estudantil e representante dos alunos perante a direção.

- Bem, declaro encerrada a reunião. Voltemos as nossas atividades.

Aquele dia parecia o dia das maluquices e da pressa. Primeiro, Amadeus Wosky e sua aula de cinco minutos. Agora Rômulo e sua reunião de nem trinta segundos. Falta de compromisso e responsabilidade? Mas Kal não se importara. Na verdade agradeceu em silêncio, pois agora ficaria sozinho na sala do conselho.

Ele viu os quatro alunos desaparecerem pela porta e em seguida levantou-se para analisar a sala. Aproximou-se de um armário feito de madeira entalhada com detalhes florais e uma pequena maçaneta de vidro ou cristal. Ao tentar abri-la, para sua surpresa, viu que estava trancada.

- Opandor!

A pequena maçaneta estalou e assim o armário estava aberto, revelando seu conteúdo: alguns frascos vazios e instrumentos de mistura, colheres e conchas, alguns conta-gotas, etc. Nada daquilo pareceu despertar a atenção de Kal, que fechou o armário e partiu para o próximo.

- Opandor!

O armário de carvalho rangeu e revelou uma grande quantidade de livros, de diversas cores e tamanhos, um em especial lhe chamou a atenção, era grosso e tinha as páginas douradas, as letras do título eram de um azul vivo, que contrastava gravemente com a capa de couro verde. “O ataque da força mágica”. Sem outros pensamentos Kal passou a folhear o livro sentado em uma das poltronas macias da sala.

O livro contava histórias de vários bruxos e bruxas famosos que haviam conseguido grandes êxitos usando feitiços simples, como os que seriam ensinados naquele exemplar. Ele folheou o livro desesperadamente a procura de algo mais interessante do que relatos de experiências com vampiros, lobisomens e fantasmas encrenqueiros.

Depois de muito procurar, encontrou, quase pelo final do livro, um feitiço bem simples de ser reproduzido e de grande efeito, segundo a descrição.

O feitiço Farfalha libera da varinha de um bruxo, pequenos estilhaços que são capazes até mesmo, dependendo do bruxo, de rasgar a pele de um dragão...”

Após ler o trecho do livro em voz alta, Kal posicionou a varinha para uma das almofadas e disse em uma voz firme e decidida.

- Farfalha! – cinco ou seis pequenos pontos luminosos rasgaram o ar com um pequeno ruído e acertaram a almofada, que ao receber o golpe, ficou totalmente desmantelada. Plumas brancas voaram pelo quarto formando um grande tapete de penas.

Para sua surpresa, Rômulo estava parado na porta assistindo toda a cena. Kal esperava claramente uma repreensão, mas ao invés disto Rômulo lhe sorriu e disse.

- Se quer treinar feitiços como este, precisa antes aprender a arrumar a bagunça que eles causam. Balance a varinha e diga firme. Concertûnia! – a varinha de Rômulo agitou no ar e as plumas levitaram e aceleraram de volta aos buracos da almofada, que ao encher costurou seus rasgados instantaneamente.

- Desculpe... é... eu não tinha intenção...

- Não se preocupe, Foster, você só estava cumprindo seu papel de Guarda-mirim. Aprendeu um bom feitiço. Parabéns!

Kal não sabia se era a emoção do momento, a oportunidade de conhecer um mundo completamente novo, ou se era apenas um leve entusiasmo, mas ele sabia que estava gostando de tudo aquilo. Aprender novos feitiços sozinhos, usar um broche legal, ser respeitado pelos alunos e principalmente passar um tempo junto com Emanuela. O Conselho Estudantil estava se mostrando muito mais interessante do que ele imaginara.

Empolgado com a pesquisa, o garoto se afundou em outros livros, imitando uma ação que facilmente seria percebida em Daimon. Kal ficou ali lendo e relendo feitiços e conjurando alguns. Efeitos desastrosos estouraram pela sala e ele agradeceu a Rômulo pelo Concertûnia, pois cada cadeira quebrada ou livro rasgado lhe garantiriam uma boa detenção.

Exausto de tanta prática, ele permitiu-se um descanso em uma das almofadas de pena de ganso. Não se dando conta de quanto tempo ficou ali deitado Kal despertou ao ouvir a badalada do grande sino da torre a qual, um dia antes, Jonathan havia se jogado, particularmente, ele achava, ou melhor, tinha certeza, que Jonathan havia sido enfeitiçado por alguém, mas não sabia exatamente quem, pois jurava ter ouvido uma voz feminina persuadir o garoto segundos antes dele, supostamente, se jogar.

Antes de sair da sala, Kal conferiu se o corredor estava vazio, naturalmente sim, a sala do Conselho Estudantil ficava em uma parte isolada no sexto e último andar do castelo, era natural que não houvesse alunos passeando por ali todo instante.

Faltava apenas dez minutos para a aula de Biomagia, e Kal nem ao menos sabia onde ficava a sala de aula, sua maior esperança era encontrar algum aluno conhecido que pudesse lhe indicar o caminho. Perambulou pelo corredor do quinto andar, mas não encontrou nada, nem sala de aula ou aluno. Assim que iniciou a descida até o quarto andar ouviu a voz de seu irmão.

- Hei, Kal!

- Daimon! – saudou – O que você está fazendo aqui?

- Estou indo para a aula de Biomagia.

- Oh! Sério? Quero dizer, eu também estou indo para essa aula. Vamos!

- Ok! Devemos nos apressar, restam menos de cinco minutos para a aula e nós ainda temos que chegar ao terceiro andar.

- Claro, é... eu estava indo agora mesmo... – disfarçou.

- Por que você, Guine e Ralph ainda estão brigados? – perguntou Daimon enquanto caminhavam.

- Bem... eu não sei exatamente porque estamos brigados, mas...

- Eu sei, Kal!

- Sabe?

- Guine me contou tudo no café da manhã.

- Ah, ela contou.

- Por quê? Não deveria?

- Não, não, tudo bem. Eu só... – Kal parou por um momento e resolveu mudar de assunto – Recebi o livro!

- Que liv... ah, meu Deus! Você já recebeu o livro da Van Feo? Incrível!

- Incrível é o livro.

- Posso ler?

- Não.

- Kal? – Daimon pareceu assustado com a resposta do irmão – Não deveria ser tão egoísta, já que eu achei o livro.

- Eu sei, eu sei. Acontece que o livro não pode ser lido.

- E por quê?

- Porque ele não quer!

- Han?

- Aff... o livro não se deixa ser aberto.

- Posso vê-lo?

Os dois pararam. Já estavam no corredor do terceiro andar, Kal puxou da mochila o livro, o lado do rosto que se mantinha acordado estava ligeiramente mais calmo em relação à noite anterior. Daimon apossou-se do objeto e tentou abri-lo, não conseguindo, encostou a varinha no livro e quando ia dizer um feitiço, foi interrompido por Kal.

- Já tentei usar o Opandor.

Daimon apenas fitou o rosto de Kal com olhar um desgostoso e prosseguiu.

- Scringer Secret Schoupan!

O livro pareceu receber uma grande descarga de energia, voou da mão de Daimon e caiu em frente à porta da sala de Biomagia. Kal aproximou-se do livro, ainda fechado, e o recolheu dizendo.

- O que foi isso?

- Uma derivação super poderosa do Opandor. – respondeu Daimon.

- Onde você aprendeu?

- Na biblioteca. Bem, não teve efeito não é?

- Não. Tirso disse que este é um tipo de feitiço inquebrável. – ressaltou.

- Ah...

- Para dentro, os dois! – rugiu a professora Flora de dentro da sala de aula.

- Desculpe, professora. – disseram.

- Sentem-se e não atrapalhem mais minha aula!

Ela era uma mulher alta e magra, tinha os cabelos ondulados e levemente ruivos, uma boca extremamente desproporcional em relação aos seus enormes dentes. Usava um vestido longo rosa, de tecido fino. Também usava um belo echarpe vermelho sangue amarrado ao pescoço, uma sandália de couro também rosa e os dedos dourados pela grande quantidade de anéis.

- Meu nome é Flora, sou a professora de Biomagia, que como nome já diz, é o estudo da vida mágica. Acredito que todos vocês tenham comprado uma planta, certo? – perguntou ela inclinando-se para frente – Então, é hora de usá-las.

Flora agitou a varinha e o ar explodiu em uma nuvem de fumaça azul na frente de cada um dos alunos. Pequenos jarros surgiram na frente em suas mesas. A Fantara d’ouro de Ralph já exibia um pequeno broto que protuberava no caule, mas esta não foi a planta que mais chamou a atenção da professora Flora e dos demais alunos. A Herviana de Kal continuava soterrada, só que agora em um jarro bem maior, chegava a ocupar dois lugares na mesa. A professora se aproximou do garoto com um par de luvas de couro e disse:

- Acho que a professora Margarida já lhe advertiu, mas vou lhe dizer mesmo assim, plantas como a Herviana não gostam de muita luz, são plantas que exigem o máximo de cuidado quanto a isso. Elas também possuem um veneno poderosíssimo, portanto... – ela lhe entregou o par de luvas e apressadamente Kal a pôs – Você deve ter um bom motivo para ter escolhido esta planta, Foster, então deverá arcar com as conseqüências. Você fará todos os exercícios da aula, assim como os demais alunos. Alguns desses exercícios vão lhe exigir uma certa concentração e perspicácia, porque você não saberá o que está vendo ou fazendo, será como uma cirurgia no escuro. Contundo, quero que persista. Estamos combinados?

- Sim, professora. – respondeu ele agitando a cabeça de forma que ela entendesse que ele compreendera bem o recado.

A professora Flora lançou-lhe um pequeno sorriso e seguiu para o quadro negro.

As duas aulas de Biomagia voaram como mágica. Pequenos desastres aconteceram quando Jonathan tentou pegar um pouco de saliva da sua planta carnívora. Depois de engolir o pequeno frasco onde deveria ser despejada a saliva, a planta começou a sugar o braço do garoto. Ela foi acalmada quando Flora fincou sua própria varinha no vaso da planta e disse:

- Planta Exander!

Uma luz branca voou pelas imperfeições do vaso e a planta automaticamente murchou e soltou a mão de Jonathan.

- Se tivessem lido o livro Olho mágico, na página cinco, saberiam que o Exander é um feitiço paralisante e de grande utilidade em se tratando de criaturas mágicas. – ela disse com a cara amarrada.

Já no almoço, Kal estava isolado dos demais alunos de Tadewi, até que duas figuras inesperadamente sentaram ao lado dele.

- Inacreditável como Jonathan é azarado! – falou Guinevere posicionando-se ao lado direito do garoto e Ralph sentando-se do lado oposto – Quero dizer, primeiro uma queda de mais de seis andares e agora ele quase foi engolido pela própria planta!

- Não exagera, Guine! – falou Ralph.

- E você, Kal, o que acha? – finalmente depois de um dia inteiro de gelo Kal havia sido notado por Guinevere e Ralph. Poderia claramente ter ignorado a pergunta e continuado seu almoço, mas ele não estava disposto a continuar com esse clima de tensão. Engolindo um último pedaço de carne, disse:

- Não acho que tenha a ver com azar.

- Como assim? – perguntou Ralph de forma tão normal que parecia nunca terem discutido.

- Eu contei a vocês o que eu ouvi.

- Ah sim... – falou Guinevere desanimada. Mudando de assunto ela disse – Daimon nos contou sobre o livro.

- Ok. – Kal empurrou seu prato para frente e pôs o grosso livro prateado sobre a mesa.

- Daimon também deve ter lhes dito que ele não pode ser lido.

- Falou sim. – disse Guinevere – Você já conversou com Tirso, não é?

- Sim. – respondeu – Ele disse que isso é um feitiço inquebrável.

- Daimon disse que ele tentou abri-lo com a varinha...

- Isso para mim é impossível, Ralph. – respondeu Kal

- O quê? Abri-lo por magia? – perguntou.

- Sim. Tirso falou que eu preciso ser amigo do livro.

- Oh, certo. E como se faz isso? – perguntou Guinevere erguendo as sobrancelhas.

- Eu não sei, mas vou tentar agradá-lo. – disse Kal dando de ombros.

- Talvez um banho! – sugeriu Ralph.

- Banho Ralph? É um livro! – falou Guinevere em desânimo.

- Eu sei. Eu quis dizer um banho de perfume, sei lá...

- Han? – exclamaram Kal e Guinevere quase que ao mesmo tempo.

- Mamãe usa sempre para espantar pragas domésticas.

- Meu livro não é uma praga, e muito menos eu quero me livrar dele.- falou Kal.

- Eu sei, eu sei. Eu vou explicar. É um feitiço que emana uma fumaça cheirosa. Vejam!

- Ah, meu Deus... – falou Kal quase prevendo o que estava para acontecer.

- Fétida! – Ralph apontou a varinha para o livro e uma fumaça marrom saiu da ponta e um forte cheiro de enxofre invadiu metade do salão fazendo com que alguns alunos fossem obrigados a se levantar de suas mesas para se afastar do centro daquele mau cheiro.

Kal puxou Guine e Ralph para fora da nuvem de fumaça marrom fedorenta que havia se formado em volta de toda mesa de Tadewi.

- Faz isso parar! – berrou Guinevere.

- Ok, espera só um pouco... han, como era... – falou Ralph apressadamente olhando para cima agitando uma das mãos em desespero – Oh, certo, é isso mesmo. Lócus Amenus!

Subitamente a varinha de Ralph parou de emanar a fumaça, mas os efeitos ainda podiam ser visto por todo o salão.

- Cinco alunos desmaiados, senhor Scheiffer. – disse Tirso com furor depois que a confusão se encerrara e guiou os três até o salão de Tadewi, no quinto andar – E eu pensei ter lhe dito, Kal, que o livro não poderia ser aberto com magia! Os três ganharam uma detenção sábado de manhã em minha sala às nove horas!

- Professor... – balbuciou Ralph.

- Sim, senhor Scheiffer, deseja fazer algo mais estúpido antes? – falou Tirso mantendo o tom de seriedade em sua voz.

- Eu fiz sozinho... a idéia do feitiço foi minha, só minha

- Entendo. Você está assumindo a culpa sozinho. Então acho que Kal e a senhorita Lingenstain não terão detenção. Bem, isso significa trabalho extra para você, senhor Scheiffer. Espero vê-lo no sábado às nove horas, teremos muitas caixas para arrumar.

Dito isto, Tirso saiu pela passagem que ligava o salão de Tadewi ao corredor do penúltimo andar. Assim que a passagem se fechou, Kal disse:

- E o livro permaneceu intacto.

- Han? – espantou-se Guinevere.

- Vocês ouviram Tirso, cinco alunos desmaiados. E o livro nem ao menos pegou o cheiro do feitiço. – finalizou encostando o nariz no livro.

- Humpft... Duas aulas de poções e mais duas de Cleri-qualquer coisa. – desanimou Ralph jogando-se em uma poltrona.

- Clerigologia! – corrigiu Guinevere.

- Serve também...

- Vamos descer. – chamou Kal.

Os três passaram pelas duas estátuas e se apressaram, pois a sala de poções ficava no primeiro andar, segundo informações dadas por outros alunos.

Mesmo já estando no primeiro andar os três ainda pareciam perdidos, rondaram o saguão de entrada olhando sala por sala até que finalmente encontraram a aluna Representante de Tadewi, Tâmisa. Ela estava caminhando no estreito corredor esquerdo do primeiro andar quando os garotos a pararam.

- Tâmisa, onde fica a sala de poções?

A garota pareceu levemente assustada ao vê-los, percebia-se nela um ar gelado, e algumas gotas de suor corriam-lhe pela testa.

- Ali. Final deste corredor. – respondeu a garota apressadamente. Na tentativa de avançar até o salão principal, Tâmisa deixou cair alguns frascos cheios de um líquido amarelo e viscoso. Ela soltou um pequeno “ah” quando os potes quebraram. O mesmo forte cheiro do feitiço de Ralph infestou o estreito corredor emanado pelo líquido caído ao chão. Prontamente Kal disse:

- Concertûnia! – apontando a varinha para o líquido e os cacos de vidro espalhados pelo chão, Kal criou um efeito interessante de se observar. Vidro e líquido se ergueram e reconstituíram os três potes que haviam caído.

- Obrigada! – disse Tâmisa recolhendo os frascos do chão e se apressando para fora do corredor.

- Vamos também! – exclamou Guinevere.

Quando chegaram na grande sala de poções o professor preparava-se para discursar.

- Entrem. – chamou ele.

Kal, Ralph e Guinevere correram para três cadeiras vazias no meio da sala e juntaram-nas.

- Pronto? – perguntou o professor de poções – É sempre uma grande honra ensinar a jovens mentes. Eu já vi entrar por aquela mesma porta – disse ele apontando para a porta da entrada da sala, e todos acompanharam seu gordo e torto dedo indicador – grandes mentes, eu vi a determinação, a força de vontade e sim eu vi, com certeza vi, o desespero. Agora vocês perguntam, “uma mente desesperada pode ser brilhante?”. Eu respondo que sim. Querem um exemplo. Senhor Freman, diga-nos quando foi que apresentou algum tipo de talento mágico. – falou o professor novamente apontando, só que agora para um garoto gordo e loiro, aluno de Tadewi. Este o respondeu:

- Quando tinha quatro anos e fui atacado por um Ogro, acho que era do tipo Neandertal, não me lembro. Sei que o transformei em um coelho.

- Genial e brilhante! – exclamou o professor balançando sua grande barriga, os cabelos lisos e castanhos muito bem divididos também balançaram com o pequeno giro – Alguém mais quer compartilhar uma experiência? Você! – apontou seu dedo gordo para Kal.

- É... eu não... eu não sei como explicar professor. – respondeu timidamente.

- Ah claro. Alguns sempre se esquecem...

A resposta de Kal não agradou muito ao professor, porque este mudou repentinamente sua expressão, de euforia à incredibilidade. Mas Kal havia sido sincero em sua resposta. Ele de fato não sabia como se tornara bruxo. Ele nasceu completamente sem dons mágicos e da noite para o dia estava fazendo pratos voarem como discos voadores e copos rangerem.

Os demais alunos abaixavam a cabeça disfarçando e fugindo do dedo gordo do professor. Ao que parecia, mais ninguém tivera uma experiência como Freman.

- Falando de esquecimento. – retomou ele – Que cabeça a minha, sempre fico empolgado com novos alunos. – comentou – Mas bem, acho que ainda não me apresentei. Eu sou o professor Paulo Pote! – disse enfático – e antes que eu me empolgue novamente, vamos abrir o livro Poções potificantes, de minha autoria. Bem, de qualquer modo abram-no na página dez, oh não. Não, não, não, definitivamente não... A página dez é onde eu coloquei o meu artigo sobre poções do amor, podem lê-lo depois, muito interessante. A página certa é a quinze. – corrigiu-se depois de uma boa folheada no livro – Aqui! A poção Mekeivan. Alguém sabe me dizer para que serve?

Alguns alunos ergueram o braço no ar, e só agora Kal havia reparado nos alunos de Katzin, sentados no sentido oposto ao dele, Guinevere e Ralph.

- Oh! Srta. Goldemberg, por gentileza. – Pote parecia conhecer muito bem seus novos alunos, por que assim que Emanuela errou em sua resposta, dizendo que a poção Mekeivan fazia crescer cabelos na sola dos pés, ele imediatamente apontou para uma aluna de Tadewi chamada Samara Bringer, uma garota morena e de cabelos volumosos e cacheados. Ela respondeu corretamente que a poção Mekeivan era um calmante para criaturas transmórficas, ou seja, criaturas com poderes de se transformar, e que ainda poderia ser usada para impedir ou desfazer tal transformação, como vampiros e lobisomens. Alguns alunos de Katzin fizeram “uhs” em protesto quando o professor parabenizou a aluna.

- Alguém quer fazer uma observação?

A mão de Kal ergueu-se solitariamente, todos olharam curiosos para ele. Pote pareceu ligeiramente espantado, mas Kal não entendeu aquela atitude, afinal o professor havia feito a pergunta. Segundos antes de responder, ao gesto do dedo indicador do professor, Kal percebeu que não havia sido feita uma pergunta, e sim uma confirmação para saber se todos haviam entendido.

- Ah, desculpe professor, mas não acho que em um encontro com um vampiro sanguinário ele vá esperar você preparar uma poção. – disse Kal lembrando-se de Thom e como ele ficara violento e intolerante depois que se transformou - Quero dizer, você simplesmente diz “aguarde um momento, senhor vampiro”? e se fosse o caso de já ter a poção devemos dizer “beba isto por favor”?

- Muito astuto de sua parte senhor Foster. Interessante ponto de vista. No entanto se o senhor desconsidera o uso da poção, o que sugere?

- Formanômago. – apressou-se em responder.

- Excelente! Muito bem lembrado. – disse ele caminhando diante dos alunos com as palmas juntas e brincando com os próprios dedos. – Para os que não conhecem, Formanômago é um feitiço muito simples e eficiente, capaz de reverter a transformação de certas criaturas mágicas, como um vampiro, mas não é eficaz contra lobisomens. Em contra partida, ele não é capaz de bloquear, previamente, a transformação. A poção Mekeivan, se ingerida por um vampiro ou outra criatura que sofra alguma transformação, como lobisomens, tem seus poderes anulados. E se for ingerida em grande quantidade pode custar-lhes a vida. Ou seria a morte? – refletiu o professor quanto aos vampiros – Entende agora senhor Foster?

Kal balançou a cabeça positivamente e desceu os olhos até o livro Poções Potificantes e admirou as figuras dispersas da página quinze. Cinco cabeças de alho e algumas folhas de mandrágora, um tipo de pólen roxo e algo que lembrava vagamente a raiz de alguma outra planta. Abaixo do desenho um caldeirão com a inscrição prata, acompanhado de uma colher de madeira.

- Procurem os ingredientes da poção nos armários e misturem em seus caldeirões. – falou o professor apontando para um armário no canto da sala.

- Professor, não temos os caldeirões de prata. – informou Ralph que em seguida foi apoiado pelos demais alunos.

- Sem problemas. – respondeu o professor agitando a mão no ar e repousando em sua enorme barriga. – Podem pegá-los naquele outro armário. – falou mais uma vez apontando para um segundo armário do lado oposto ao primeiro.

- Está trancado. – falou uma voz a qual Kal não soubera reconhecer.

- Não é possível! – resmungou Pote aproximando-se do armário – Opandor! – a pequena fechadura de metal rangeu, porém não pareceu abrir.

- Pode estar com alguma senha. – falou Samara lembrando-se da aula de feitiços.

- Duvido muito, duvido muito... – retorquiu o professor – Algum de vocês quer tentar? – perguntou indicando a maçaneta.

- Professor! – chamou Kal.

O garoto puxou a varinha de dentro das vestes, apontou para o armário e lembrando das palavras exatas de Daimon disse:

- Scringer Secret Schoupan!

Assim como havia acontecido com o livro, o armário pareceu receber uma descarga elétrica e balançou. Por fim a fechadura estalou e as duas portas de madeira despencaram no chão soltas de suas dobradiças.

- Drástico, mas eficaz... – falou o professor.

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