domingo, 18 de novembro de 2007

Capítulo 10 - Sedructos

No café da manhã daquele sábado, os alunos estavam agitados. Boa parte deles acordou quase que de madrugada a fim de chegar mais cedo ao local dos testes. Os alunos de Angus iriam competir entre si nos jardins do castelo, Kal e os demais alunos de Tadewi iriam para uma arena montada na orla da floresta, mas ninguém sabia ao certo onde seriam os testes de Katzin, apenas sabiam que seria aplicado naquele mesmo dia pelo professor de Maldições, Amadeus Wosky.

Ralph e Daimon despediram-se de Kal e Guine nos terrenos baixos de Avalon, Daimon subiria para os testes com a professora Cristina e Ralph preparava-se para a detenção na sala de feitiços, que seria cumprida com a Srta. Scringer, pois Tirso aplicaria os testes para a equipe de Tadewi.

Guinevere seguiu até as arquibancadas de madeira, onde se sentou ao lado de outras meninas. No vestiário cor azul e laranja, Kal aproximou-se de um grupo de garotos e garotas, mais ou menos cinqüenta. Conseguindo um lugar na frente ele viu um macaco de uns sessenta centímetros, pelo negro e um pouco alaranjado com uma longa cauda cinzenta, que, para sua surpresa era o mesmo o qual Rick havia utilizado a maldição Dunkel, em seu primeiro dia na Cidade dos Elfos. E para surpresa ainda maior do garoto, o macaco transformou-se no professor Tirso. Kal esfregou os olhos, mas estava certo do que vira.

- Bom dia alunos! – saudou o professor com sua costumeira alegria. – Estou certo de que estão todos presentes. Muito bem. Gostaria de pedir que viesse à frente o único jogador já oficializado, Raiam.

Um garoto alto e magro separou-se dos demais alunos e posicionou-se ao lado do professor.

- Meninos e meninas, este é o novo capitão da equipe de Tadewi, Raiam Devine. – Ele era um garoto sem grande porte físico, pescoço longo e fino, maxilar arredondado, a cabeça levemente achatada e os cabelos compridos e ruivos. Tinha uma pele fina e os olhos castanhos – Raiam é o desafiante de Tadewi há dois anos, e agora o único membro que restou da equipe do ano passado. Para quem ainda não conhece o Quizard vou fazer uma breve explicação. Sete jogadores competem em uma floresta repleta de armadilhas. O objetivo de cada equipe é levar seu desafiante até a sala que fica no coração da floresta. É claro que além das armadilhas, vocês terão que enfrentar a equipe adversária. No ano passado Katzin deu uma lavada em nós na final, mas isto não vai se repetir, tenho certeza. – Tirso correu um olhar pelos alunos quase que dizendo “Se vocês perderem, vão ter se entender comigo” – Muito bem, sem enrolação. Quero que apenas me acompanhem os que se inscreveram para armadores e é claro, Raiam. Vamos?

Kal olhou para a sua inscrição e viu que ele disputaria a posição de desafiante reserva, então se sentou para esperar até ser chamado.

Dez alunos acompanharam, Tirso e Raiam para fora do vestiário. Kal olhou ao redor, mas não foi capaz de encontrar um rosto familiar, aparentemente os alunos primeiranistas ficaram assustados com o comentário de Pote no dia anterior, e certamente ele próprio não estaria ali, naquele vestiário de paredes azuis e laranja, se Guine não o tivesse inscrito.

Todos no vestiário sentaram-se a espera de outro chamado, o que não demorou mais do que meia hora. Tirso colocou a cabeça na porta e convocou os inscritos para a posição de escudeiros, quinze alunos levantaram-se e saíram em fila.

Depois de outra metade de hora Tirso reapareceu e outros dez alunos saíram do cômodo prontos para a prova que escolheria os dois clérigos da equipe de Quizard.

Kal não sabia quais eram as provas pelas quais os alunos estavam enfrentando, e no momento, preocupar-se com as provas que os outros alunos estariam enfrentando era a última coisa lhe interessava. A qualquer momento Tirso iria aparecer para o último teste, o de desafiante reserva.

Dos quinze alunos restantes Kal tinha certeza de que eram alunos avançados. Nenhum devia ser do primeiro ou segundo ano. No café da manhã Kal ouviu comentários de que alunos do primeiro ano foram parar no Hospital Nautilos devido os ferimentos que sofreram na prova de seleção do ano anterior.

Ficar ali sentado encarando seus oponentes não era a melhor coisa a se fazer em um sábado pela manhã, pior ainda foi ouvir o ranger da porta se abrindo e Tirso enfiando apenas sua cabeça, como se esta não estivesse ligada ao corpo, para chamar os alunos, e sem colocar pressão nenhuma dizendo que metade da escola e alguns habitantes de Cidade dos Elfos estavam nas arquibancadas. Todo este coquetel de nervosismo fez despertar em Kal uma ponta de inveja de Ralph, que a esta hora estaria muito bem seguro em Avalon, onde seu maior risco era de encontrar uma pequena aranha numa das caixas velhas da sala de Feitiços.

Ao saírem do vestiário eles ouviram o furor da platéia, toda a equipe de Tadewi estava presente, além do Conselho Estudantil e boa parte dos habitantes, aos sábados apenas alguns Pubs ficavam abertos para os estudantes se divertirem.

Assim que avistou Kal, Rômulo apressou-se em enfeitiçar um pedaço de papel que voou na direção do garoto. Sem que mais alguém percebesse, desdobrou-o e leu a única palavra escrita, Réplica. Amassou o papel e colocou-o no bolso.

Tirso segurou sua própria varinha como quem segura um microfone e disse:

- Alunos de Tadewi, depois de três provas e alguns feridos, a equipe do nosso grupo já está formada! No entanto, precisamos escolher o desafiante reserva, para pequenos casos de emergência! Para isso estes valentes alunos estão aqui na nossa frente! – a voz do professor soou de forma suave e calma. – Como o nosso capitão, Raiam, ocupa a posição de desafiante titular, nossa equipe está apta a competir em igual com qualquer uma das outras. Mas repito, precisamos de um reserva, para o caso de algum infeliz acidente com o nosso titular, pois o desafiante é o passaporte para uma competição. Sem ele não há equipe. Que se iniciem os testes!

Instantaneamente, Tirso transformou-se em fumaça e desapareceu, surgindo logo em seguida em uma torre de madeira acima da platéia.

- Os competidores devem atravessar o campo cheio de armadilhas até chegarem à Sala das Diferenças. O primeiro a chegar será o vencedor.

No primeiro minuto todos correram para a floresta “montada” nos jardins de Avalon e um silêncio enorme seguiu-se em diante. Kal não sabia para onde ir, sentia-se encurralado. Olhou para os lados, mas não viu nenhum competidor, pensou em subir numa árvore, mas depois achou que ali seria um alvo fácil. Seu estômago embrulhou com o grito da torcida. Uma garota chamada Luana Siamês tinha um fã clube ao seu lado. Vários alunos ergueram cartazes com seu nome e outros tantos alunos erguiam as varinhas para dispararem fogos de artifício que no final da explosão formavam o nome “Lusi, estamos com você”.

Kal permaneceu entretido com aquele show pirotécnico, em dado momento até mesmo esperou que seu nome também fosse conjurado no ar, mas sabia que era impossível. Aquela façanha era de alunos do terceiro, quarto ou quinto ano, e não para seus amigos primeiranistas.

Recobrando os sentidos, Kal desviou de um feixe de luz laranja disparado da esquerda que derrubou de uma árvore um aluno, que ali se escondera.

- Oh não! Parece que Djoni está fora! – narrou Tirso.

Kal ficou contente em saber que se fosse derrotado não seria mais o primeiro, pois se isto acontecesse ele tinha quase certeza de que não seria mais tão respeitado como Guardião-mirim.

Zump!

Outro feitiço cortou o ar e pelo barulho que se seguira depois, outro aluno tinha sido atingido. Kal permanecera parado desde o início do teste, atentou-se para o fato de que ele poderia ser o próximo assim que um raio lambeu sua orelha direita e acertou um galho à frente, fazendo-o em vários pedaços.

- Essa galera não está de brincadeira. – comentou Tirso orgulhoso.

- Então você é o pequeno Foster? – falou um garoto alto e robusto que pulara de cima de uma árvore, o qual Kal não tinha visto – Só porque é um Foster não significa que é melhor do que eu.

- Nunca disse isso. – respondeu Kal.

- Lamento por você, Foster, mas sua aventura termina aqui! – o garoto brandiu a varinha – Até logo! Farfalha!

Kal tateou atrás de sua varinha e sentiu o papel amassado em seu bolso.

- Réplica! – uma barreira verde se formou em sua frente e o protegeu do feitiço, mandando-o de volta para o seu dono.

- Que defesa incrível! – berrou mais uma vez Tirso

- É por isso que ele é guardião! – Kal viu uma garota ruiva, que ele não tinha a menor idéia de quem era, gritar a plenos pulmões para toda a platéia.

- E Jean está fora da competição! – prosseguiu Tirso com um risinho.

Kal lembrou-se do Réplica, Rick usara contra ele quando se conheceram. Procurou Rômulo pela arquibancada para agradecê-lo, mas ele havia sumido.

Jean ficou estirado no chão até que fosse sugado pela terra, como se tivesse em areia movediça.

- Dos quinze alunos que entraram, apenas sete permanecem no páreo. Quanto tempo mais iremos esperar para saber quem é o nosso desafiante reserva?

Enquanto Tirso falava, vários raios e lampejos cortavam o campo da partida e mais alunos saiam derrotados.

Kal resolver adotar a estratégia do não-combate, já dera sorte demais sobrevivendo até aquele momento. Resolveu procurar pela Sala das Diferenças por um caminho onde não pudesse encontrar nenhum outro competidor. Sempre que via raios e luzes faiscantes pelo caminho, ele tomava o sentido contrário. Por vezes utilizou o Captus para ouvir o que estava acontecendo ao seu redor. Resolveu abandonar este feitiço depois de ouvir cinco gritos agonizantes e várias gargalhadas vitoriosas.

Sem qualquer aviso, uma garota pulou de uma clareira e passou por ele mais rápido do que um feitiço. Olhando de um lado para o outro, a procura da tal garota, seu coração acelerou de tamanho modo que ele achou que poderia parar a qualquer momento.

Assim que ouviu um grito, Kal virou-se na direção de onde viera e ergueu a varinha com a língua a meio caminho de um feitiço. Espantou-se quando outro garoto pulou da mesma clareira aos berros seguindo uma direção qualquer.

- Parece que nossos competidores estão com enormes problemas. – narrou Tirso.

Nas arquibancadas via-se as pequenas e curiosas cabeças olhando para o campo a procura de qualquer coisa que esclarecesse enormes problemas.

Kal não sabia se deveria correr ou permanecer naquele ponto. Suas opções não eram boas. Se corresse tinha certeza que seria apanhado por outro competidor qualquer, mas se permanecesse ali estaria correndo o risco de ser encontrado pelo enorme problema a qual Tirso se referira.

Sem saber se pelo medo, pavor, ou pela simples escolha, Kal permaneceu parado com a varinha ainda erguida e decidido a atacar o primeiro que pulasse em sua frente.

Quando percebeu um movimento a sua frente disparou vários feitiços ao mesmo tempo.

- Farfalha! Escaparta! Amstãnder! Farfalha!

A pequena moita fora completamente destruída, mas o que ela protegia, não.

Ele ouviu uma explosão em algum lugar longe de onde estava e Tirso confirmou com sua narração o que ele suspeitara, outro aluno fora da competição.

Kal ouviu novos passos em sua direção, olhou para os lados a procura de um bom esconderijo. Guardando a varinha nas vestes ele saltou para cima de uma árvore e se escondeu entre os galhos de forma que pudesse ver o que acontecia lá embaixo.

Um rapaz alto, robusto, de cabelos castanhos divididos ao meio, trajando uma veste negra e comprida rastreou o lugar com a varinha erguida e olhou compenetradamente para o esconderijo de Kal.

- Você é o Foster não é? – disse ele sorrindo – Levitoriano! – com extrema facilidade ele arrancou Kal de entre os galhos com o feitiço e largou-o a uns três metros do chão.

- Quem é você? – perguntou se levantando e posicionando a varinha em ataque.

- Eu sou o Escritor da Terra.

- Escritor? Da Terra? – duvidou Kal.

- Deixe-me apresentá-lo a minha varinha. Escaparta!

- Réplica!

A barreira verde não foi o suficiente para protegê-lo totalmente. Kal foi arremessado, mas logo se levantou.

- Simpática sua varinha, não? – disse levantando-se mais uma vez.

- A sua também não é nada mau. Carvalho, vinte e cinco centímetros, pelo de unicórnio.

- Farfalha!

­Escritor da Terra apenas brandiu a varinha no ar para que o feitiço fosse desviado.

- Belo broche. – disse ele apontando para o pequeno distintivo do Conselho Estudantil. – Este cargo foi meu no ano passado.

- Escritor da... E.T. – concluiu Kal.

- Haha. Não deboche do meu nome Kalevi Foster! Escritor da Terra é apenas um nome mágico.

- Como assim?

- Ora, você não acha que os grandes bruxos nasceram com esses nomes legais, acha? Você sabia que Merlin se chamava Emrys?

- Ok. Mas o que você está fazendo aqui?

- Bem, acontece que quando há uma prova para desafiante, o melhor aluno do ano anterior vem aquecer a competição.

- Hum...

- Agora que já batemos um papinho, se não se importa, eu tenho que tirar todo mundo do campo.

- Tente passar por mim então.

- Oia! – exclamou ele num tom caipira – Garoto de coragem. Tudo bem então, comece.

- Mórfinus!

- Ah Kal... que decepção... – disse o outro ao esquivar-se facilmente. – vou deixá-lo imobilizado, assim você vai poder ficar um pouco mais no campo.

Escritor da Terra atirou um raio branco na direção de Kal, que foi atingido antes de fazer qualquer movimento. Ele sentiu o sangue congelar em suas veias, os ossos pesarem como se fossem feitos de chumbo, seus músculos enrijeceram de tal modo que era impossível contraí-los. Estava petrificado.

- Eu vou dar uma sondada por aí e já volto. Você tem sorte sabia, me simpatizei com você. Até mais.

Ficar imóvel não era uma situação confortável, principalmente quando se está em uma arena de batalha. Depois de permanecer ali sem qualquer sinal de Escritor, ou de qualquer outro oponente, Kal ouviu um ruído de galho quebrando e a garota que ele havia visto anteriormente surgiu entre as árvores. Somente agora Kal conseguira observá-la direito. Ela devia ter seus quinze anos, era alta, um corpo bem atlético, cabelos longos e vermelhos, nariz fino e olhos bem verdes, combinando com sua calça e sua blusa azul celeste.

- Ele é forte. – disse a garota dobrando o corpo para apoiar-se nos joelhos enquanto arfava – te petrificou... seu eu te ajudar, nós dois podemos vencê-lo. Lócus Amenus!

- Obrigado. – agradeceu Kal respirando profundamente – Eu tenho um plano.

Seguindo o plano, a garota escondeu-se por trás de uma moita enquanto Kal permaneceu na sua posição de estátua. Era bem arriscado, para os dois. Escritor da Terra poderia surgir por trás dela sem que ao menos percebesse, ou talvez notasse que Kal não estava petrificado. De qualquer forma, era um plano, e o único que eles tinham.

- Olá, você continua aí. Uma garota fugiu, que pena... Mas vou me despedir de você primeiro.

- Escaparta!

Num movimento rápido de varinha Kal golpeou o rival no peito. Sem qualquer defesa ele cambaleou para trás e foi novamente atingido, mas pela garota.

- Mórfinus!

- Ouououou! – berrou Tirso – Parece que temos uma aliança! Kalevi Foster e Luana Siamês uniram forças contra o nosso convidado. Restam apenas os dois no campo. Será que eles vão duelar?

Os dois estavam olhando para Tirso no alto da torre, entreolharam-se sem saber o que fazer, então Kal disse:

- E então? Como decidiremos isto, Luana?

- Vamos apostar corrida.

- Han?

- Em algum lugar do campo está a Sala das Diferenças. E é para lá que vamos correr, cada um pelo seu caminho.

- Tudo bem. Quem chegar primeiro vence, então. Só uma coisa. – disse Kal com um sorriso maldoso – Mórfinus! – ele disparou o feitiço que passou pela garota e acertou o Escritor da Terra, novamente – só para garantir.

- E começa a nossa final! Kalevi Foster após utilizar um último feitiço no já imobilizado Escritor da Terra dispara numa corrida de tirar o fôlego. Parece que o nosso primeiranista está com vontade de vencer! – narrou a voz de Tirso.

E era verdade, Kal corria feito um louco quebrando obstáculos e saltando sobre eles. Um sentimento alegre e entusiasmático invadiu-lhe todo o corpo dando forças e um poder que ele não imaginava ter.

- Eu vou vencer! Eu vou vencer!

Se olhasse para cima Kal certamente veria a imagem de Luana desenhada no céu com os fogos de artifício, parecia que a platéia tinha se dividido ao meio. Os que não gritavam o nome de Luana, gritavam freneticamente por Foster. E só agora ele vira que alguns alunos mais velhos também estavam ao seu lado conjurando seu sobrenome para que todos pudessem vê-lo.

- Parece que Kalevi Foster está se aproximando e não há qualquer sinal de Luana. – berrou Tirso para delírio dos que o apoiavam.

- Estou vendo! Lá está!

A Sala das Diferenças estava a poucos metros de distância. Bastava apenas algumas passadas largas para alcançar o arco feito de folhas.

Atravessando o arco, Kal chegou a um espaço de pouco mais de duzentos metros quadrados com chão de pedra e algumas poucas árvores com caules antigos. Próximo de um deles, Kal avistou dois outros garotos que aparentavam ter a idade de Raiam.

- Quem são? - indagou – O que fazem aqui?

- Eu vou te vencer a qualquer custo, Satler! – falou um deles não percebendo que Kal estava a observá-los – Sedructos!

Um som mortífero se propagou pela sala acompanhado de uma luz negra esverdeada que ofuscou a visão de Kal. Instantes depois ele foi desperto pela gritaria da multidão nas arquibancadas.

- É Kalevi Foster! – berrou ensurdecedoramente Tirso – Kalevi Foster é o desafiante reserva da equipe de Tadewi.

Esfregando os olhos com as costas da mão, ele procurou pelos dois garotos, mas não estavam mais lá.

Guinevere e Daimon vieram em sua direção acompanhados de outros alunos de Tadewi. Vinham gritando e agitando bandeiras laranjas. Junto deles estava outro bruxo, Escritor da Terra, já recuperado.

- Parabéns, Foster. Foi merecido, aquele Escaparta foi decisivo.

- Obrigado.

- Não é nada.

- Como você está, Foster? – perguntou o capitão da equipe.

- Feliz, Raiam, obrigado. – disse ele virando-se para o colega.

- Ótimo! Teremos a partida inicial daqui dois meses, mas não se preocupe, por enquanto você só compete se eu não puder competir. Meus parabéns novamente.

Depois de ser cumprimentado por todos os alunos, inclusive Luana, Kal procurou o professor Tirso, já que ninguém mais pode lhe dizer quem eram os dois garotos, nem mesmo Guinevere, que disse que aquilo era cansaço e pura emoção misturada. Para sua sorte, o professor aproximou-se dele com um enorme sorriso de parabéns.

- Foi uma boa prova, Kal.

- Tirso, quem eram os dois garotos na Sala das Diferenças?

- Como assim garotos?

- Quando eu entrei lá, eu os vi. Pareciam estar duelando. Nenhum deles se incomodou comigo, então um deles conjurou um feitiço de luz negra, talvez, um negro esverdeado... O nome de um dos garotos era Satler.

- Satler, você disse?

- Sim. Algum problema?

- Talvez. Vamos até o professor Cacius, depois você comemora.

Conduzido pelo professor de feitiços Kal atravessou a multidão aglomerada a sua volta a juntos atravessaram os terrenos a passos largos, após três longos minutos de uma caminhada silenciosa, eles alcançaram o castelo e seguiram pelas escadas vazias até o quinto andar, onde por trás das asas de um dragão estava a passagem para a sala do diretor.

- Macieira! - falou Tirso ao dragão de mármore e este abriu suas asas cruzadas revelando a entrada circular.

- Bom dia, Prof. Cacius.

- Bom dia, Prof. Tirso. O que o traz ao meu escritório em um dia de festa como hoje? – perguntou Cacius não parecendo muito interessado em uma resposta, pois já parecia saber do que se tratava.

- Parece que Kal teve, hum, não sei explicar... uma visão.

- Ah sim. E o que exatamente o senhor Foster viu? – perguntou bondosamente Cacius com a mão erguida e a boca entreaberta.

- Eu vi dois garotos duelando. Um deles conjurou um feitiço de luz negra. – Cacius ergueu levemente as sobrancelhas e passou seu olhar para Tirso que permanecia ao lado de Kal.

- E qual era mesmo o feitiço? – indagou novamente o diretor.

- Ah bem... não sei, não pude ouvir direito... – mentiu Kal, mesmo sem saber porque e Cacius lhe olhou curiosamente.

- Conte a ele o nome de um dos garotos – disse Tirso cutucando-o pelo ombro.

- Ah sim! Eu ouvi o nome Satler...

- Você disse Satler? – indagou Cacius no mesmo tom estupefato de Tirso.

- Sim, professor. Satler foi o nome que eu ouvi.

- Professor Tirso, poderia nos dar licença? Parece que o senhor Foster e eu precisamos ter uma breve conversa.

- Claro, professor Cacius, certamente.

Kal viu Tirso desaparecer por trás das asas do dragão, a testa suada e o andar cansado seguirem pelo corredor.

- Muito bem, senhor Foster.

- Kal, profes...

- Como desejar. – respondeu ele em um sorriso muito agradável, como os que Adonis lhe lançava quando ficava muito contente com alguma coisa.

- Não é a primeira vez este ano que você entra em minha sala. Na outra ocasião? Não me lembro mais...

- Eu desmaiei.

- Sim, claro. Não posso mais contar com a minha memória... Por sorte, os objetos e os lugares têm uma memória incrível, sabia!

- Coisas têm memórias?

- Certamente. É claro que elas guardam apenas memórias que seriam inesquecíveis, até mesmo para uma cabeça velha e cansada como a minha...

- Professor, desculpe, entendo o que isso...

- Acalme-se, aproxime-se até aqui.

Cacius então se aproximou do grande quadro pintado a óleo de Merlin.

- Creio que já comentei sobre este quadro. – o quadro mostrava Merlin, um dos maiores bruxos que já existiu, sentado à sombra de uma macieira. A árvore representada no desenho possuía apenas uma reluzente e vermelha maçã. – quando lhe disse que Merlin estava inquieto você me respondeu que o motivo seria Kricolas, bem, você acertou. Mas agora olhe para este quadro com admiração. Observe seus detalhes sem se importar com a expressão angustiada de Merlin.

Kal não estava entendendo a que ponto Cacius esperava chegar, no entanto passou a admirar a gravura. Merlin franzia o cenho e se lamentava com as mãos, o céu azul então foi enegrecendo com o cair da noite, e voltou a clarear assim que o sol nasceu, fez isso repetidas vezes enquanto Kal o observava, ele parecia indicar a passagem de tempo.

Na árvore, a maçã havia mudado de galho várias vezes e Merlin passou a encarar Kal com um vasto sorriso e pareceu mexer os lábios e dizer:

- O saber pode ser perigoso, mas também é a porta para a mudança.

As palavras começaram a ecoar em sua mente e ele passou a desperceber os sentidos. Por um breve momento, sentiu-se dentro do quadro, naquele mesmo cenário, respirando o mesmo ar que Merlin, que permanecia sentado ao pé da árvore, Kal olhou para os lados, mas sua visão estava limitada pela moldura, então ele olhou para frente viu Cacius e ele mesmo admirando o quadro. Kal balançou a cabeça confuso quando a mesma frase se repetiu em sua cabeça – O saber pode ser perigoso, mas também é a porta para a mudança.

- O que disse, professor? – falou retomando a consciência de que estava encarando um quadro antigo ao lado do diretor de sua escola.

- Eu? Eu não disse nada.

- Disse sim. Disse, “O saber pode ser perigoso, mas também é a porta para a mudança”.

- Oh, esta frase não é propriamente minha, Kal. Há mil anos, Merlin proferiu esta mesma frase que você acabou de ouvir. E este é o momento retratado no quadro.

- Quer dizer que eu tive acesso à memória do quadro? É isto professor?

- Mais do ainda. É como se você estivesse lá. Existem bruxos e bruxas, e como existem, que são capazes de prever o futuro. Eles podem prever quando vai chover ou quando vai fazer sol, quando vamos conhecer uma pessoa ou quando morreremos, mas as ações humanas são sempre imprevisíveis, somos cheios de amor, ódio, arrependimentos... o que torna o dom dos chamados videntes algo obsoleto. O simples fato de se conhecer um resultado futuro faz com que mudemos nosso presente para impedi-los, então, a profecia que havia sido feita não se cumpre.

Kal fez menção em falar, mas foi interrompido por Cacius.

- Hoje você provou não possuir este dom. Sabe por quê? Porque você viu algo muito mais fantástico. Enquanto muitos podem enxergar, neblinadamente, um possível futuro, apenas você pode rever o passado. Há vinte e dois anos um aluno, Satler, foi assassinado pelo seu rival na Sala das Diferenças, naturalmente era uma partida de Quizard, mesmo assim uma vitória não justifica tal ato. Agora você entende que os dois garotos não estiveram lá hoje, e sim há vinte e dois anos e que você só os pode ver porque tem o dom de acessar memória esquecidas.

- Sim professor. Perfeitamente. Mas eles pareciam tão reais... como eu vou distinguir o passado do presente? – Kal estava se sentindo a deriva em um mar de dúvidas e incertezas. Como se você acordasse pela manhã, tomasse seu café e descobrisse que é o único ser humano na face da terra. Ser único, inigualável, e ao mesmo tempo sozinho e perdido...

- Esta tarefa não é mais minha. Infelizmente não posso ajudá-lo nisto. Você terá que aprender a dominar o seu dom. Agora, vá até os seus amigos, não posso prendê-lo aqui com minhas conversas enjoadas e meus conselhos bobos. Eles precisam de você nas comemorações.

- Obrigado, professor.

Cacius tomou as mãos de Kal e então olhou em seus olhos, ele quase podia ouvir o cérebro do professor maquinando um pensamento.

- Aguarde apenas mais um minuto.

Caminhando, apressadamente, até sua mesa, Cacius abriu uma das gavetas e dela retirou uma pequena miniatura de baú em madeira, do tamanho de uma caixinha de jóias. Cacius abriu-a em sua mesa e apreciou seu conteúdo por um breve momento. Envolvendo o objeto que havia dentro do pequeno baú entre os dedos, ele aproximou-se de Kal com as mãos estendidas.

- Esta pedra esteve comigo por muito tempo. Agora quero que fique com você. É uma ametista, uma pedra com poderes muito peculiares, assim como os seus.

Kal admirou a pedra com suas próprias mãos, ela era lilás e reluzente e de formato oval. Assim que a tocou sentiu um tipo de energia diferente fluir pelo seu corpo e voltou a entregá-la a Cacius.

- Não posso aceitá-la, professor, ela deve ser especial para o senhor.

- Mas eu desejo isso. Ela já me ajudou no que tinha que me ajudar, as pedras mágicas não gostam de serem abandonadas e esta ametista precisa de novas aventuras. Tome conta dela e me darei por satisfeito. Agora vá, não pode perder este sábado. É o seu primeiro final de semana em Avalon.

Estar entre amigos era reconfortante, ainda mais no salão privado da equipe de Tadewi, sentado nas poltronas mais confortáveis. Contara a Ralph e Guine sua conversa com Cacius, sua amiga parecia contente em saber que Kal possuía um dom que até então, nenhum outro bruxo manifestara.

- Kal Foster, uma caixinha de surpresas. Quando o tio Adonis souber desta história... – disse ela batendo palminhas – também ficará orgulhoso de ter o filho no time de Quizard.

- Só porque o Ralph não competiu. – falou Kal olhando para o amigo que estava emburrado desde o café, pois havia pegado detenção justamente naquele sábado.

- E como foi passar a detenção com a Srtª. Skinger? – perguntou Guine.

- Me sentindo um pássaro enjaulado...

- Falando em pássaro, olhe quem está vindo, Ralph. – disse Kal apontando para uma das janelas.

Os dois abriram uma banda da janela para que o pássaro pudesse entrar.

- Longa viagem, não foi, garoto. – disse Ralph estendendo o braço direito para servir como poleiro à ave.

- Quer biscoito? – perguntou Guine a Osíris.

- Ele é um falcão não um papagaio. – respondeu Ralph.

- Podemos oferecer Rick Wosky. – disse Kal rindo-se.

- Deve dar indigestão. – falou Ralph.

Osíris largou o pedaço de pergaminho que trazia na pata e voou em direção as árvores antes que ouvisse outra sugestão sobre sua alimentação.

- O que ele trouxe? – indagou Guine.

- Uma resposta. Eu mandei uma carta para os meus pais no início da semana pedindo uma foto ou gravura de Kricolas. – respondeu Ralph.

- E para quê você quer a foto?

- Você se lembra da conversa do meu pai com Thom na cripta? – perguntou Kal com ar misterioso – Eles estavam dizendo que Kricolas fugiu com o propósito de eliminar a família Foster, descendentes daquele que destruiu o seu mestre.

- Donnovan. – completou Guinevere – Você acha mesmo que isso seja possível?

- O que mais seria? – questionou Ralph.

- Reviver Donnovan também é uma opção dele. – disse Kal de imediato.

- Para mim isso é tudo piada. – bufou a garota – Não há como trazer a vida a um bruxo que morreu há quase mil anos?

- O Livro de Merlin! – exclamou Kal – Thom falou que ele realmente existe. E acho que se Kricolas o tiver, nada poderá impedi-lo de ressuscitar Donnovan.

- Será? – questionou Ralph – Será que Kricolas vai se manter livre a tempo de encontrar o tal livro? Warren está atrás dele. Há nove anos estão em sua cola, ele não vai conseguir escapar por muito tempo.

- Pois é, há nove anos. E se ainda não encontrou o Livro de Merlin, é porque ele não existe. – falou Guine.

- Ele parece ser um bruxo incrível, não se esqueçam de que é metade vampiro também. – disse uma outra voz.

- Tâmisa? O que faz aqui? – indagou Guine olhando de esguelha para a garota.

Tâmisa, que junto com Diogo representava o grupo de Tadewi, estava parada ao lado dos três, olhando e ouvindo a conversa como se fizesse parte dela.

- Como você bem disse, Tâmisa, Kricolas é metade vampiro, então ele não pode fugir à luz do dia sem sofrer queimaduras de milionésimo grau. – chiou Ralph.

- Aí é que você se engana, garotinho, Kricolas tem todas as habilidades de um vampiro, mas nenhuma de suas fraquezas.

- Desculpa, mas se puder nos dar licença... - encrespou Guinevere.

- Eu sou a Representante de Tadewi e...

- E eu sou o guardião-mirim de Avalon, agora, se fizer a bondade de não nos incomodar mais, ficarei feliz, pois não estou afim de pegar a minha pena para lhe dar uma ocorrência em pleno sábado. – enquanto falava, Kal procurou uma posição ao sol para que seu broche pudesse reluzir nos olhos de Tâmisa.

- Hum...

Tâmisa atravessou a passagem até o corredor e desapareceu de vista levando consigo o seu mau humor.

- Que desaforada, pelo menos este broche serve como espanta intrometidos. - brincou Guinevere.

- Pelo menos ela nos deu uma informação valiosa. – disse Kal.

- Nem tanto assim. Olhem só isso, mamãe e papai deixaram isso escrito na carta. Eles disseram que além dos poderes de vampiro, Kricolas é um bruxo poderoso.

- Tanto que fugiu de Warren. – falou Guine.

- Agora imaginem, se Kricolas já é tudo isso, Donnovan dever ser ainda mais poderoso, e com o Livro de Merlin serão invencíveis. – disse Kal – Nos resta torcer que o livro seja apenas lenda.

- Ou que Warren o recapture. – falou Ralph em desânimo.

- A esta hora, Kricolas deve ter arrumado um disfarce.

- Não adiantaria, Guine. Tirso me disse que os prisioneiros são marcados com a Flor-de-Lis, em uma parte visível do corpo. Assim são facilmente identificados. E não há feitiço no mundo capaz de remover a marca.

- Kal tem toda razão. Meus pais também comentaram sobre isto. E olhem para o desenho.

Era a primeira vez que Kal olhava para um retrato de Kricolas, não longe de um mostro ele era. Os olhos furiosos e cansados provocavam temores, o focinho achatado como o de um morcego e as orelhas pontudas, sobrancelhas salientes e elevadas, o queixo longo e grosso, lábios finos como se a boca fosse apenas um corte horizontal e o que mais lhe chamou a atenção foi a expressão vazia, fria, quase que sem vida.

- Então este é o homem que quer caçar a minha família. Estão vendo a marca no pescoço? Esta é a Flor-de-Lis.

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