quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Por onde anda André Fantin?

Olá, pessoal! Primeiro quero pedir desculpas mais uma vez pelo sumiço e pela interrupção do segundo livro no blog.

Hoje recebi um e-mail muito legal de um leitor (valeu Messias) me perguntando se eu não iria mais postar, ou o que tinha acontecido. Este e-mail foi bem mais delicado do que um que perguntava se eu estava vivo e está empatado com o de uma professora que disse ter usado Kal Foster em sala de aula. Realmente muito bom ver esse reconhecimento todo vindo de vocês. Reconhecimento este que eu venho tentando recompensar há muito tempo com a publicação do livro impresso.

Parece que agora as chances são reais. Como eu disse em algum comentário aqui no blog, eu inscrevi Kal Foster na Lei Rouanet (uma lei de incentivo a cultura do governo federal) e ele passou =D

Em janeiro tiro férias do trabalho e vai ser o tempo que preciso para conseguir os patrocínios. A partir daí ele será vendido a preços módicos. Bem módicos. E o segundo livro já entra na linha de produção, também pela lei.

Eu criei um site (kalfoster.com) onde vocês podem deixar o e-mail de vocês cadastrado para serem notificados sobre quando o livro estiver a venda.

Muito obrigado pelo carinho e apoio de vocês todos estes anos aqui acompanhando isso que está sendo uma verdadeira saga, e bora torcer =D


Abraços

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Livro à venda



Olá pessoal. Já faz algum tempo que eu não posto aqui e mesmo assim o blog continua sendo bem visitado. Muito obrigado. Já faz quatro anos desde que eu terminei de escrever Kal Foster e o Livro de Merlin e desde então começou a corrida para publicar o livro em qualquer espaço que fosse. As editoras batem a porta na cara mesmo de quem não tem nome, tornando difícil o trabalho de qualquer escritor iniciante.
Ontem à noite (madrugada, na verdade) eu descobri um serviço oferecido por uma gráfica que atende em quase todo o Brasil que poderia viabilizar a publicação de Kal Foster. O serviço oferece a impressão do livro com capa e tudo o mais sem custos para o autor. Para vocês entenderem melhor, olhem essa matéria que eu descobri ontem.



Lógico que eu fiquei entusiasmado com essa possibilidade e varei a madrugada editando capa e texto para mandar naquele exato momento. Bom, resultado, o livro já está à venda pela AGBook e embora o preço não seja tão razoável quanto eu gostaria (afinal são mais de 300 páginas), mas ainda assim é um grande começo :)
Quem desejar comprar o livro basta clicar aqui e seguis o passo a passo do site. Não deve ser muito diferente de se comprar no Submarino ou Saraiva, por exemplo. Espero que até o final do ano eu tenha tempo para finalmente terminar de editar o segundo livro e colocá-lo a venda também. Vamos ver... mais uma vez muito obrigado a todos vocês que mantém esse blog vivo e que me enchem de vontade de continuar a escrever.
Abraços,
André Fantin

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Capítulo 7 - O Vale Cratera

Kal sentiu um forte arrepio na espinha ao ouvir as últimas palavras do senhor Timas. Seu estômago revirou de uma forma que ele achou que acertaria as pessoas lá em baixo com sua última refeição.

Um dos bruxos de capa preta que acompanhava Saguior conjurou uma cadeira ao lado do palanque e ordenou que ele se sentasse. Relutantemente, o fauno movimentou seus cascos de bode pelo chão de pedra da sala do conselho e largou-se em cima da cadeira.

Timas olhou para Saguior, ao seu lado, fazendo questão de conferir de perto se as mãos dele estavam devidamente bloqueadas por aquelas duas bolas de energia. Após esse checape, o ministro da Comunicação Mágica olhou para os membros do conselho e os visitantes, alertando-os.

- Qualquer intromissão neste julgamento implicará na remoção imediata do indivíduo.

Uma pequena balbúrdia se seguiu após a fala do ministro que teve que disfarçar um pigarro para chamar a atenção de todos para o palanque.

- Como previsto em sorteio, anteriormente realizado com representantes da defesa e da acusação, ficou estabelecido que este julgamento se iniciará com uma alto-defesa do réu. – disse Timas em voz solene – Por favor, fauno, aproxime-se.

Timas desocupou o palanque e permitiu que Saguior o usasse em sua defesa.

- Eu cumprimentaria cada um de vocês aqui hoje, mas como podem ver... – disse mostrando as mãos bloqueadas, pequenos risos surgiram da platéia – O que posso dizer em minha defesa é que sou inocente. Apenas isso. Por anos eu protegi a Caixa de Pandora com todas as minhas energias, fiz o possível para mantê-la em sigilo. E consegui, por um bom tempo. Ninguém desta época sabia de seu paradeiro e todos continuariam na ignorância se não fosse pelos conhecimentos milenares de Kricolas. Ele era a única pessoa viva que sabia que eu guardava a caixa.

Um pensamento estranho passou pela mente de Kal deixando-o curioso. Saguior é tão velho quanto Kricolas?

- Um homem me confiou a Caixa de Pandora e me fez prometer que jamais a abriria ou permitiria que ela caísse em mãos erradas. Eu era o guardião da caixa e jamais permitiria que ela fosse tirada de mim, como está sendo dito neste tribunal. É isso que tenho a declarar.

Saguior afastou-se do palanque e sentou-se novamente em sua cadeira de réu. Timas também retomou seu lugar.

- Bem, seguindo o sorteio, temos a voz da acusação.

Dorian Gulemarc esgueirou seu corpo esquelético pela mesa, pedindo licença às pessoas para que pudesse passar com o merecido conforto. Kal sentiu imenso asco ao olhar aquela figura desprezível, com seu imenso nariz que quase lhe tomava o lugar da boca e dos olhos.

- Saguior disse que Kricolas sabia onde estava a Caixa de Pandora, mas ninguém conhecia seu paradeiro a não ser ele mesmo, o guardião. Responda-me, como ele poderia saber, bode velho? – disse Dorian quase que se deleitando por poder insultar Saguior em público sem ser repreendido, afinal, os bruxos do alto escalão tinham essa “licença” especial.

- Você já disse tudo o que precisava ouvir. Sou um bode velho. – respondeu Saguior.

- Vocês vêem? – disse Dorian olhando para os presentes, enquanto apontava o fauno – É assim que ele se porta perante um conselho sério.

- Não me venha falar de seriedade, Dorian.

- MINISTRO, PARA VOCÊ! – exclamou com veemência.

Kal sabia que Saguior não estava se ajudando.

- Vamos, bode, diga-nos quem lhe deu a caixa? Quem seria louco o suficiente para deixar um objeto tão poderoso nas mãos de alguém tão... indigno.

Saguior baixou o rosto, Kal podia sentir a fúria que ele emanava.

- Não vai dizer? Kricolas também roubou sua língua? – alguns bruxos riram do comentário.

- Essa informação não interessa ao conselho. – retorquiu Saguior.

- Não interessa? O que acha que viemos fazer aqui, então? Jogar Quizard? – outra onda de risadas seguiram-se ao Dorian mencionar o esporte dos bruxos – Nós determinamos o que é e o que não é importante neste julgamento. Você, criatura, apenas responde.

Saguior não prestava mais atenção em Dorian ou nas risadas de deboche da platéia. Mantinha um olhar fixo na direção de Cacius, que o correspondia. Os dois estavam compenetrados, como se um estivesse na mente do outro. Percebendo o contato, Dorian postou-se entre os dois e eles se dispersaram.

- Você disse que ninguém desta época poderia saber que você era o guardião da Caixa de Pandora. Disse também que Kricolas sabia por possuir um conhecimento milenar. E finalizou quando disse que de fato era um bode velho. Está insinuando que é tão velho quanto Kricolas?

- Pense o que quiser. Sua opinião não me interessa em nada. – rebateu Saguior sem muito interesse no que estava acontecendo.

Dorian ficou estático. Se ele esperava obter informações do fauno, seus planos estavam desmoronando.

- Saguior, – prosseguiu ainda assim – poderia nos contar sobre o dia do roubo. Já me esqueci. – falou Dorian agitando uma das mãos perto da têmpora.

- Bem, – disse se ajeitando na cadeira – Eu estava arrumando uma prateleira na Biblioteca Central quando uma garota chamada Tâmisa Spineli surgiu procurando por um livro de poções. Eu disse que iria pegá-lo, estava com pressa, pois precisava arrumar uma seção inteira de livros antes de fechar a biblioteca. Eu me recordo bem de cada título, e quando ela me disse o nome do livro, Poções da meia-noite, eu estranhei, mas supus pertencer a uma coleção recente e por isso não estava me lembrando. Passei a procurar o tal livro que ficava do lado oposto de onde eu estava. Passei alguns minutos procurando e quando não encontrei, eu disse a ela que não tinha o livro. Desconfiei quando ela não fez uma cara de surpresa e rapidamente se despediu com um simples tchau. Preocupado eu entrei na mente dela, mas rapidamente ela me bloqueou, menina esperta. Apenas pude ver o que estava na superfície. Ela estava me distraindo.

Dorian baixou seu olhar balançando a cabeça e logo a levantou com uma expressão de choro fingido e falsas palmas.

- Bravo, bravo. Isso foi lindo, Saguior. Teve bastante tempo para pensar nessa história não?

Os olhos do fauno brilharam de indignação ao ato desrespeitoso de Dorian. Saguior abriu os braços e em seguida fez as bolas de energia de sua mão colidirem uma com a outra, arrebentando-as. Dorian arregalou os olhos, temeroso por sua vida. Estava certo.

Saguior conjurou outras bolas de energia, mas roxas e arremessou contra o ministro que voou alguns metros. Com furor, Saguior pisou com seu casco direito no peito esquelético de Dorian pressionando-o com força.

- Quem é que manda agora, heim? – disse o fauno com um brilho assassino nos olhos.

- Largue-o! – ordenou Timas que ainda estava no palanque.

- Cale a boca você também. – Saguior arremessou outra bola de luz e acertou o ministro da Comunicação Mágica.

- Alguém acuda! – berrou uma mulher desesperada. Fotógrafos acotovelavam-se em busca da melhor foto, uns usavam as próprias varinhas, outros daguerreótipos.

Em seu momento ilustre, Saguior posou para uma foto com as mãos na cintura e o casco ainda pressionando o peito de Dorian.

- Guardas! – berrou o ministro quase sem fôlego.

Dois guardas de Warren saltaram as mesas rapidamente e renderam o fauno sem esforço. Uric assistia a tudo impassível. Após ter as mãos novamente bloqueadas, Saguior foi retirado da sala do conselho. Timas já se erguia e declarava em alto tom.

- Devido a agressão, e a clara tentativa de homicídio, em nome de todos deste conselho, declaro o réu culpado das acusações e o sentencio à pena de oitenta anos em regime fechado na Penitenciária de Segurança Máxima de Warren.

Timas ergueu uma varinha e conjurou um feitiço no teto, formando um selo que representava o conselho. Era uma lua crescente com uma varinha cravada na vertical, costurando as duas pontas, e o nome Conselho de Magia.

- Oitenta anos! – exclamou Ralph pesaroso.

- Isso é uma vida inteira! – analisou Daimon.

Kal ainda não fizera seus comentários, sabia que aquilo fora premeditado entre Saguior e Cacius. Seja lá qual fosse o motivo, os dois não queriam que Dorian obtivesse as informações que esperava conseguir com aquele julgamento.

- Precisamos sair daqui sem sermos vistos. – disse Guine – Com sorte, tia Amanda nem vai perceber que saímos.

Eles rumaram até as escadas por onde subiram antes, mas elas estavam lotadas. Seguiram pelo outro lado e forçaram a passagem por entre a multidão de bruxos. Quando chegaram no último degrau, viram Cacius de costas para eles. Pararam de imediato esperando que ele saísse do salão primeiro. Mas ele permaneceu um longo tempo parado. Sua túnica azul anil destacava-se claramente entre as cores foscas das roupas dos outros bruxos, Cacius certamente não passaria despercebido em lugar algum.

- Será que ele vai ficar aí o dia todo? – questionou Ralph impaciente. Meu pai já deve estar lá fora me procurando.

Quando Cacius finalmente se moveu, de sua cintura caiu um saquinho de pano amarrado com uma fita dourada. O saquinho parecia conter algum tipo de areia.

Kal avançou e recolheu-o. Curiosamente, abriu-o e observou seu conteúdo. Ele sabia que aquele pó azul não era areia comum.

- Pó de bobetônia! – exclamou – Vamos sair daqui já!

Kal fez uma breve explicação sobre o pó e cada um pegou um punhado jogando sobre si mesmo e dizendo.

- Lago de Celacanto!

Kal sentiu seu corpo esquentar como se cada molécula estivesse em profunda agitação. Sentiu seus órgãos afastando-se uns dos outros e seu corpo se incinerar. Quando deu por si estava em frente ao lago onde Viviane os deixara.

- Demais! – exclamaram os quatro juntos.

- Ralph, a meu filho você está aí. – disse Uric surgindo por entre a multidão, Kal imaginou se ele os vira chegar.

- Pai. O julgamento não demorou tanto. O que aconteceu? – fingiu Ralph.

- Uma história e tanto, uma história e tanto.

- Nem quero saber... – prosseguiu com a encenação.

- Olá, garotos. – cumprimentou Uric – Desculpe o mau jeito, mas surgiram alguns problemas.

- Tudo bem, senhor Scheiffer.

- Kal, você pode dar um recado para sua mãe?

- Claro. – respondeu convicto imaginando como faria isso sem dizer a ela que secretamente estivera em Celacanto.

- Diga que recebi o bilhete que ela mandou por Stuart e que irei vê-la amanhã cedo.

- Tudo bem, eu digo.

- Bem, filho, precisamos ir agora. Nossa carruagem está esperando logo ali. – falou apontando para uma carruagem da GAW que era puxada por três vassouras.

- Nos vemos na escola, então. – despediu-se Ralph abraçando os amigos.

- Oh não se preocupem, talvez ainda antes. – completou Uric – Agora precisamos mesmo ir, Ralph. Até amanhã, meninos.

Os três observaram Ralph subir na carruagem com o pai e sumir segundos antes de bater no céu de pedra da cidade.

- Vamos antes que alguém mais nos veja. – disse Kal aproximando-se do lago para chamar Viviane.

A dama do lago surgiu entre as névoas com o seu insuperável ar místico de ser. Eles subiram a bordo e sentaram-se. Viviane ergueu os braços e o barco subiu até desaparecer como a carruagem de Ralph e Uric fizera.

Na manhã seguinte, Kal levantou-se cedo, a cabeça ainda doía por causa dos gritos histéricos de Amanda ao vê-los chegando de Celacanto. Ela ralhou com eles por mais de meia hora e só se acalmou depois que Kal deu o recado de Uric, foi a brecha que tiveram para escapar de mais alguns minutos ouvindo reclamações e conselhos.

No desjejum, Amanda ainda parecia incomodada com a desobediência dos três, porém não brigou mais. Kal, Daimon e Guine estavam presos agora, de portas trancadas. Amanda disse que não queria chegar àquele extremo, mas eles estavam pedindo por isso. Quando Sara tocou o interfone, Amanda pensou em dizer à garota que eles não poderiam receber visitas, mas como Sara era a única pessoa da vizinhança que se importava com os quatro, ela achou que poderia ser mal compreendida e Sara achar que era algo mais pessoal.

- Entre, querida. – disse ela abrindo o portão pelo interfone.

Sara atravessou rapidamente o jardim de entrada sobre a vigília das estátuas, adentrou na pequena varanda e com um clic girou a maçaneta e empurrou a porta para dentro.

Espremeu-se no sofá com Kal, Guine e Daimon que assistiam um programa na tv. Nenhum deles parecia muito empolgado com as imagens de uma baleia engolindo toneladas de plâncton.

- E então, como foi ontem à noite? – sussurrou Sara para os três.

- Vamos subir. – disse Guine.

Kal sentiu um arrepio estranho por todo o corpo quando Sara apoiou uma mão nos joelhos dele para se levantar de forma mais rápida. Ele olhou para onde ela tocara e ficou imóvel. Os três já estavam na metade da escada quando acordou para o tempo.

Amanda viu-o subir e o encarou de forma curiosa, como se tentasse entender a atitude estranha do filho nos últimos dias, Kal nunca fora um menino travesso, ou desobediente. Algo dentro dele estava mudando. Ela só torcia para que aquilo pudesse ser revertido.

Quando Kal entrou no quarto, Daimon, Guinevere e Sara já estavam sentados ao redor de uma pequena mesa circular no canto do quarto. Ele puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Daimon e Guine e de frente para Sara.

- Pela cara de vocês algo estranho deve ter acontecido ontem. – arriscou Sara vendo o rosto desgostoso dos três amigos – O que houve com o Saguior? Era esse o nome, não é?

- Sim, é Saguior mesmo. – confirmou Daimon – E ele foi preso.

- Preso? Por proteger uma caixa que poderia por em risco o mundo? – espantou-se Sara – Não sei como são feitas as suas leis, mas são estranhas.

- O julgamento não chegou a terminar. – cortou Kal – Saguior foi preso por agredir Dorian.

- O novo ministro? – inquiriu Sara, demonstrando todo seu conhecimento sobre o universo mágico.

- Exato. – confirmou Daimon outra vez.

- Dorian estava fazendo perguntas as quais Saguior parecia não querer responder. Então encerrou o julgamento com esse ataque.

- Nem tentou se defender?

- Ele deu um depoimento contando a versão dos fatos, mas acho que ninguém acreditaria. – falou Guine.

- E vocês? Acreditam?

- Sim. – respondeu Kal de forma convicta – A garota que distraiu ele na biblioteca é aliada de Kricolas.

- Como era mesmo o nome dela? – perguntou Sara, como se estivesse fazendo um grande esforço de sua memória.

- Tâmisa.

- Isso. Ela é aliada de Kricolas? Em troca de quê?

- A mãe dela, Elvira, também é aliada dele. As duas estão juntas nisso tudo. – disse Guinevere aproximando o rosto do de Sara.

- Ano passado, Cacius disse que quando uma força maior surge se opondo à força vigente, as pessoas fazem suas escolhas. Tâmisa e Elvira fizeram a dela. Vai chegar a hora em que todos tomarão sua decisão.

- Ficar e se proteger ou sair e lutar. – refletiu Sara.

- Kricolas não luta. Ele magoa. – retorquiu Kal – Uma luta é uma ação honesta em que as partes têm direitos iguais de defesa. Não é isso que ele quer, igualdade.

Sara corou o rosto, sentindo-se repreendida daquela forma. Guinevere virou-se para ele de forma séria e cutucou-lhe.

- Ah, ah... desculpe... não foi minha intenção. – Kal se levantou pedindo licença e foi até a janela. Olhou para o lago do lado de fora que refletia pacificamente a luz do sol da manhã.

- Kal. – chamou a voz de Sara ao seu lado – Não queria...

- Não tem problema, é sério. Eu só não...

- Seu pai? – ela tocou o rosto dele para virá-lo em sua direção. Kal percebeu que estavam sozinhos.

- Sabe quando uma coisa sua some e você tem a sensação de que você não a perdeu, de que você foi roubado e que agora você nunca mais terá essa coisa de volta?

- Você precisa se recuperar...

Ele balançou a cabeça negativamente.

- Não quero. Não quero acreditar que ele se foi. Não vi o seu túmulo ainda para acreditar que é possível... que é possível ele voltar para...

- Eu não sei muito sobre o seu mundo, mas não acredito que seja real uma pessoa voltar. Mesmo usando magia...

- Kricolas vai tentar fazer isso com Donnovan. Eu quero tentar pelo meu pai.

Sara sentiu seu corpo arrepiar e aproximou seu rosto mais perto do de Kal. Ela sentia sua respiração ofegante e tristonha. Não sabia o que fazer para consolar o amigo. Ela só sabia uma coisa. Queria beijá-lo.

- Sara... – disse Kal finalmente – Eu... eu gostaria de ficar só...

Ela afastou-se com um olhar também triste e saiu do quarto em direção às escadas. Kal ouviu barulhos de conversa vinda do corredor, reconheceu a voz de Guine fundida com a de Sara. As duas conversavam baixinho com medo de serem ouvidas. Ele as ignorou.

Continuou ali, olhando pela janela sem saber o que fazer. Em sua memória ele puxou imagens de seu pai sorrindo, brincando e dando alguns conselhos. Era quase nítida a sua imagem, como se ele estivesse ali. Kal correu seu olhar pelo quarto, os olhos ensopados. Ele estava ali sozinho, mas ao mesmo tempo sentia que havia alguém ali com ele. Observando-o. Ele não ligava. Nada importava naquele momento, só queria ficar ali, relembrando.

Seu olhar desatento captou uma sombra em direção a porta. A imagem quase espectral tinha uma aparência masculina muito singular. Kal sabia que não era a sombra de Daimon. De quem mais seria? Ele seguiu a sombra com o olhar até onde deveria haver pés. E havia. Um par de sapatos marrom estavam parados bem ali, na porta do quarto. Quando Kal ergueu o rosto rapidamente até o alto não viu mais ninguém, a sombra também desaparecera. Somente o que sobrara era uma voz ressoante que reverberava em sua mente. Era a voz de Adonis Foster.

- É possível, é possível...

Kal ficou estático por vários minutos. Refletindo no que supostamente ouvira e no que deveria entender daquilo. Não pretendia alarmar Guine e Daimon, muito menos Sara, com o que acontecera. Na certa não era nada. Mas ouvir a voz de Adonis em sua cabeça era algo que o deixava contente. Contente o bastante para tirá-lo daquele estado depressivo que se submetera anteriormente.

Suas forças animaram-se ainda mais ao ouvir a voz de Ralph no primeiro piso. Kal saiu do quarto às pressas até o amigo. Se havia uma pessoa para quem contar o que acabara de acontecer, esse alguém era Ralph. Eles se conheciam a pouco mais de um ano e passaram por algumas aventuras juntos em Avalon. Tinham opiniões compatíveis e dividiam o mesmo ar desconfiado pelas coisas. Para eles nada era o que realmente parecia ser. Sempre haveria um segredo a ser revelado e geralmente eram eles quem faziam isso.

- Papai, ela nos viu esfumaçar aqui. – disse Ralph apontando para Sara com a mão direita enquanto a esquerda segurava um saquinho de pó de bobetônia.

- Não faz mal, meu filho, esta é Sara Chiabai, se não me engano. Cacius me pediu que alertasse o meu pessoal para não mexer com a memória dela.

Cacius pediu a Uric que não desmemoriassem Sara? Indagou-se Kal, que estava parado no alto da escada.

- Bem, senhora Foster, – prosseguiu Uric antes que alguém perguntasse qualquer coisa – Desculpe pelo atraso, mas não pude vir antes. Podemos conversar. Em particular?

- Claro, venha até aqui na cozinha. – disse Amanda guiando o homem para longe do alcance dos garotos.

- Captus! – disse Kal com a varinha no ouvido. No ano anterior, ele aprendera esse feitiço de superaudição com dois bruxos desconhecidos na cidade de Dunas.

- Senhor Scheiffer, gostaria que as crianças ficassem em maior segurança. Não acredito que aqui seja o melhor lugar para eles neste momento. – disse Amanda – Celacanto está fervendo com toda essa agitação causada pelo roubo da Caixa de Pandora. Eles ficam loucos de tanta curiosidade e acabam pondo em risco a própria vida.

- Sim, senhora, compreendo sua preocupação e acho que tenho uma alternativa, se a senhora permitir, claro.

- Por favor, me diga qual a alternativa?

- Levá-los para minha casa!

Kal largou a varinha com um olhar surpreso. Eles iriam até o vale onde Ralph mora. Seria perfeito. Assim ele poderia conversar com o amigo e por em ordem os seus sentimentos por Sara. Mesmo que a idéia de ficar longe dela o incomodasse um pouco.

- Oi. – cumprimentou Ralph ao ver Kal sentado no primeiro degrau do segundo andar.

- Oi. – correspondeu – Senta aí. – disse chegando para o lado e dando espaço para o amigo.

- Noite estranha ontem, não?

- Com certeza.

- Sabe por que estamos aqui?

- Para pedir a minha mãe se podemos ir para a casa de vocês. – respondeu Kal sem problemas.

- Andou treinando adivinhação? – perguntou ele espantado.

Kal mostrou-lhe a varinha e Ralph rapidamente deduziu.

- Captus.

Ele agitou a cabeça dizendo que sim.

- E sua mãe permitiu?

- Não terminei de ouvir a conversa.

- Você sabe por que Cacius pediu ao meu pai que não desmemoriasse a garota? – indagou Ralph mudando de assunto.

- Não. Mas quero descobrir o quanto antes. Se soubesse disso teria perguntado ontem mesmo.

No primeiro piso, Sara levantava-se do sofá e despedia-se de Guine e Daimon. Quando passou ao lado da escada olhou rapidamente para ele, sorriu e abaixou a cabeça. Aquela era a última vez que se veriam por longos meses.

- Muito bem, senhora Foster, volto para buscar os três hoje à noite. – disse Uric abrindo a porta da cozinha no mesmo momento que Sara fechava a porta da entrada.

- Sinto-me tão mais tranqüila. – confessou Amanda.

- O que houve, tia Amanda?

- Queridos, arrumem suas malas. Vocês vão para a casa do senhor Scheiffer esta noite.

O sorriso brilhou no rosto deles. Finalmente estariam livres das limitações impostas naquela casa. Ralph morava dentro de um vale ali por perto, um lugar onde poderiam usar magia livremente e poderiam ficar ao ar livre sem perturbações maiores. Só o que precisavam fazer era esperar.

As horas passaram com muito esforço. Estranhamente, quando se quer logo que chegue determinada hora ela parece vir a passos incomumente lentos. Ralph ficara com os Foster para o almoço e ajudou-os a arrumar as bagagens. Eles assistiram tv, já que estavam estritamente proibidos de pisar fora de casa e como sempre não passava nada que fosse de interesse. Os noticiários não exibiram nenhuma matéria sobre assassinatos incomuns, o que era uma pequena prova de que Kricolas estava silencioso, no momento.

Quando o relógio da cozinha marcou sete horas, Kal, Guine e Daimon já haviam descido suas malas até a sala. Amanda pedira para Stuart comprar o já comercializável pó de bobetônia, assim eles não precisariam encarar mais algumas horas de viagem em uma carruagem. Em segundos estariam na casa de Ralph.

Uma fumaça verde limão surgiu em cima do tapete. Uric acabara de esfumaçar dentro da casa dos Foster.

- Boa noite, senhora Foster. Boa noite, meninos. – cumprimentou – Estão prontos?

- Obrigada mais uma vez, senhor Scheiffer. – agradeceu Amanda.

- Não há porquê. Vai ser bom pra eles também. Mas a senhora tem certeza de que não deseja ir junto? Ficar aqui sozinha, eu não sei... parece... solitário.

- Não se preocupe. E pare de me chamar de senhora, pareço velha.

Uric riu-se, acenou com a cabeça e pediu o mesmo.

- Tudo bem, então. Vamos nessa. Até mais, Amanda.

Uric bateu uma continência engraçada e esfumaçou.

- Até mais, mamãe. – disseram Kal e Daimon abraçando-a.

- Vocês vão ficar na casa dos Scheiffer até as aulas começarem. Vou passar lá para levar seus materiais. Em menos de duas semanas nos veremos novamente.

- Tchau, tia Amanda.

- Tchau, querida.

Ralph fez um aceno e enfiou a mão no saquinho de pó de bobetônia, bateu com a mão cheia no peito e foi engolido por chamas azuis.

Kal, Daimon e Guine também pegaram um pouco de pó e juntos disseram.

- Vale Cratera!

As mesmas chamas que engoliram Ralph devoraram ardentemente os três garotos. Kal viu sua mãe por entre a janela de fogo azul a sua frente. Ela chorava. Como acontecera em Celacanto, ele sentiu seu corpo aquecer rapidamente e uma agitação inquieta dos seus órgãos. Sentiu-se incinerar e logo mais seu corpo resfriar rapidamente quando ele alcançou o chão da casa dos Scheiffer.

Eles esfumaçaram bem em cima de um tapete amarelo com runas antigas escritas dentro de um círculo. As paredes eram de madeira encerada, com móveis em estilo medieval, todos muito bonitos e preservados, grandes almofadas onde supostamente deveria haver um sofá, um lustre de cristal pendia do teto iluminando todo o ambiente em tons amarelos. Não havia janelas. Uma porta de cedro dava acesso ao outro cômodo e uma outra porta dupla de cedro parecia levar para o exterior, havia uma fraca luz por debaixo das frestas da porta. Tapeçarias com gravuras de bruxos imponentes estavam penduradas nas paredes, orgulhosamente exibindo os antepassados de Ralph. Estantes de mogno guardavam livros e objetos estranhos, alguns vasos curiosos como formas irregulares e pintura singular, como um que tinha o formato da cabeça de uma pessoa que gritava desesperadamente, podia sentir a aflição nas marcas dos olhos.

O piso de madeira também polida era tão lustroso que poderia ser usado como espelho. No canto da sala havia uma escada de aço que tanto subia para o segundo andar, quanto descia para o que deveria ser um porão. O teto era recoberto por um tecido dourado que ajudava a refletir a luz do lustre dando à sala dos Scheiffer um aspecto majestoso. Dignos de um rei.

- Bem, chegamos. – comunicou Ralph largando-se em cima de uma almofada.

- Olá, garotos! Que bom que vocês chegaram! – A mãe de Ralph, Samanta Scheiffer, abrira a porta de cedro que dava acesso a uma cozinha e apressou-se para abraçá-los – É bom vê-los novamente, Daimon e Guine. Kal, acredito que não nos vimos no ano passado, naquele incidente com os Griphons.

Samanta era uma mulher alta e de pele muito clara, cabelos loiros e ondulados, os olhos azuis e um nariz um pouco empinado. Ela tinha as feições de uma modelo, mas era uma poderosa guardiã de Warren.

- Olá, senhora Scheiffer. É um prazer conhecê-la. – saudou-a Kal.

- Bem, vocês vão ter que nos dar licença, mas é que eu e Uric temos muito serviço em Warren.

- Mamãe! – exclamou Ralph – Já é tarde e temos visita. Vocês precisam mesmo ir?

- Desculpe, filho. Mas o pessoal do Dorian nos deu uma pista de onde Kricolas pode estar. É melhor averiguarmos bem ou o Folha Mágica vai ralhar com a gente.

- Tudo certo, pai... já estou acostumado mesmo...

Sem mais palavras ou gestos, Uric e Samanta esfumaçaram deixando um rastro colorido de verde limão e um caramelo intenso.

- É como eu já disse a vocês. Eles nunca estão aqui.

- Não esquenta, Ralph. – tranqüilizou Guine – Eles estão prestando serviços a toda a comunidade mágica. Devia se orgulhar.

- Ah eu me orgulho. É claro que me orgulho, nunca disse que não, mas precisa ser sempre assim? Ainda mais agora com esse novo ministro.

- O que tem ele? – perguntou Kal, desconfiado.

- Dorian montou uma milícia, as Salvações Nacionais. Acho que poucos sabem disso, mas ele montou. Reuniu bruxos poderosos de todo o país, agora eles ficam vasculhando cada centímetro quadrado, levantando todos os tapetes em busca de sujeira e todo dia surge uma pista sobre o paradeiro de Kricolas.

- E eles nunca acham? – questionou Guine.

- São todas pistas falsas ou mal contadas. Eles se disfarçam e ouvem relatos de não mágicos e quando surge algo estranho eles comunicam GAW.

- Mas por que eles mesmos não vão averiguar? – indagou Kal.

- Não sei. – disse francamente – As Salvações Nacionais tem o objetivo de deter Kricolas, mas só o que fazem é recolher pistas. Papai está incomodado com isso.

- Por quê?

- Guine, pense. Se as Salvações Nacionais continuarem se expandindo e “descobrindo pistas” que levem a Kricolas, logo ela terá mais poder do que GAW.

- Dorian não tem controle sobre GAW. Mas tem sobre as milícias. – deduziu Kal agilmente.

- É. Mas para quê ele quer essa disputa? – prosseguiu Daimon.

Os três deram de ombros.

- Chega disso. Vamos comer alguma coisa.

Na cozinha, Ralph destapou algumas panelas que sua mãe colocara para cozinhar e descobriu alguns pratos que pareciam deliciosos. Eles serviram-se com um caldo de galinha com milho verde e um tempero apimentado.

Depois de limparem a panela, no sentido literal, eles passaram um tempo sentados na sala conversando sobre diversos assuntos. Kal contara a experiência que tivera no circo quando foi atacado por Griphons e como ele usou o feitiço que aprendera com Saguior para salvar-se e também a Sara. Seu coração palpitou quando disse o nome dela.

- Kal está apaixonado pela garota. – disse Guinevere interrompendo a história.

Ralph fez uma cara de surpresa.

- E a Emanuela?

- Não presta atenção no que essa boba diz.

- Está escrito na sua testa, Kal. “EU AMO SARA”.

- Vivemos em mundos diferentes. – protestou Kal.

- Vocês são vizinhos. – corrigiu Ralph, rapidamente.

- Tudo bem. O que mais temos em comum?

- Simetria bilateral. – disse Daimon distante – A desculpe.

- Você está certo, Daimon.

- Kal, ela é humana, você é humano, ela gosta de você, você gosta dela. – disse Guine por partes – Isso são o que vocês têm em comum e é mais do que o suficiente.

- Por que você está tão interessada em nos ver juntos? – perguntou Kal - Algum motivo em particular?

- Ela odeia a Emanuela. – disse Daimon, mais uma vez, enquanto brincava com os dedos – Desculpa outra vez...

- Você está certo de novo, Daimon! – falou Kal, enfático.

- Escuta, aquela sebosa nem deve saber que você existe.

- Passamos metade do ano juntos! – retrucou.

- Em reuniões do Conselho Estudantil, Kal. Mas quantas vezes ela te disse um “oi”?

Ele abaixou a cabeça e ficou pensativo. O que ela dissera sobra Emanuela era verdade. A katziniana nunca demonstrara interesse por ele. Passaram metade do ano lado a lado em uma sala do sexto andar de Avalon, porém nunca trocaram uma única palavra.

- Talvez ela seja tímida. – falou Daimon do seu canto e desta vez resolveu calar a boca, em definitivo.

- Garotos...

Às onze horas, Ralph levou os três para o segundo andar e mostrou-lhe os quartos. Um para cada. Kal não fez cerimônias e atirou-se em cima da sua cama para uma rápida descansada. Preguiçosamente, levantou-se e tomou um demorado banho de espuma, atirou-se na cama outra vez, enrolou-se nas cobertas para se proteger do frio que fazia dentro do quarto, mesmo sendo verão e o aposento não ter uma única janela – nenhum cômodo da casa tinha – era como se o Vale Cratera possuísse um sistema de resfriamento invisível.

O sono veio com facilidade e ele descansou seu corpo e mente dos dias de tensão. Kal ainda pensava na injustiça cometida contra Saguior e ficou raciocinando por alguns minutos até cair em um abismo escuro... tranqüilizante.

Na manhã seguinte, ele foi o último a se levantar, como sempre acontecia. Arrumou sua cama, mudou de roupa e desceu para o café. Guine, Daimon e Ralph já o estavam terminando e quando Kal mordeu seu primeiro pedaço de bolo, os três disseram que iam para fora ver Osíris, o falcão de Ralph.

Kal acenou com a cabeça em gesto de compreendimento e depois que engoliu o bolo disse que logo se juntaria a eles. Após beber o restante do seu suco de maracujá em um único gole, ele ainda passou alguns minutos sentado na cadeira observando o ambiente.

A cozinha dos Scheiffer não diferia muito da de sua casa. Possuía alguns balcões grudados à parede, uma pia grande de mármore, alguns armários pendurados no alto da parede e outro armário que tinha a mesma função de uma geladeira, mas não era elétrico e sim mágico. Um fogão com seis bocas e um forno que seria capaz de assar um leitão inteiro. O chão era coberto com uma combinação de pisos de cerâmicas branca e cinza parecendo um enorme tabuleiro de xadrez. A mesa do café estava próximo à parede onde havia pendurado um quadro gigante com uma paisagem natural, dando uma falsa impressão de que alie havia uma janela.

Ele serviu-se de mais um pouco de suco e quando recolocou a jarra em cima da mesa viu através do reflexo por ela produzida, uma figura masculina muito familiar escorada na porta de cedro de acesso à sala.

- Pai! – exclamou Kal, virando-se rapidamente, mas não havia ninguém.

Mais uma vez frustrado por ter sido enganado por sua mente esperançosa e iludida, ele terminou rapidamente seu suco e saiu da cozinha para procurar Ralph, Guine e Daimon. Ele não podia esquecer o que vira. De forma alguma. Sabia da existência de fantasmas, mas não tinha muita certeza sobre a forma que eles se mostravam. De qualquer modo, ele ouvira Adonis antes, e agora o vira quase que nitidamente. E isso não era um fato para se ignorar.

Kal passou pelas portas duplas da entrada e deparou-se dentro de uma caverna. Havia um corredor de pedra escura que separava a entrada da casa até o lado de fora. Um jardim muito bem cultivado guardava a abertura dentro da pedra que subia ingrememente até uma floresta no topo do vale. Kal olhou para um dos lados e viu um canteiro coberto por plantas mágicas chamadas Fantara d’ouro, uma planta que muito se assemelhava a um girassol comum, exceto pelo caule vermelho e cheio de pequenos tubérculos que ardiam como brasa ao sol.

- Oi. – cumprimentou Kal sentando-se junto aos amigos nas margens de um pequeno lago.

- Não é tão grande quanto o de vocês, mas dá para o gasto. – brincou Ralph.

- Você mora em um lugar bem legal. – disse Daimon.

- É, é legal sim. – concordou – Mas já imaginaram como seria morar em um lugar como Cidade dos Elfos?

- Seria legal. – imaginou Daimon – Não sei por que Cacius não nos mandou para lá ao invés de Anomatí.

- Ele me disse que Cidade dos Elfos não é mais como antes. – respondeu Kal, atirando uma pedra no lago. Ela quicou algumas vezes antes de afundar – Você sabe de alguma coisa, Ralph?

- Sei que ela está sob a vigilância das milícias de Dorian. Só isso.

- E GAW? – indagou Guine.

- Dorian disse que a presença de GAW não transmitiria “segurança” para os moradores de lá.

- Não acredito...

- Esse é o nosso ministro, Guine.

- Podemos deixar esse assunto de lado pelo menos por agora? – perguntou Daimon desanimado com o rumo da conversa.

- Alguém sabe de Thalis? – perguntou Ralph seguindo a sugestão do amigo.

- Ele não escreveu. – disse Kal – Mas duvido que saiba onde estamos morando agora.

- Podemos enviar um recado por Osíris. – disse Ralph acariciando a cabeça do falcão ao seu lado.

Os três entraram novamente na casa, Ralph subiu rapidamente para pegar um pergaminho e uma pena com tinteiro para iniciarem a carta.

- Papai trouxe está pena da Inglaterra mês passado. É uma pena que escreve o que se diz, legal, não? – disse Ralph entusiasmático – Vamos testá-la.

Thalis,

Oi... não se deve começar uma carta assim, acho... RALPH! A pena escreveu o que você disse! Certo, Guinevere, olha, está escrevendo isso também... vamos seguir então. Faz um parágrafo, pena.

Isso. Droga, continua escrevendo. Outro parágrafo.

Desculpe pelas linhas acima, foi um erro nosso. Como deve ter percebido é o Ralph quem está ditando a carta, Guine, Kal e Daimon estão aqui em casa, eles vão ficar o restante das férias comigo, só faltou você e o Jonathan, que segundo o Daimon está de férias na Argentina. Mas como você está? Espero que esteja bem, nosso último ano não foi muito fácil, especialmente para você... RALPH! Não fique lembrando essas coisas... Por Merlin, a porcaria da pena escreveu tudo. Guine, você está estragando a carta. Outro parágrafo.

Desculpe outra vez Thalis, acontece que a pena escreve sozinha o que nós dizemos, mas ela não é boa o suficiente para entender o que faz parte da carta ou não. Vai entender.

Mande notícias pelo Osíris mesmo, precisamos saber de você. Outro parágrafo, pena, e pule uma linha.

Assinado, dois pontos. Não acredito! Que pena burra! Pula outra linha.

Aguardamos sua resposta. Pula linha...

Assinado: Ralph. Eu quero assinar também, põe aí pena, embaixo de Ralph

Guine... vai, pena, coloca Kal e Daimon também embaixo de Guine. Ah Ralph, eles que tinham que dizer. Então digam...

Kal e Daimon

Ralph isso precisa de conserto...

Percebi, Daimon... percebi...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Capítulo 6 - A Caixa de Pandora

Após o sexto insistente toque, Kal puxou o gancho do telefone e com um ligeiro temor colocou-o na altura do ouvido direito. Nos dois primeiros segundos torceu para que fosse um engano e que seus piores pensamentos não se concretizassem. Naquelas férias, por inúmeras vezes, ele assistiu a filmes na televisão em que telefones explodiam ao serem atendidos, mas achou que ninguém que ele conhecia tinha esse estilo.

- Boa noite, pequeno Foster.

Todo o sangue de Kal congelou ao ouvir aquela voz grave que penetrou em seus ouvidos e o fez oscilar em cima dos joelhos. Somente uma pessoa o chamava de pequeno Foster. E não era o mais carinhoso de todos, muito menos o seu predileto. Era Kricolas.

- Gostou do meu show? – falou mais uma vez, com se nem ao menos se importasse de ter alguém consciente do outro lado da linha – Tenho muito mais criatividade do que esses humanos bobocas que se dizem mestres de espetáculo.

- O que você quer? – perguntou Kal reunindo toda a coragem que ainda tinha.

- Conseguir um pouco de divertimento, mas meu prêmio maior seria você. – disse Kricolas em um tom anormalmente sereno – E veja como isso soa romântico. Parece até mesmo um pai pedindo para o filho retornar ao lar.

- Já não nos causou sofrimento demais?

- Não venha falar de sofrimento comigo! – retorquiu com fúria – Você e seus malditos antepassados Foster arruinaram meus planos por diversas vezes! Aquele primeiro e amaldiçoado que tive o gosto de matar destruiu meu mestre e nossos seguidores, e então seu filho, argh! Garner Foster! MISERÁVEL, nunca tive a oportunidade de beber aquele sangue! Construiu Warren e deixou-me apodrecendo por quase um milênio! Depois, seu querido pai, Adonis Foster, um perfeito intrometido para completar a linhagem. Meteu-se onde não deveria e fui obrigado a matá-lo. Sem falar nas outras tantas gerações de Foster que comandaram aquele maldito cativeiro que me consumiu quase por inteiro. Mas você, pequeno Foster, é o meu favorito, a minha sina... me pequeno milagre. Devo dizer que você ganhou o meu respeito por ter sobrevivido ao feitiço que matou seu pai, é claro que...

- Cale a boca! Cale a boca! Não fale do meu pai! – gritava Kal, enquanto Guine, Daimon e Sara olhavam para ele preocupadíssimos.

- Não ouse me interromper, se não irei pessoalmente me certificar de que você jamais fará isso de novo. – retrucou Kricolas com impaciência. Neste momento, Kal fez menção em largar o telefone, mas como se estivesse sendo observado de perto, o meio-vampiro rugiu.

- Não desligue, ou os pais de sua amiguinha humana sofrerão.

Kal sentiu toda a seriedade na voz de Kricolas e apenas assentiu que sim esperando que tivesse sido entendido.

- Como dizia antes de ser interrompido, – prosseguiu numa voz cordial – aquele dia você somente sobreviveu graças ao presente de Cacius. Aquela ametista sugou o meu feitiço e permitiu que você vivesse para sofrer mais um pouco. Mas foi bom que tenha acontecido. Tenho planos para você este ano, pequeno Foster. Como lhe disse na Cidade dos Elfos, meu mestre mora em você e com um pouco da minha ajuda e os exercícios certos ele poderá renascer em meio ao sangue que um dia o destruiu. Não seria irônico?

- Eu nunca vou cooperar com você! – disparou.

- Com a motivação correta irá sim, irá sim...

- O que você quer de mim ainda, Kricolas? Não se dá por satisfeito? Você matou os pais de Guinevere, e toda a família de Thalis – disse Kal puxando as informações da memória – Mais recentemente Mardo, não é? Para quê isso? Por que causar sofrimento nas pessoas? Monstro! – berrou Kal e teve certeza de que todos ao alcance de uns dez metros ouviram-no com clareza.

- Você ainda não descobriu qual o meu objetivo? Quer que eu desenhe? – debochou – Ora, pequeno Foster, pode ter coragem e determinação, mas não tem um bom cérebro. Eu não faço as pessoas sofrerem, apenas julgo se elas são descartáveis ou não para o meu propósito de ressuscitar meu mestre. Você ainda não é descartável, preciso de você vivo. Mesmo que não pareça. Este ataque foi apenas uma forma de me manter vivo em sua memória. E também tenho uma motivação pessoal de irritar os homens do governo. Uric Scheiffer, ainda o pego...

- Você nunca o pegará! Ele é um... – Kal parou abruptamente percebendo que Kricolas não estava mais do outro lado da linha após ouvir o sinal do telefone.

Kal colocou-o no gancho e olhou para Guine e Daimon, apático. Os dois o encararam com certa curiosidade, mas decidiram não comentar nada na frente de Sara. Kal, no entanto, não a poupou de nenhum detalhe da conversa, imaginando que algum guarda de Warren iria desmemoriá-la ainda naquela noite, como sempre faziam com não mágicos quando estes descobriam algum segredo sobre os bruxos.

- Quer dizer que Kricolas fez toda essa barulheira para chamar a sua atenção? – indagou Guinevere, incrédula – Ele não queria mesmo matá-lo? Ele fez aquelas criaturas o arrastarem para um lugar vazio apenas para assustar?

- Foi o que pareceu. – confirmou Kal, secamente.

- Quem é Kricolas? – perguntou Sara mostrando-se por fora do assunto dos amigos – Quem são vocês? Ou o que são vocês? Quem são aquelas criaturas e por que elas atacaram a todos no circo sendo que esse tal de Kricolas só tinha interesse em vocês três?

- Kricolas é um meio-vampiro sanguinário em busca de vingança pelo seu mestre morto por nosso antepassado, ah, ele também quer ressuscitá-lo usando um artefato mágico que ele roubou ano passado. Somos bruxos, mas ainda assim humanos como você ou qualquer outra pessoa. E respondendo a última, Kricolas ordenou esse ataque em massa porque ele é pirado. – respondeu Daimon, quase perdendo o fôlego porque estavam andando apressados até o carro dos Chiabai.

- Vocês? Bruxos? – repetiu incrédula.

- Levitoriano! – disse Kal acertando uma lixeira e fazendo-a levitar – Acredita agora?

- Bruxos não existem! Magia não existe!

- Existe sim, e aqui estamos nós. Também existem fadas, elfos, saci, curupira e tudo o mais que você leu em livros ou ouviu em histórias. – retorquiu Daimon com seriedade.

- Sara, é muito importante que tudo o que você viu hoje seja mantido em segredo. – disse Guinevere olhando fundo nos olhos da garota.

- Não há com o que se preocupar, Guine, alguém irá desmemoriá-la. – falou Kal.

- Você quer dizer, fazer eu esquecer tudo o que aconteceu? – perguntou com a mão na cintura – E se eu não quiser?

- Eles te amarrarão e farão assim mesmo. – finalizou Daimon, sem demonstrar nenhum tipo de ressentimento.

- Não podem! Não quero! – exclamou furiosa.

- E não iremos. – disse uma voz. Era Ivo – O que ainda fazem no parque?

Por um momento, Kal pensou em falar da ligação que recebera, mas achou que aquela informação não era necessária para Warren. Seu bom-senso dizia que sim, mas um lado de seu cérebro ficara relutante em contar. Esse lado venceu.

- Estamos saindo. – desculpou-se Kal.

- Não quero que apague minha memória! – disse Sara com bravura.

- E como já disse, não vou. Tenho ordens para deixá-la como está. No entanto a memória de seus pais já foi alterada. Como a de todos os outros não mágicos no parque. – informou Ivo.

- E por que ainda estão gritando? – perguntou Daimon olhando para trás e vendo ainda um resquício de pessoas desesperadas.

- Eles, agora, acham que os Griphons são vândalos disfarçados. Pobres ignorantes...

- Hei! – resmungou Sara.

- Desculpe. – disse honestamente – Sem enrolação, quero que vocês vão imediatamente. – frisou – É muito importante que fiquem seguros.

Os quatro acenaram com a cabeça e correram desenfreados. Sara sentiu um alívio imenso em sua cabeça sabendo que não perderia parte de suas lembranças, mas ainda seria difícil para ela aceitar que tinha amigos com poderes mágicos e que na cola deles havia um meio-vampiro assassino.

- Vocês têm mais algum inimigo? – perguntou.

- Kricolas não é nosso inimigo em particular. – respondeu Kal – Ele é inimigo de toda a comunidade mágica.

- Comunidade mágica? Quantos mais de vocês existem?

- Milhões no Brasil. Existem bruxos vivendo por todos os cantos, até mesmo embaixo da nossa lagoa. – disse Kal, como se o que estivesse falando fosse a coisa mais sensata do mundo para um não mágico.

- O quê? – espantou-se – Eu tomava banho lá quando era criança.

- Aquele é um lugar novo para os bruxos. Mas existem outros lugares muito mais antigos do que o próprio Brasil, entende?

Sara assentiu, mas resolveu continuar com o questionário.

- Onde vocês aprendem a fazer magia?

- Em uma escola, naturalmente. – respondeu Daimon.

- Será que um dia eu poderia conhecê-la?

- Duvido muito. Humanos sem poderes mágicos não têm acesso às cidades mágicas. Já é uma grande coisa você poder saber da nossa verdadeira existência. – disse Guine.

- Não entendo ainda por que permitiram que você soubesse de tudo. – disse Daimon, reflexivo.

- Ivo disse que tinha ordens de não trabalhar com a mente de Sara. Mas de quem será a ordem? – questionou-se Kal.

- Olha lá os meus pais.

Sara correu por entre os outros carros do estacionamento até que finalmente alcançou os braços abertos de Alexandre e Mara Chiabai.

- Graças a Deus vocês estão bem. – disse Mara – Dois policiais nos disseram para esperarmos aqui... não pudemos fazer nada... Kalevi! Este braço, está, está... – gaguejou procurando a palavra certa – Horrível!

- Está tudo bem comigo, sério. – disse meio que sem confiança enquanto segurava o braço contra o corpo.

- Depressa. Quanto mais rápido sairmos, mais seguros. – disse Alexandre já segurando a chave do carro.

Kal abriu a porta de trás do sedan e entrou com tanta pressa que nem ao menos reparou que sentara em um envelope amarelo. O carro foi ligado e em alguns minutos de estrada, os quais foram usados para comentar a “rebeldia dos jovens que atacaram o parque”. Os quatro garotos entreolharam-se e por um momento Sara sentiu inveja da inocência a que os pais foram forçadamente submetidos.

Alexandre guiou o veículo até alcançar a extremidade máxima da Rua Guaçuí. Kal, Daimon e Guinevere saltaram do carro atentos para qualquer movimento ao redor deles. Os três agradeceram aos Chiabai pelo “passeio” e despediram-se. Antes que o carro sumisse de vista, Sara gritou para eles que na manhã seguinte, logo após o café, ela iria visitá-los para continuar o assunto da noite. Na verdade foi um “Até amanhã cedo”. Mas podia sim ser interpretado dessa forma.

Kal abriu o portão utilizando a varinha, não queria perder nem um segundo do lado de fora procurando a chave certa. Atravessaram o jardim, fortemente vigiado pelas estátuas vivas que ganharam da Rainha Eva. Alguns gnomos apenas balançaram a cabeça ao vê-los passando, outros correram para escoltá-los até a porta.

- Obrigada. – agradeceu Guinevere, alisando a careca de um deles.

- Meninos! – disse Amanda saltando do sofá em direção à porta – Vocês nunca mais sairão à noite!

- Estamos bem, mãe. Não se preocupe. Soubemos nos defender.

- E os guardas de Warren? Não apareceram? – perguntou indecisa.

- Sim. Um tal de Ivo Gostuânia nos ajudou também. – respondeu Kal.

- Por Merlin! Apenas um?

- Não sei dizer, mas acho que havia outros sim. O movimento dos Griphons foi rapidamente contido, depois que o Ivo se identificou como guarda. Acredito que outros tenham lutado por lá. – prosseguiu Kal.

- E os Chiabai? Como estão?

- Acredite, estão melhores do que a gente. – disse Daimon – Os guardas tiraram a memória deles e de todas as outras pessoas que estavam lá. Fizeram todas acreditarem que foi um ato de vandalismo.

- Quase todas, Daimon. – corrigiu Guine.

- Como assim?

- Sara Chiabai teve a memória preservada.

Amanda levou uma mão à boca e caiu sentada no sofá.

- Mas por quê?

- Ivo disse que ele tinha ordens de não mexer com as lembranças dela. – informou Kal, vagamente.

- Quer dizer que ela sabe dos Griphons?

- E de nós também. – Kal resolveu omitir mais uma vez a parte sobre Kricolas.

- Por mil escamas de dragões... quem deu essa ordem?

- Não sabemos. – disse sinceramente, Guinevere.

- Amanhã falarei imediatamente com o professor Cacius. Agora, tomem um banho e durmam. Não quero saber de mais nenhum detalhe desta noite, ou nunca mais conseguirei dormir. Kal, filho, depois do banho vá até meu quarto para cuidarmos deste ferimento. – disse ela apontando para o braço ensangüentado do garoto.

Kal não se importou em nada em não ter que contar a mãe sobre suas aventuras dentro do circo e no trem fantasma. Sentiu apenas uma imensa vontade de limpar todo o corpo com água fria, tratar o braço ferido e ir dormir. Uma noite de sono seria o suficiente para refrescar a sua mente de tudo aquilo. Na manhã seguinte, Sara chegaria até eles com uma vasta lista de perguntas e sem saber por que, Kal sentia-se na obrigação de respondê-las. Más só amanhã... Pensou.

Muitas horas depois, Kal foi acordado por um irritante raio de sol que penetrou pela janela e repousou bem em cima de seus olhos. Uma noite de sono não fora o suficiente para recuperar os ânimos do garoto que levantou soltando impropérios que acordaram Daimon em seguida.

- Bom dia... – falou Daimon, espreguiçando-se em meio a um longo bocejo.

- Bom dia. – respondeu Kal acompanhando o irmão no bocejo – Isso pega...

Os dois desceram até a cozinha, ainda de pijamas, para tomar o desjejum. Lá estava Guinevere, que sempre levantava cedo, não importando a ocasião, e Amanda que estava segurando uma garrafa de café quente na mão quando os dois entraram fazendo barulho com o arrastar de pés.

- Dormiram bem? – perguntou Amanda – Porque eu não. Um dia meu coração ainda escapole pela boca. Se eu pudesse enviá-los mais cedo para Avalon eu ficaria muito mais tranqüila. Mas as Repúblicas ainda estão fechadas e não quero incomodar a Rainha Eva com minhas preocupações maternas.

- Tudo bem, mãe. Não há perigo aqui em casa. Estamos bem protegidos. – tranqüilizou Kal, imaginando que talvez a mãe mudasse de idéia quando ouvisse Cacius dizer que Cidade dos Elfos não era mais um lugar seguro.

- Olhe para o seu braço! Isso é proteção? – apontou para os ferimentos do garoto.

- Não vai passar disso. – falou Kal mantendo a calma.

- Não vai mesmo! Daqui vocês não saem mais. – disse em definitivo – Nem mesmo de dia. Não posso arriscar perder vocês. São tudo o que eu tenho...

Os três puderam sentir a comoção na voz de Amanda e não quiseram chateá-la com desculpas de que lá fora não era perigoso. Afinal, faltavam apenas duas semanas para as aulas recomeçarem em Avalon e na Cidade dos Elfos eles teriam muito mais liberdade para agir.

- Ok, mãe. Combinado. Não sairemos mais... – disse Daimon tentando disfarçar o desânimo.

Os quatro sentaram-se para tomar o café e comer um pão feito pela própria Amanda. Os programas de culinária que ela assistia na televisão estavam realmente valendo a pena. A cada dia ela aparecia com uma massa diferente de pão e bolo, além de receitas de sobremesa de encher os olhos e a boca com saliva.

Kal ainda estava com seu último pedaço de pão a meio caminho da garganta quando a campanha do portão de entrada tocou. De imediato ele soube que era Sara. Ele apressou-se a tomar mais um gole de café para facilitar a descida do alimento e correu para o segundo andar a fim de se trocar.

Ele subiu a largos passos pensando no que Sara perguntaria ainda. Afinal, ela já sabia que eles eram bruxos, que eram perseguidos por um meio-vampiro e que as criaturas da noite anterior serviam a ele, Kricolas. Kal inclusive usara a varinha na frente dela. E ainda tinha Ivo que revelou à garota sobre o que ele e os outros de Warren estavam fazendo com os não mágicos e que fizeram o mesmo com o senhor e senhora Chiabai.

Kal retirou a primeira peça de roupa do guarda roupa e jogou-se dentro dela o mais rápido que pôde. Ainda estava enfiando uma das mãos na manga da camisa quando retornou ao primeiro andar. Sara estava de pé ao lado de Amanda, Guinevere e Daimon. Amanda estava séria e ordenou que os quatro a acompanhassem até a cozinha. Eles seguiram em fila. Sara parecia mais nervosa que os demais. Não podia ser diferente.

- Sara, - começou Amanda olhando bem nos olhos dela – precisamos que entenda que não somos pessoas ruins. Eu sei como os não mágicos deterioraram a história dos bruxos através dos séculos. Nos associam a tudo o que é ruim, mas não é bem assim. Existem bruxos bons e bruxos ruins. Nós somos os bons e ontem você viu o que bruxos ruins são capazes de fazer. Compreende?

A garota acenou que sim com a cabeça, parecia menos nervosa naquele momento.

- Por que vieram para cá? – perguntou, honestamente, imaginando-se por que uma família de bruxos se mudaria para uma cidade habitada somente por humanos comuns.

- Coisas terríveis aconteceram conosco no ano passado. – respondeu Kal percebendo que sua mãe seria incapaz de responder a essa pergunta simples.

- Que coisas? – insistiu.

- Desculpe, mas essa é uma ferida que está cicatrizando ainda. Não queremos remoê-la. – disse Amanda em tom convincente.

- Nossa vizinhança corre algum perigo com vocês estando por aqui?

- No tempo em que vivemos, todos os humanos correm perigo. Bruxos ou não. - prosseguiu Amanda com temor na voz.

- Como assim? – indagou mais uma vez Sara, mostrando-se obstinada a obter todas as informações.

- Essa história pode ser muito maior do que pensa. – iniciou Guinevere – Mas vamos fazer um breve resumo.

Ela concordou com a cabeça.

- Há alguns anos, o meio-vampiro, Kricolas, fugiu da penitenciária de Warren. – informou Kal – Ele tinha um mestre chamado Donnovan, que foi destruído por um antepassado nosso. Enfim, como Daimon explicou para você ontem, Kricolas roubou um artefato mágico poderoso para ressuscitar o tal mestre. Donnovan é um bruxo cruel e que odeia não mágicos. Ele quer acabar com todos vocês.

- Quer dizer... eliminar todos que não tiverem poderes como vocês?

- Isso. – confirmou Daimon – Mas acreditamos que ele vai querer uma vingança antes. Por isso estamos aqui. Nos escondendo.

- Pai! – exclamou com a mão na boca – Vocês correm sério risco de vida...

- Nem tanto. – interrompeu uma voz.

Quando Sara percebeu que o falante era um gato cinza que estava sentado no parapeito da janela ela deu um salto para trás.

- Esse gato... ele fala? – perguntou incrédula apontando para o felino com o indicador direito enquanto a mão esquerda segurava o queixo para que não caísse.

- Mais respeito! Eu não sou um gato. Sou um guarda de alto-posto em Warren. – declarou.

- Algum problema, Stuart? – perguntou Amanda reconhecendo o gato.

- Vim apenas conferir se está tudo bem por aqui.

- Estamos. – disse Kal.

- E a garota? – perguntou espiando Sara – Soube que Uric deu uma ordem para não desmemoriá-la.

- Uric Sheiffer permitiu isso? – questionou Amanda.

- Sim, senhora. Uric é o único em Warren que tem poder para essa decisão.

- Stuart, o Folha Mágica publicou alguma coisa sobre o incidente de ontem? – indagou Amanda mudando de assunto.

- Sim, em uma notinha de rodapé. Eles ocuparam todo o jornal com uma única e grandíssima matéria.

- Que tipo de matéria poderia ser de maior destaque do que um ataque de Griphons em uma cidade não-mágica?

- A de um roubo muito, muito estranho. Também realizado por Kricolas. – disse o guarda.

- E quem foi roubado? – perguntou Sara já se sentindo parte daquilo tudo.

- O fauno Saguior. – respondeu Stuart com uma má vontade estampada em seus olhos felinos por estar dando informações a uma simples garota humana.

- Saguior? – duvidou Kal – O fauno que faz parte do Conselho de Magia?

- O próprio.

- O que foi roubado dele? – perguntou Amanda curiosa.

- Leiam vocês mesmo. – disse o gato estendendo a cauda, que enrolava o jornal.

O mal pode estar à solta

Foi roubado da Biblioteca Central da Cidade do Norte, ontem, um dos artefatos mágicos mais antigos e controversos da antiguidade. O artefato era guardado em sigilo pelo fauno Saguior que amargamente lamentou a perda. Segundo ele, pela manhã uma garota chamada Tamisa Spineli apareceu na biblioteca procurando um inocente livro de poções, ele a deixou sozinha por um tempo e segundo suas suspeitas ela averiguou onde ele guardava o artefato.

Na mesma noite, Saguior foi surpreendido por ninguém menos do que Kricolas. O meio-vampiro parece estar colecionando artefatos mágicos antigos. No ano passado, ele localizou o lendário Livro de Merlin, carregando-o consigo. No entanto, Saguior tem seus temores, pois o artefato mágico em questão era nada mesmo do a Caixa de Pandora.

Segundo lendas populares e alguns relatos históricos, a Caixa de Pandora abriga os males do mundo. Emoções terríveis, como, ódio, inveja, desprezo... Questionado pela nossa equipe o por que dele estar com a caixa, Saguior simplesmente respondeu “protejo a caixa muito antes de todos que existem no mundo usarem fraudas”. Sabe-se que Saguior é uma das criaturas mágicas mais antigas existente, mas não sabemos o quanto. Essa informação a nós não foi revelada.

Alguns bruxos que trabalham no Departamento Secreto do Governo acreditam que Kricolas pretende abrir a caixa e lançar sobre a Terra um reino de maldições, mas o enigmático Cacius Henrique, diretor da Escola de Magia e Feitiçaria de Avalon, rebateu a teoria dizendo que nenhuma pessoa com más intenções poderia remover a tampa da caixa.

O novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica, Dorian Gulemarc, afirmou que Saguior cometeu um grave erro ao não passar a responsabilidade de proteger a caixa para o governo. Segundo o ministro, Saguior possui um temperamento egoísta e de difícil compreensão, mas ele não acredita que o fauno seja totalmente inocente nessa história. “Admito que Saguior é um dos seres mais poderosos que já conheci. Por tal fato, não acredito que alguém pudesse arrancar qualquer coisa dele, mesmo esse alguém sendo Kricolas. Se Saguior foi confiado à caixa ou não, jamais saberemos ao certo, mas para mim ele facilitou o lado dos vilões. Por isso abri uma investigação minuciosa e esta noite teremos uma reunião no Conselho de Magia para decidir o futuro dele”, disse hoje cedo em nossa redação.

O que nós cidadãs podemos fazer é torcer para que os problemas se resolvam e os culpados sejam punidos com a varinha da lei.

- Inaceitável! – exclamou Amanda – A Caixa de Pandora! Aqui, no Brasil! Na Cidade do Norte... não faz sentido...

- Estou tão surpreso quanto a senhora. – disse Stuart – Esperaremos até à noite para sabermos o que vai acontecer a Saguior, mas duvido que o ministro vá facilitar o lado dele.

- Isso tudo é injusto. – protestou Kal – Saguior nunca faria nada para prejudicar ninguém.

- Você o conhece? – perguntou Sara perplexa com todas aquelas novidades.

- Sim. – respondeu. Guinevere e Daimon o olharam curiosos – Por que não vamos lá pra cima. – sugeriu – Mamãe e Stuart devem estar querendo conversar.

Antes mesmo que Amanda fizesse um sinal em protesto, Kal já havia desaparecido da cozinha com Daimon, Guine e Sara em seus calcanhares.

Os quatro subiram agitados até o quarto de Kal e Daimon. Kal olhou para o lago pela janela e começou a falar.

- Quando Cacius me levou até Celacanto. – disse apontando para o centro do lago – A cidade que eu disse ficar lá no fundo. Pois bem, fomos até lá e eu entrei com ele na sala de reuniões do Conselho de Magia. Saguior estava lá também. Mas quando foi realizada a votação para eleger o novo ministro, nós dois tivemos que nos retirar e Saguior me levou para uma sala de treinamento, ou sei lá o que era aquela sala. Enfim, ele me ensinou um feitiço de proteção diferente do Réplica. O mesmo que usei para nos proteger dos Griphons, Sara – disse olhando fixamente para a vizinha com cumplicidade – Dorian Gulemarc insultou Saguior e Cacius o defendeu com unhas e dentes, entendem o que eu digo?

- Cacius tem plena confiança nesse Saguior. – adivinhou Daimon.

- Exato! Cacius não costuma se enganar quanto as pessoas. E Saguior também me pareceu ser digno de confiança.

- Acha que Dorian está inventando coisas, então? – indagou Guinevere, Sara assistia a tudo impassível.

- Dorian é o pior tipo de bruxo que já conheci. – comentou Kal.

- Pior do que o Kricolas? – questionou Sara ajeitando-se na cama onde estava sentada.

- Muito pior. Ele é mascarado. Disfarça seus planos e artimanhas. Ele armou para cima de Bernardo Mcflex, lembram-se dele?

- Escritor da Terra? – certificou-se Guinevere.

- Ele mesmo. Com investimentos do setor em que Dorian trabalhava, Bernardo produziu um pó capaz de esfumaçar qualquer pessoa para qualquer lugar. Como ninguém além de Bernardo sabia que o produto fora custeado pelo governo, Dorian quis lucrar um pouco, mas foi desmascarado em frente ao conselho, porém deu a volta por cima e culpou Bernardo e se não fosse pela interferência do pai de Ralph estaria preso agora.

- Que horror! – espantou-se Guine – Mas qual o propósito de manter Saguior longe?

- Isso eu já não sei. Mas tenho certeza de que ele fará de tudo para mandar Saguior para Warren. – concluiu Kal.

- E esse Cacius? Não fará nada? – perguntou Sara, por dentro do assunto.

- Cacius é apenas um membro do Conselho, seu voto pode não fazer diferença. – desanimou Kal – Fazendo as alianças corretas, Dorian poderá conseguir o que quiser. Ainda mais agora no posto de Ministro da Defesa e Segurança Mágica.

- E o que vocês podem fazer a respeito? – indagou Sara, erguendo-se da cama.

- Eu vou até a Celacanto hoje à noite. – disse Kal com um tom aventureiro na voz.

- Tia Amanda disse que não deveríamos sair mais de casa. – protestou Guinevere com bravura.

- Não vou sair de casa. Celacanto está no meu quintal. – respondeu Kal ironicamente.

Guinevere levou uma mão na testa em ar de derrota e disse:

- Ok. Kal, não nos deixariam participar da reunião. Não somos membros do conselho!

- Eu sei, Guine. Mas quero estar lá, não importa o quanto custe.

- Tudo bem, nós vamos. – frisou – Não vou deixar você sair por aí sozinho.

- Posso ir também? – perguntou Sara posicionando-se na janela para ver o lago.

- A sorte lhe sorriria mil vezes antes que te deixassem entrar em uma cidade mágica. – respondeu Daimon com um sorriso nos lábios.

- Como assim?

- Existem vários encantamentos que protegem nossas cidades da presença de na mágicos. – respondeu.

Sara baixou o rosto em desânimo, mas não se deixou ficar abatida, logo o ergueu e disse com um perceptível ar de alegria recheando cada uma de suas palavras.

- Estou honrada por vocês estarem compartilhando tantos segredos comigo. Estou mesmo. Nunca imaginei que um dia estaria conversando com bruxos de verdade, muito menos descobrir que o lago em que passei metade da minha infância é uma cidade mágica. Sabe, este está sendo o melhor ano da minha vida e espero que ele só fique melhor até o final. Saibam que o segredo de vocês está seguro comigo, não sei como poderia provar isso, mas espero que minha palavra baste. Já os considero amigos e torço para ser correspondida. – neste momento ela fixou sua atenção em Kal que ficou levemente corado – Qualquer ajuda que precisarem vocês sabem onde me procurar. Agora, tenho que ir.

Sara deu um sorriso de despedida e saiu do quarto tranqüilamente, dali era possível ouvir o som que seu tamanco produzia no assoalho e meio segundo depois ouviram ela se despedindo de Amanda.

- Acha que ela é confiável? – perguntou Guine a Daimon.

- Acho. – respondeu Kal instintivamente.

- Eu perguntei ao Daimon. – repreendeu Guine.

- E porque não a mim?

- Porque opinião de quem está apaixonado não conta.

Os três amargaram com as horas até o pôr-do-sol. Amanda nem ao menos desconfiava o que eles tramavam. Assim que a lua iluminasse a superfície da água do lago, eles chamariam por Viviane para que juntos pudessem chegar até Celacanto.

No momento em que o sol se pôs, eles prepararam-se para a janta, correndo até a cozinha para fugir dos olhares inquisidores de Amanda comendo alguma coisa. Em seguida, eles sentaram-se no sofá com Amanda para assistirem um pouco de televisão, ela agora parecia ter se acostumado com a magia circulante dentro da casa e já estava funcionando bem melhor.

A lua já brilhava alto lá fora e os três estavam inquietos quando finalmente Amanda subiu para tomar banho eles não perderam tempo para agirem. Correram até a margem do lago e Kal tentou se lembrar de como Cacius fizera para chamar a mulher da gôndola.

- Talvez eles mantiveram contato mental. – sugeriu Daimon.

Kal forçou sua memória e aproximou-se ainda mais da margem do lago. O vento já empurrava a água até seus pés, como antes. Ele sacou a varinha e com a sua ponta tocou a superfície do lago. Imaginou que Cacius pudesse ter usado um feitiço, mas ele não se lembrava de tê-lo ouvido usando, ou ter visto algum efeito, geralmente os feitiços produziam clarões bem perceptíveis.

- Viviane, você pode vir nos buscar? – perguntou Kal, por impulso.

Uma névoa cobriu toda a extensão do lago, como se ele estivesse evaporando rapidamente.

- O que é aquilo? – perguntou Guinevere apontando para uma sombra que se aproximava. Era Viviane com sua gôndola, sem remos ou motores.

- Boa noite, meninos Foster. Boa noite para você também senhorita Lingenstain. – saudou Viviane – Podem subir.

Kal subiu primeiro ajudando Guinevere e Daimon em seguida. A gôndola recomeçou a se mover indo em direção ao centro do lago. Viviane estava de braços abertos, a brisa tocando suavemente seus cabelos loiros brilhantes que de tão brancos se misturavam com a névoa.

- Você é uma bruxa? – perguntou Daimon à mulher.

- Quase...

- Um fantasma, então? – prosseguiu.

- Muito próximo a isso... – disse evasivamente.

- Um espírito?

- Está esquentando...

Daimon deu de ombros e resolveu não questionar mais a existência de Viviane.

- Cacius me disse que ela é a guardiã deste lago. – informou Kal, baixinho.

- Chegamos. Segurem-se firme.

Os três seguraram-se nas bordas da gôndola quando ela começou a girar e a descer para o fundo do lago. Guinevere e Daimon sentiram uma aflição por imaginarem-se descendo até o fundo. Cercados por água sem poder respirar.

Alguns segundos depois, seus medos foram perdidos. Estavam agora flutuando e descendo às margens do lago que beirava a cidade de Celacanto.

- Ela é linda... – admirou-se Daimon ao ver as construções em puro marfim.

A cidade estava diferente do que o dia anterior. Outras cinco lojas haviam sido abertas da noite para o dia e a única rua da cidade parecia ter ficado maior, embora o tamanho das demais lojas e do lago não parecia ter diminuído um centímetro.

- O novo ministro quer aumentar o número de moradores aqui em Celacanto e promoveu este aumento repentino. – explicou Viviane percebendo o espanto de Kal – É bem provável que em poucos meses esta cidade esteja tão grande quanto a Cidade dos Elfos.

Kal olhou para ela admirado, mas não questionou mais nenhum assunto. Estava distraído com o número de bruxos que havia lá embaixo. Celacanto fervilhava. Pessoas esfumaçavam a todo o instante, algumas até mesmo já usavam o pó de bobetônia que Bernardo criara.

- É aqui que os deixo. – disse Viviane em uma voz pesarosa – Espero que encontrem o que procuram.

- Obrigado, Viviane. – agradeceu Guinevere gentilmente enquanto desciam do barco.

A mulher inclinou a cabeça em sinal de respeito e desapareceu por entre as brumas que se ergueram.

- Vamos até o Conselho de Magia. – disse Kal, pouco pensativo.

Seguiram caminho por entre a multidão de bruxos, todos muito agitados, falavam alto, por vezes xingavam, faziam gestos estranhos com a mão, mas para eles nada fazia sentido algum. Procurando um rosto conhecido, Kal ergueu seu pescoço o mais alto que pôde. Ele olhava de um lado para o outro atento a cada uma das pessoas. Quando virou-se para a sua direita deparou-se com seu amigo de Avalon, Ralph Scheiffer, filho de Uric, o Guardião-chefe de Warren. Ralph ainda era poucos centímetros menor do que Kal, tinha olhos bem castanhos e um cabelo loiro escuro, pele clara e um pouco queimada de sol.

- Ralph! – gritou Kal ao vê-lo, contente.

Ele virou-se ao ouvir o chamado e abriu um sorriso exibindo seus dentes brancos. Ralph abriu caminho por entre as pessoas e chegou até os amigos.

- Sabia que vocês viriam. – disse olhando de Kal para Guinevere e por último Daimon – Papai disse que vocês estão morando na margem do lago aqui em cima.

- Exato. – confirmou Daimon.

- O que você faz aqui? – perguntou Guinevere.

- Eu reclamei com meus pais por que eles estão me deixando muito tempo sozinho em casa. Na verdade eu não queria mesmo perder a audiência no Conselho de Magia. – admitiu.

- Vai ser aberta ao público? – perguntou Kal, preocupado.

- Não. Apenas algumas poucas dezenas de pessoas com credenciais poderão entrar na sala do Conselho.

- Droga! – praguejou Kal.

- Nós vamos tentar entrar de qualquer modo. – falou Ralph, tranqüilo.

- Como? – perguntou Guinevere.

- Eu tenho meus truques.

Ralph guiou os três por entre toda aquela gente emaranhada que parecia se engalfinhar em uma briga intensa. Eles eram espremidos a cada passo, tinham seus pés pisoteados impiedosamente e nem ao menos ouviam uma palavra de desculpas. Quando finalmente chegaram a um espaço mais aberto, Ralph travou as pernas e disse que não poderiam tentar entrar naquele momento.

- Tem um guarda de Warren vigiando a entrada do Conselho. – apontou para o guarda de capa marrom – Teremos que esperar ele sair dali. Não deve demorar muito. Ele precisará cobrir outra área em pouco tempo. Papai disse que eles não mandaram mais de dez guardas para cá. Todos os outros estão se esforçando para seguir o rastro de Kricolas agora que ele está com a Caixa de Pandora.

- Seu pai falou alguma coisa a respeito? – indagou Kal.

- Não, mas mamãe sim. Ela disse que a caixa é muito mais poderosa do que imaginamos. E não acha plausível que Kricolas consiga abri-la.

- E por que não? – indagou Daimon.

- Parece que antes de ser entregue a Saguior, a caixa passou pelas mãos de Merlin. E bem... sabemos quem é Merlin e o que ele já fez para proteger este mundo. Com sinceridade, aquele velho não dava ponto sem nó.

- Acha que a afirmação de Cacius no Folha Mágica pode ser verdadeira? – questionou Guinevere.

- Meus pais disseram que sim. Eles têm total confiança na palavra de Cacius. Kricolas não poderia remover a tampa da Caixa de Pandora mal intencionado. E não vejo um bom motivo para ele fazer isso.

- Certo. – aliviou Kal.

- O guarda está saindo! – disse Ralph atento – Vamos agora. Não teremos hora melhor.

- Humhum. – concordaram em coro.

- Façam cara de gente importante. – disse Ralph empinando o nariz e estufando o peito.

Quando estavam a poucos metros de distância da entrada surgiu outro guarda, não parecia ser de Warren, mas era um obstáculo.

- Continuem! – ordenou Ralph percebendo que os três já estavam dando meia volta – Bom dia, senhor. – cumprimentou ao guarda já se esgueirando para dentro do prédio.

- Suas credenciais, por favor. – exigiu o guarda.

- Credenciais? – retorquiu Ralph jocosamente em meio a um sorriso cínico – Você sabe quem nós somos?

O guarda analisou a figura dos quatro garotos ali parados em sua frente e levantou as sobrancelhas em sinal negativo.

- Guarda, deixe-nos passar. – disse Ralph outra vez tentando se esgueirar para dentro.

- Ninguém passa por mim sem credenciais. – falou o guarda relutante.

- Deve estar havendo algum engano. – comentou Ralph olhando para os três e depois para o guarda – Escute, recruta, eu sou filho de Uric Scheiffer, Guardião-chefe de Warren e tenho ordens do meu pai para encontrá-lo lá dentro. Se preferir pode você mesmo ir lá dentro e chamá-lo para resolver esta situação vergonhosa. Mas devo adverti-lo que meu pai não é tão paciente quanto eu. – disse em um tom convincente que Kal quase pôde perceber o guarda tremer os joelhos.

- E quanto a eles? – perguntou o guarda apontando a varinha para Kal, Guine e Daimon.

- Nunca-Mais-Faça-Isso! – repreendeu Ralph com a varinha erguida, sua ponta brilhava em um vermelho escarlate – Por acaso você não reconhece as pessoas? Que tipo de guarda é você, homem?

Ralph realmente sabia intimidar uma pessoa quando queria, este era um lado que Kal não conhecia do amigo.

- Estes são os Foster! Entendeu ou quer que eu desenhe? Os Foster! Deve sua vida a eles. Cada um de nós aqui deve. – finalizou dando um longo suspiro de alívio – Agora, se nos permite, temos uma audiência para assistir.

- Sim, senhor.

- Vou fazer vista grossa desta vez, rapaz. – disse Ralph tentando ganhar mais uma vantagem, garantindo que o guarda mantivesse isso em segredo – Meu pai odiaria saber que nós quatro passamos por essa situação, então, se quiser manter o emprego, eu posso ajudar ficando calado.

- Entendi, senhor, desculpe por minha petulância. – falou o guarda covardemente.

Ralph ergueu ainda mais o peito e entrou de rosto empinado quando pisou no tapete vermelho do saguão de entrada. Várias estátuas de bruxos estavam posicionadas ali dentro, alguns outros bruxos de verdade os encararam de modo curioso quando os quatro já estavam a meio caminho do elevador de acesso à sala do Conselho de Magia.

Kal percebeu que Jonas, o bruxo encarregado do elevador não estava ali, o que de certa forma poderia ser um bom sinal. Talvez ele os colocasse em encrencas. Kal aproximou-se mais e puxou a porta com força, mas ela não se mexeu nem um pouco. Impondo um pouco mais de pressão ele obteve o mesmo resultado. Ralph encarou aquela cena com desgosto e num sorriso simples disse.

- É assim, olha. Elevador, abra.

A porta de bronze do elevador cedeu com um clic e facilmente foi empurrada, dando passagem para os quatro.

- Como você sabia o que dizer? – indagou Kal.

- São sempre a mesma coisa, elevadores, portas, tudo isso... – respondeu.

- Este elevador aqui não é igual ao do Hospital Nautilos, é? – questionou Guinevere temerosa quanto ao equipamento assassino que se chamava elevador na pequena cidade de Dunas, próxima a Vila da Cachoeira.

- Não mesmo. – tranqüilizou Kal apertando o botão SS para descerem até a sala do conselho.

A descida foi rápida o bastante para não dar tempo deles iniciarem um diálogo. Assim que a porta se abriu, Ralph saiu agachado ordenando que eles fizessem o mesmo para não serem vistos por seus pais.

- Você não disse que era uma ordem deles você estar aqui? – questionou Kal.

- Acreditou mesmo naquilo que eu disse ao guarda? – riu-se – Não sabia que eu mentia tão bem assim.

- Não acredito que somos penetras... – decepcionou-se Daimon.

Bravamente, os quatro permaneceram agachados lutando contra o esforço de seus joelhos em se manterem naquela posição e contra os olhares indiscretos das pessoas ao redor e em pouco menos de dois minutos haviam entrado na sala do conselho.

Eles vislumbraram o teto abobadado e Ralph apontou para cadeiras lá em cima.

- É lá que devemos ir.

Eles viraram à direita e subiram alguns degraus que os lavariam para um lance de escadas que era o real caminho até os assentos.

Subiram correndo com medo de ainda serem avistados pelos pais de Ralph ou alguma outra pessoa que pudesse tirá-los dali. Lá em cima, eles estariam seguros, pois era onde ficavam as pessoas credenciadas e certamente nenhuma delas iria questioná-las sobre qualquer coisa.

Kal procurou lugares na beirada do para-peito, de forma que pudessem visualizar a reunião de forma privilegiada. Não demorou muito tempo depois que se sentaram e logo todos os membros do conselho estavam ocupando seus assentos, inclusive Cacius que estranhamente piscou para a direção de onde eles estavam.

- Como ele pode saber tudo? – bufou Ralph.

- Boa noite, membros do conselho. – saudou Timas Havany, Ministro da Comunicação Mágica – Esta reunião foi convocada para decidirmos o futuro de um dos nossos membros, o fauno Saguior. A acusação, representada pelo nosso mais novo Ministro da Defesa e Segurança Mágica, Dorian Gulemarc, o acusa de: – disse puxando uma folhinha para cima do palanque e colocando um óculos de leitura – Omitir do Governo Mágico informações importantes sobre um artefato mágico potencialmente perigoso, portar este objeto em segredo pondo em risco a segurança da comunidade mágica e por facilitar o repasse do devido mencionado ao inimigo mais perigoso de todos os bruxos de bem.

Timas fez uma pequena pausa para respirar e prosseguiu.

- Em sua defesa, apresenta-se o Diretor da Escola de Magia e Feitiçaria de Avalon, senhor Cacius Henrique. – disse apontando para a direção de Cacius com o braço esquerdo – Eu desempenharei papel de juiz mantendo neutralidade no assunto como manda o Código de Leis e Ordens Mágicas, assinado pelos bruxos, elfos, fadas e todas as demais criaturas mágicas no ano mil. Tragam o réu.

Uma porta se abriu bem embaixo das escadas que Kal e os outros subiram e dela saíram dois homens com varinhas empunhadas escoltando Saguior que estava com as mãos protegidas por uma bolha dourada, certamente elas impediam que ele usasse seus poderes de fauno.

- Saguior, - prosseguiu Timas – sabe porquê está aqui e porquê está sendo acusado?

- Sim. – disse com convicção.

- E você se considera...

- Inocente. – disse abertamente.

- Está disposto a se submeter a um julgamento justo neste conselho?

- Eu acho isto uma grande palha...

- Responda apenas, sim ou não. – interrompeu Timas.

- Sim. – bufou, entre dentes.

- Eu e com os poderes de juiz a mim concedidos por este conselho, declaro iniciado o julgamento.